Pelos Caminhos da Existência

Pelos caminhos da existência

Reminiscências

Lyoji Okada

Sumário Preliminarmente, 9 Capítulo I – Pelos gênios da criação –5 a25             Capítulo II – Pelos geradores do futuro  –26 a52  Capítulo III – Pelas vias da formação – 53 – 80 Capítulo IV – Pelas fundamentais transformações – 81- 119 Capítulo V – Pelas vigílias do Japão – 120 – 142 Capítulo VI – Pelo limiar dos novos tempos – 143 – 222  Capítulo VII – Pelos ribombares dos ventos – 223 – 242 PRELIMINARMENTE…

Sem dúvida, os acontecimentos do passado formam parte importante de nossas vidas. Eles representam vestígios de uma época fundamental, que nos levaram a ser o que somos hoje.

É verdade que, com o tempo, muitos desses acontecimentos foram sendo alterados, transformando-se em pentimentos, ou, como quis dizer Lillian Hellman, em pensamentos originais, afetados por sentimentos fortes que ficaram. 

Nasci antes da Segunda Guerra Mundial e pude conhecer todo o drama existente no Brasil daquele período. Testemunhei como o mundo se transformou desde então, passando de uma terra regida por grandes crenças, preconceitos e ideias arraigadas, para outra, mais realista, mais lógica, mais verdadeira.

Este livro apresenta justamente as reminiscências de um tempo, sob uma perspectiva pessoal – trazendo fatos importantes para mim e para a minha família. Do mesmo modo, sendo uma obra de caráter biográfico, procurei respeitar, em meus relatos, a intimidade de alguns dos personagens, que ainda encontram-se vivos. Como nos ensinava González Pecotche, nunca deveríamos ser rudemente francos, pois isto machucaria muitos seres, desnecessariamente, pois o que realmente importa é sermos leais e honestos em nossa luta por um mundo superior. São, como se diria, reflexos da própria vida. 

Gostaria de agradecer a todos os que nos ajudaram nesta caminhada, de diferentes formas, tornando a nossa vida muito melhor do que se poderia esperar.

Lyoji Okada

  

Capítulo I

Pelos gênios da criação

1.

O meu avô paterno chamava-se Hidesada Okada. Um senhor digno, sempre bem vestido, geralmente com gravata e boas roupas. Ele representava a seita budista “jodô shinshu” no Brasil, da qual foi um grande propagador. Foi também um dos idealizadores do Banco América do Sul, instituição financeira cujos criadores e principais diretores tinham sido seus alunos na Universidade de Kyoto, onde foi ilustre professor.

Ele também se destacou, naquela época, como um grande incentivador da imigração japonesa, em especial para os estados da Região Amazônica. Sem dúvida, na década de 1930, meu avô deveria ser um dos japoneses mais influentes do Brasil. 

A imagem que guardo dele é a de um grande patriarca. Todos os dias, quando estava conosco, nos fazia acordar cedo, por volta das cinco horas da manhã, para fazer ginástica. Confesso que não gostava muito. Afinal, era uma criança de apenas cinco anos de idade. No entanto, achava aquela atividade muito interessante, pois representava a maneira de ele encarar a vida, era parte de sua filosofia: todo ser humano deveria conservar bem seu corpo físico, para, a partir dali, lutar para conseguir um lugar melhor neste mundo e, quem sabe, no mundo espiritual. 

Meu avô, que além de professor de faculdade em Kyoto havia sido também integrante da Universidade de Tóquio, tinha muitos respeitáveis discípulos aqui no Brasil. Talvez, em razão disso, ele sempre promovesse reuniões ou eventos, geralmente na cidade de São Paulo, ocasião em que essas pessoas podiam estabelecer contato e se aproximar dele.

Hidesada Okada vivia sorrindo. Pelo menos, é essa imagem que guardo. Talvez, em parte, devido a uma fotografia dele que eternizou essa característica. Sem dúvida, ele representava o lado positivo da família. Quando queríamos algo de bom, deveríamos procurá-lo. Era o que fazíamos. 

No entanto, ele retornou ao Japão no último navio que saiu do Brasil antes do início da Segunda Guerra, em fins do ano de 1940. Foi aconselhado a voltar, uma vez que sua presença no país poderia causar-lhe problemas. Retornou ao Japão, onde havia deixado ainda mais dois filhos. Ficamos com a sensação de que seria difícil viver sem a presença dele. 

Quando nasci, a minha avó, mãe de meu pai, já havia falecido, na cidade de Lins, no estado de São Paulo. Meu avô já estava casado com sua segunda esposa, chamada Osonoe, que sempre me pareceu uma distinta senhora. Eles se casaram aqui no Brasil. Quando o meu avô retornou ao Japão, ela o acompanhou.

Será um engano pensar que a vida dele na volta ao seu país natal foi boa. Por lá, enfrentou grandes necessidades. Acabou falecendo em meio a tanta miséria. Aqui, no Brasil, todos nós lamentamos muito a sua morte. 

Em 1971, estive no Japão e aproveitei para ir até a casa de um dos filhos que havia ficado com o meu avô, que me levou até onde ele fora enterrado, no cemitério em Kyoto. Fiquei emocionado, trinta anos se passaram desde que ele nos deixara. 

Alguns anos depois de terminada a guerra, a minha nova avó, Osonoe, retornou ao Brasil. Eu, particularmente, gostava muito dela, a considerava, de fato, a minha avó. Pelo que a minha mãe contara, antes de se casar com o meu avô, ela havia enviuvado em razão do suicídio de seu primeiro marido, muitos anos antes, no Japão. 

No Japão, o suicídio é uma prática de morrer levada a cabo quando alguém julga ter cometido um ato altamente demeritório. De certa forma, foi o que aconteceu. Ele era tesoureiro, que teria gasto recursos da empresa irregularmente, esperando ganhar com isso. Contudo, para repor o valor que lançara mão, foi obrigado a gastar cada vez mais, não conseguindo reverter a situação. Sem encontrar aparentemente uma saída, acabou se suicidando de modo doloroso, jogando-se na frente de um trem em movimento. 

Minha segunda avó ficou então viúva, com vários filhos pequenos. Após muito sofrimento, deu um exemplo de superação, encarando a vida com muita valentia. Foi em busca de trabalho. Foi professora e, posteriormente, diretora de escola. Sem dúvida, uma batalha de vida ou morte. Com o passar dos anos, ela poderia ser considerada uma vencedora. 

Minha avó Osonoe viveu bastante. Residiu por muito tempo em São Paulo, onde se fixou com sua filha Thieko, que mais tarde faleceria por motivo de doença. Sempre quis bem a Thieko, uma moça linda, que se casou com o Yamaguchi, proprietário de uma reconhecida livraria, que trabalhava com livros e revistas japoneses de alta qualidade. 

Passados vários anos desde o seu retorno ao Brasil, minha avó, dominada por seus pensamentos, internou-se num asilo para idosos. Deveria ter então mais de 85 anos de idade e não queria se tornar um estorvo para seus familiares. Fiquei chocado com a notícia.

– Mas, por que razão, ela desejaria ingressar num asilo, por melhor que fosse? – me perguntava, tristemente.

Minha mãe a visitava de vez em quando. Minha avó Osonoe não viveu bem, embora fosse um bom asilo. Muitos problemas aconteceram entre seus companheiros, mesmo sendo pessoas de idade. Alguns anos depois de ter se internado, ela faleceu. Fiquei penalizado. Havia sido um exemplo de mulher, tendo, inclusive, sido homenageada pelo governo japonês, pelos serviços prestados como professora e diretora de escola. Sentia-me triste por não ter tido interferido. Provavelmente porque ela podia contar com seus próprios filhos. 

Quanto a meu avô paterno, Hidesada foi, sem dúvida, um gênio. Estava sempre querendo realizar projetos desafiadores, mas com muito bom senso. Era um senhor de ideias avançadas. Recordo-me certa vez em que fomos a um piquenique e, lá, encontramos um monte, bastante alto. Depois de cantarmos e fazermos ginástica, ele ponderou que todos nós poderíamos escalá-lo, que isso representaria um grande desafio. Dito isso, ele seguiu à nossa frente, subindo o monte. 

Meu avô deixou entre nós uma grande herança. Não propriamente material, mas de natureza espiritual – um grande estímulo para que fôssemos melhores, para que lutássemos por um mundo melhor.

2.

Em 1941, o meu pai chegou a possuir uma quitanda, que vendia frutas e verduras. Ficava na cidade de São Paulo, na esquina da Rua Thomas Lima com a Conde de Sarzedas, e tinha um bom movimento de compras. 

Todos nós trabalhávamos. Eu deveria ter, nessa época, uns seis anos de idade. Não me recordo exatamente por quantos anos essa quitanda funcionou. Talvez por um ano, um ano e meio. Estava sempre cheia de frutas e verduras frescas. Meu pai, um ilustre contador, a abastecia, de madrugada, empurrando uma carroça de mão. Era um trabalho pesado, mas era o nosso ganha-pão indispensável. 

Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial e tudo parecia difícil. Sofremos alguns furtos. Lembro que, em certa ocasião, levaram tudo o que o meu pai havia abastecido. Ficamos muito assustados. Meu pai tomou providências para evitar novos furtos. Contudo, outro grande furto aconteceu logo depois. Levaram tudo. Por fim, meu pai decidiu fechar o estabelecimento. 

Nesse período, aconteceu um fato que marcou minha infância. Em razão da guerra, havia falta de açúcar branco em toda parte. Conseguíamos comprar um pouco, com dificuldade, enfrentando longas filas. Algumas vezes, recorríamos ao açúcar preto. Quando chegava a carroça para entregar açúcar branco nas casas de comércio, todos corriam para tentar comprar, mesmo pagando mais caro, um ou dois quilos. 

Certo dia, uma dessas carroças apareceu com açúcar branco para entregar, bem perto da quitanda. Todo mundo correu atrás, para conseguir um pouco. Minha mãe correu também, até que, extenuada, passou-me o dinheiro, pedindo-me para perseguir a carroça por mais algum tempo. 

Corri, corri, corri. Quando pude compreender o que tinha acontecido, dei-me conta de que não sabia mais onde estava. Percebi que estava perdido em plena cidade de São Paulo. Com a moeda grande na mão, mas sem saber para onde ir. Eu deveria ter, como disse, algo em torno de seis anos de idade, e não sabia o que fazer. Queria retornar para a quitanda, mas eu não tinha noção de onde era. Fiquei parado, tentando encontrar uma solução. 

Já era tarde e a noite vinha chegando. Foi quando um digno senhor, de aparência distinta, de capa e maleta na mão, aproximou-se e perguntou o que havia acontecido. Expliquei-lhe que não sabia onde ficava a quitanda de meu pai. No entanto, ele parecia saber. Colocou-me no banco do bonde. Depois de andarmos um bocado, para meu alívio, avistei a quitanda. 

Eu, evidentemente, estava sem jeito de dizer àquele senhor para que não se aproximasse do estabelecimento de meu pai. Aquele fato havia sido dramático, mas era motivo de vergonha para mim. Ele insistiu em ir até lá, para me entregar pessoalmente a meu pai e a minha mãe, que estavam ansiosos para me localizar, pois já tinham se dado conta de que eu havia desaparecido. 

Os dois, meu pai e minha mãe, ao me verem, ficaram sorridentes. Recordo-me bem disso. Não me lembro o que pensaram em fazer para me encontrar, mas estavam, sem dúvida, bem apreensivos. Eles conversaram com aquele senhor que me encontrara e depois vieram ouvir a minha versão. Eu estava, evidentemente, emocionado. Contei o que pude. Depois, a minha mãe deu-me aquele dinheiro do açúcar, para que eu gastasse com o que quisesse. Foi uma experiência inolvidável.

Certo tempo depois, fomos morar na Vila Galvão, bairro próximo do Centro de São Paulo. Era um bom bairro, mas que necessitava ainda de investimentos. A água retida da chuva se transformava em um lodaçal no meio da rua principal. Era a imagem que fazia daquele bairro. Tínhamos de ir à cidade de trem suburbano, levando cerca de meia hora. 

Logo depois, nos mudamos para um lugar alto, um pouco distante. Era uma casa nova, com áreas na frente e dos lados. Um bom lugar, eu diria. Vivemos por lá um tempo, durante a Segunda Guerra Mundial. Gostei de ter morado naquele bairro. Foi, como se diz, uma boa fase da minha infância.

Quando tínhamos de fazer compras, o fazíamos por lá, numa daquelas casas de “secos e molhados”, onde se vendia de tudo. Eles vendiam certo tipo de doce, parecido com “maria-mole”, que vinha dentro de uma caixa de papelão, com um prêmio. Custava cerca de um tostão, o menor valor monetário da época. Tínhamos de comprar o doce, abrir a tal caixa e descobrir qual seria o prêmio. Era, sem dúvida, uma bobagem, mas eu queria sempre esse prêmio. 

De vez em quando, minha mãe ia até uma daquelas casas, tipo um “boteco”. Aproveitava para pedir a ela que comprasse aquele doce. Custava tão pouco e eu ainda ganharia um prêmio, eu dizia. Minha mãe, por questões de economia, inicialmente recusava-se a comprá-lo. Mas depois, acredito que se recordando de sua própria infância, acabava por comprá-lo. Ela nos trazia, muito contente, aquele doce. Fazíamos uma festa para abri-lo e descobrir qual seria o prêmio. Ríamos muito e éramos felizes. Momentos como esse marcaram a minha infância. 

Recordo-me também de Masao Terada, um grande amigo do meu pai. Ele nunca quis nada da gente. Queria viver a sua vida. Por alguma razão, que nunca entendi, nossa família era a sua família. Lá em casa, ele sentia-se bem. Terada era, para nós, considerado um solteirão. Vestia-se bem, sempre de terno, elegante. Era um homem alto e vivia sorrindo para nós. Considerava-o como um tio muito querido. Foi nosso amigo desde que chegou do Japão. Não tendo para onde ir, veio até a nossa casa. Em Vila Galvão, ele frequentava a nossa casa e brincava muito conosco. Parecia gostar disso.

Uma vez, o meu irmão Zeniiti, que deveria ter então cerca de sete anos, foi passar férias no interior de Cafelândia, na casa de nosso tio, que possuía um sítio. Ficou muito feliz naquele lugar. Tanto, que quando chegou a hora de voltar, pediu para ficar por mais um tempo. Assim, ele foi ficando até as aulas reiniciarem. 

Por fim, nossa tia o trouxe de Cafelândia para São Paulo. Zeniiti não queria retornar, pois havia se apegado aos tios e às primas que por lá ficaram, tendo gostado imensamente daquele sítio de nosso tio. Lembro-me, até hoje, do choro dele, ao ver que nossa tia iria embora sem o levar, pois nossos pais não concordaram com isso. Por mais que tentasse, não houve como convencer meus pais a deixarem-no ir. Lembro que, na ocasião, embora nada dissesse, fiquei muito triste, pensando por que aquilo teria acontecido.

Os tios de Cafelândia queriam muito um rapaz em casa, pois eram sitiantes. Se dependesse deles, o Zeniiti teria ficado por lá. Suas duas filhas, apesar de excelentes, não podiam ajudar muito nos trabalhos na roça. Por muito tempo fiquei imaginando como seria o sítio. 

Outra forte recordação do período em que morávamos em Vila Galvão é do período durante a Segunda Guerra Mundial. As autoridades da época conclamavam que todos ajudassem nos trabalhos de preservação em caso de um eventual ataque dos aviões alemães, italianos ou japoneses, que compunham as forças do Eixo. Pensávamos que também tínhamos de colaborar, uma vez que a nossa própria sobrevivência estava em jogo. 

Uma vez, em razão disso, fomos orientados a apagar todas as luzes em determinado momento, durante certo tempo. Corremos todos a atender tal pedido. Achávamos, no fundo, divertido, pois não acreditávamos que os aviões viessem mesmo. Quer dizer, era divertido por um lado, mas desagradável por outro, pois sempre havia aqueles garotos que aproveitavam para realizar brincadeiras de mau-gosto conosco, falando mal do povo japonês e nos chamando de “quinta coluna”, o que nem sequer sabíamos o significado, mas que nos fazia sentir mal. Felizmente, não era constante esse tipo de tratamento. 

São várias as reminiscências da minha infância que se apresentam de forma esparsa, trazendo em um turbilhão as mais diversas lembranças, como a primeira vez que quis ir a uma matinê cinematográfica. Eu deveria ter cerca de cinco ou seis anos e me lembro que foi uma grande aventura. Minha mãe me levou até o ponto do bonde e recomendou-me muito sobre como deveria agir. Não me lembro do nome do filme, mas provavelmente era um faroeste americano. 

Outra forte imagem é a de quando minha mãe me levou para fazer compras, até que, em determinado momento, parou num lugar alto e disse, olhando para o céu, que lá se encontrava um dirigível. Acredito que se tratava do “Zeppelin”. Ele voava lentamente. Acabamos também dando uma volta. Lembro que olhei para baixo e pude ver toda a cidade de São Paulo, ali, em sua plenitude, com todos os seus carros, prédios e tanta gente andando. Uma perfeita imagem da grande cidade. 

Passei a maior parte da minha infância na cidade, até irmos para Marília, cidade no interior do estado de São Paulo. Hoje, me pergunto qual a razão daquilo tudo. Por que teria vindo ao mundo em uma época tão importante como aquela,em plena Segunda Guerra Mundial? De certa forma, deveria considerar-me feliz por viver no Brasil, naquele período, uma terra boa, hospitaleira, e que nos foi tão favorável.

 3.

A minha infância transcorreu durante a Segunda Guerra Mundial. Para mim, brasileiro, nascido naqueles anos, tudo parecia confuso. Mesmo porque, como pude saber depois, houve dúvidas por parte do governo brasileiro sobre o que fazer naquelas circunstâncias, com os japoneses e com suas famílias. Getúlio Vargas, presidente do Brasil naquela época, parecia gostar muito do povo japonês. No entanto, passou a existir, naquele período, uma espécie de “salvo-conduto”, um tipo de autorização para que os japoneses, italianos e alemães pudessem se deslocar pelo país. Essa identificação permitiria certo controle sobre suas ações.

O Japão, juntamente com a Alemanha e a Itália, estava em guerra com quase todos os países do mundo. Os jornais e revistas da época expunham gravemente a situação. 

No Brasil, contudo, estávamos longe da guerra. O povo, não obstante as dificuldades, era bom. O imigrante japonês era efetivamente querido. Gente pobre, porém trabalhadora. Os brasileiros, de modo geral, não demonstravam hostilidade. 

Foi sob essas circunstâncias que eu e minha família nos mudamos, em 1942, para Marília, cidade do interior do estado de São Paulo, que ficava distante da capital. Tínhamos de pegar um trem. Geralmente num dia, para chegar no outro. Muita gente, muita carga, mas todo esse sofrimento era aceito, em prol de nossa subsistência. Não era como tomar um trem nos dias de hoje, em que é possível se viajar com muito mais conforto. 

Em Marília, o meu tio Keigo Okada tinha um grande bazar. Lá, aproximei-me de meu primo Hikaru, alguns anos mais velho do que eu, a quem muito admirávamos. Durante muito tempo, serviu-me como exemplo de alguém de sucesso. Hikaru foi para São Paulo depois, onde entrou para a Faculdade de Ciências Contábeis, formando-se em primeiro lugar, com brilhantismo. 

O filho mais velho de tio Keigo era um rapaz alto, bom e inteligente, que nada tinha de agressivo. Sua mãe falecera quando ele e sua irmã Hideko eram ainda pequenos. A minha mãe, que havia sido muito sua amiga, contava que a primeira esposa de meu tio morrera de tuberculose, em seus braços. Ao recordar-se dela, chorava sentidamente. 

Logo depois de se formar, Hikaru foi chamado para trabalhar na multinacional Kanebo, que iniciava seus trabalhos no Brasil, na área de tecelagem. Era uma empresa japonesa de renome, que estava se instalando na cidade de São José dos Campos. Hikaru mudou-se para lá e foi galgando cargos na empresa, onde trabalhou por décadas, chegando a diretor. 

Há alguns anos, recebi a notícia de seu falecimento, devido a problemas de coração. Saímos do Rio de Janeiro de carro – eu, minha esposa e minha mãe – para São José dos Campos, a fim de assistir ao funeral. Seguíamos devagar pela estrada, conversando sobre os problemas da nossa vida. Quando chegamos, o enterro já estava iniciado. A empresa Kanebo havia parado naquele dia, em função daquela perda importante. Lamentei não ter ido mais cedo, pois nem consegui ver meu primo. Mamãe foi até Hideko, irmã do Hikaru, que chorava muito, tentando consolá-la. 

Afirmar que não me encontrara com Hikaru até então seria uma inverdade. Estive com ele em 1968, quando fui a São José dos Campos com meu amigo Mário Tanaka, que havia elaborado um plano para sociedades anônimas. Fui visitá-lo em sua casa. Ele me pareceu uma pessoa diferente do que eu conhecera antes, mas, sem dúvida, ainda era o meu primo, a quem eu tinha aprendido a admirar.

Na ocasião, Hikaru me falou sobre algo que me surpreendeu. Quando o meu pai faleceu, em 1956, ele foi à nossa casa, em São Paulo. Não conversamos muito, mas falei com ele sobre vários assuntos, inclusive sobre a Logosofia, que havia encontrado. Ele ouviu, mas nada disse. Porém, 12 anos depois, ele me disse que ficara impressionado com a ciência logosófica, pois, segundo entendera, seria a única que nos mostraria como atuar bem, independentemente de nossa vontade. 

Por acaso, eu já havia me esquecido dessa conversa. Mas, ele se lembrava muito e ficou me perguntando o que eu havia conseguido com o estudo da Logosofia. Surpreso, falei animadamente sobre o que aquele estudo estava me proporcionando. 

Fiquei impressionado com a inquietude de Hikaru sobre a Logosofia, manifestada naquela conversa, em 1968, em sua casa, em São José dos Campos. 

‑ Por que será que ele teria se lembrado de Logosofia? – me indagava.  Provavelmente porque aquela ciência teria condições de afetar as inquietudes espirituais de Hikaru. Muitas vezes, o que o meu primo me disse naquela ocasião foi objeto de minhas conjecturas.

 4.

Quando chegamos ao sítio de Marília, em 1942, pensei ter chegado ao fim do mundo. Sabia que a localidade ficava no meio do mato, relativamente longe da cidade, com acesso por meio de estradas esburacadas. Nesse lugar, começamos a trabalhar na roça. 

Eu frequentava uma escola que existia no local, meio distante, junto a um campo de futebol. Tinha um professor que nos ensinava. Um senhor digno, embora exigente. Havia só uma grande sala, onde ficavam todos os alunos, de diferentes graus. Era lá que tínhamos de aprender alguma coisa. 

Morávamos numa casa de madeira, com chão de terra. Naquele sítio, que tinha cerca de dez alqueires, fizemos muitas descobertas, como a capivara. Havia também passarinhos de diversos tipos de pantanais, inclusive garças de penas brancas e pernas compridas. Descobrimos ainda o sapé, utilizado para cobrir casa de interior; os pés de manga, cujos frutos saboreávamos tanto; e ainda o bicho da seda, que nos causou muitos problemas, embora tenha nos possibilitado ganhos, com a venda dos casulos. Trabalhávamos muito, como era de se esperar. Não havia ajuda de ninguém, fora da nossa família. 

Ficamos cerca de três anos em Marília. Acredito que, de certa forma, morar naquele lugar, lidando na roça, ajudou-nos a enfrentar, no futuro, a nossa vida, em toda a sua terrível natureza. 

Papai gostava de tudo aquilo. Embora tivesse morado tanto tempo na cidade, onde era excelente negociante, sempre preferiu morar em um sítio. Ele entendia que alguém precisava produzir aquilo de que todos se alimentavam. Sem dúvida, a agricultura era a essência do que ele sempre sonhara. Era uma característica de meu querido pai. “Por quê?”, eu me perguntava. “Talvez estivesse dentro do seu ser”, eu mesmo me respondia. 

O Hiroshi, meu irmão oito anos mais novo, nasceu naquele período. Sempre foi um excelente irmão, mas teve uma vida muito atribulada. Lutou muito, mas, por alguma razão, as coisas nunca lhe sorriram. Quando nasceu, os cuidados que a minha mãe dedicava ao novo bebê eram espantosos. 

Para mim, morar naquele interior era assustador. Cuidar da casa sem a presença de minha mãe, ou só com a presença de meus irmãos, não era tarefa fácil, principalmente para uma criança de oito anos de idade. 

– Por que será que tanta gente queria morar no interior? – era uma questão que me inquietava. 

Quantas vezes, debaixo dos pés de uma amendoeira, tomando café, punha-me a pensar sobre isso. Achava que não havia nada por lá para me alegrar. 

Logo depois de nos mudarmos para aquele interior, ganhei um fruto, algo maduro, de um chuchu. Minha mãe me falou que, se plantasse aquilo, poderia vir a surgir um pé grande de chuchu e que, assim, poderíamos comer de vez em quando. Com a ajuda dela, fui ao quintal e lá plantei aquele chuchu. 

Algum tempo depois, fui estudar em Lins. Durante as férias, ao retornar, comíamos chuchu cozido com camarão seco, que comprávamos na cidade. Como era delicioso. Podíamos não ter nada para comer, mas, pelo menos, tínhamos aquele chuchu, que dava nos pés que se enrodilhavam nos andaimes que se formaram. Era tão agradável saber que havia plantado aquele pé comprido de chuchu. Relembrando tudo isso, dou-me conta de que como podemos realizar uma série de coisas, aparentemente banais, que depois se tornam úteis. 

Ao nos mudarmos para o interior, não havia então a ideia de plantar pés de amora para alimentar bichos da seda. Nosso pensamento era outro, o de realizar o trabalho normal de roça. Pouco tempo depois, surgiram os bichos da seda, cujos casulos eram vendidos a preço elevado. 

Tivemos de construir galpões para criar os bichos da seda. Eles cresciam de forma assustadora. Se não me engano, levavam cerca de dois meses, desde que comprávamos as sementes na cidade. As larvas iam se desenvolvendo, até que, num belo dia, enchiam aqueles galpões com casulos. Isso nos rendia um bom dinheiro. 

Fazia-se a criação das sementes no interior de nossa casa. Depois que chegavam a certa fase de crescimento, eram transportadas para outro lugar, também pequeno, até que, finalmente, seguiam para o galpão grande. Se no início a tarefa de cultivar folhas novas de amendoeiras já representava trabalho, mais tarde, ele seria maior ainda. Cortar as árvores e amontoá-las representava uma tarefa enorme, principalmente após uma determinada fase, quando o bicho da seda tornava-se um grande comedor. 

Em certo ponto, eles param de comer e começam a formar casulos. Então, esperamos cerca de dois ou três dias. Posteriormente, começamos a colher tais casulos.  ‑ Quantas vezes cultivamos os bichos da seda?  ‑ Muitas e muitas vezes.  ‑ Será que poderíamos parar? – eram dúvidas que todos manifestavam. 

Em pouco tempo, começaram a surgir notícias sobre a ocorrência de “queimadores” daqueles galpões. Eram pessoas que acreditavam que nós devíamos estar ajudando os americanos a fabricar seus paraquedas, para que fossem utilizados na guerra contra o Japão. Teriam, ou não, razão? 

Ninguém conseguia dormir com aqueles galpões cheios de bicho da seda. Todos morriam de medo de que alguém, na calada da noite, ateasse fogo, pondo tudo a perder. Meu pai, de igual forma, não conseguia dormir tranquilo, diante desse risco. 

Não apenas uma vez, mas por diversas, em que, mesmo ciente dos perigos, ele se arriscou. Felizmente, por alguma razão, não queimaram o seu galpão, que lhe havia custado tanto dinheiro, construído com madeira nova e coberto de sapé. Não era brincadeira ter um galpão daquele tamanho queimado por roceiros radicais. Toda vez que ele colhia os casulos e os vendia, a nossa esperança era de que ele abandonasse tal ideia. No entanto, ele prosseguiu com a atividade durante algum tempo. 

Os pés de amora que plantávamos para alimentar os bichos da seda não eram em pequena monta, pois ocupavam grandes áreas. Mas os pés não eram grandes, como se imagina, pois queríamos folhas pequenas e frescas. Tudo era feito para atender aos nossos bichos da seda. 

No interior, também fizemos amigos em nossos vizinhos. Do lado direito, morava um moço sozinho, japonês, que plantava muito. Nunca entendi por que ele trabalhava tanto. 

Quando o encontrávamos, ficávamos conversando e ele era uma pessoa alegre. Entretanto, metia-nos medo ver aquele homem voltar tarde da noite e ingressar naquela casa escura. Vez por outra, nós o convidávamos para tomar o “furô”, isto é, o banho quente japonês. Ele vinha, tomava o banho e, depois de agradecer, se retirava. 

Já do lado esquerdo, morava um casal de japoneses, pessoas muito boas. Eles tinham uma filhinha pequena, criança de colo ainda. Nós íamos lá, de vez em quando, e brincávamos com aquele senhor. Ele, por sinal, gostava muito de brincar e ria muito. A senhora dele era muito calma, uma japonesinha muito sensível e simpática. 

Uma vez, estávamos no lombo de um cavalo. Não sabíamos andar nele. Esse senhor, nosso vizinho, lá estava para nos ensinar. Eu gritando que ia cair e ele afirmando que não, que segurasse bem, que nada aconteceria. Depois, ele bateu no cavalo, e o animal saiu correndo, com a gente montado, e nada realmente aconteceu. Embora morrendo de medo, divertia-me com tudo aquilo. Não soube mais o que aconteceu com esse casal de vizinhos. Tudo isso ocorreu entre os anos de 1943 e 1944. 

Outra lembrança do interior são as mangueiras, inclusive do tipo coquinho. Davam tantas mangas, tão bonitas, tão deliciosas, com cores tão bonitas, que nem sei como fazíamos para comê-las. Quanto mais comíamos, mais mangas apareciam. Quantas noites, depois que estávamos em casa, nos deliciávamos com tais mangas. Gostosas recordações.

5.

Durante a nossa permanência em Marília, fomos a Lins, eu e meu irmão Zeniiti, para estudar. Para nós, foi uma aventura. Nada sabíamos sobre Lins, uma bela cidade, no interior do estado de São Paulo. Nossos primos e nossa tia Sadae Hashimoto lá moravam e eram nossos amigos. 

Meus pais nos levaram. Ficou determinado que por lá ficássemos, estudando. Era o início de uma nova era, pelo menos para mim. Pudemos então morar numa boa casa, que funcionava como uma pensão para estudantes, que morando distante, em outras cidades do interior, iam estudar em Lins, uma cidade maior e mais bem aparelhada em se tratando de educação. Causou-me boa impressão. 

Devemos ter ido para lá no meio do ano, pois tive de entrar numa escola pequena e algo estranha, apesar do bom ensino, na parte da tarde. Logo no início, a professora perguntou a todos se alguém saberia escrever a letra “H”, quando constatei que somente eu levantara o dedo. Surpresa, ela me pediu que fosse até o quadro negro, para escrevê-la. Desde então, tornei-me um bom aluno. No ano seguinte, permaneci na mesma escola, na parte da manhã. 

A minha vida em Lins foi muito produtiva. Foi emocionante viver aquela experiência. Gostávamos da Laura, nossa prima mais nova, um pouco mais velha que o Zeniiti. Naquela época, a Laurinha, como nós passamos a chamá-la, estava iniciando o curso ginasial. Era uma graça de menina. Lindíssima. 

O curso ginasial, que estava começando, era tudo para ela. Seus deveres eram sagrados. Ela sempre foi uma garota formidável. Às vezes, brigava, porém era justa. Se alguém se apresentasse e pedisse desculpas, imediatamente ela se modificava e os equívocos que tivessem ocorrido antes desapareceriam completamente. 

A história de Laurinha foi longa e sofrida. Nasceu em uma família boa, em tempos problemáticos. Nos seus primeiros anos de vida, não tinham dinheiro nem para a comida. Não sei agora se ela se lembra de tudo isso. Em Lins, ela dava a impressão de estar desfrutando dos melhores anos de sua vida. 

Não me lembro quanto tempo fiquei em Lins. Talvez um ano e meio, talvez algo mais. Convém lembrar que eu deveria ter então uns oito anos e tudo era novidade. O fato de morar na casa dos meus primos já era uma novidade. 

A minha prima Tereza, a filha mais velha, deveria ter mais de vinte anos. Paulo, meu outro primo, seu irmão, era um ano mais novo do que ela. Depois, vinha o Pedro, que deveria estar com quinze anos. Minha tia Hashimoto, viúva, trabalhava como enfermeira-chefe na Clínica Médica do Dr. Cunto, famoso médico local. 

Com relação à minha tia Hashimoto, dificilmente ela sorria, mas era uma boa pessoa. Não era muito dada a relacionamentos, mas estava consciente de tudo aquilo que acontecia. E, embora nunca demonstrasse essa alegria, estava contente. De qualquer forma, era a nossa tia, a quem queríamos bem.

Pedro trabalhava numa loja de barcos ornamentais, feitos de bambu. Eram peças bonitas, que ele fazia com muita arte. Além, disso, ele tinha várias outras atividades, que me encantavam, como, por exemplo, dedicar-se às suas coleções de discos finos ou de coisas ligadas à arte musical. Foi com ele que aprendi quem eram os grandes violinistas de então, os grandes cantores de ópera, quais eram os grandes compositores que existiam, entre outras coisas. Foi uma época boa para ele e para mim também. Gostei muito dele, por todas essas razões. Pedro foi, sem dúvida, um companheirão. 

Paulo trabalhava muito, de forma que só me encontrava com ele à noite ou nos finais de semana. Ele, no entanto, não falava muito, talvez por temperamento. Pedro também trabalhava muito, mas, com ele, talvez em razão de nossa pouca idade, aconteciam as conversas mais interessantes. De certa forma, foi com o Pedro que desenvolvi um contato maior, uma maior troca de histórias. 

Minha prima Tereza foi, de certo modo, minha mãe substituta. Embora não tivesse idade, parecia ter todas as condições para isso. Hoje, vejo que as coisas mudaram muito, desde então. Lembrando daqueles anos do início da década de 1940, nada tenho a me queixar dela.

Uma vez, houve uma festa no dia do meu aniversário. Eu nunca havia recebido uma festa por esse motivo. Evidentemente, esperei ansiosamente pela sua chegada. Nesse dia, fiquei encantado com a quantidade de doces que havia. Reuniram todas as pessoas que lá estavam para comemorar meu aniversário e me pediram para que falasse algo. No entanto, por razões particulares, comi os doces, nada disse, e depois de dar boa-noite a todos, fui dormir, muito sem graça, no meio da festa, bastante encabulado. Eu era apenas uma criança, apesar das brincadeiras que todos fizeram, não disse nada. Muitas vezes depois, pensei naquilo. 

De Marília até Lins, íamos de ônibus. No entanto, aquelas viagens de ônibus, não obstante serem velhos e as estradas ruins, eram, para nós, indispensáveis. Todos viajavam como podiam, com muita carga, sujos e maltrapilhos. No caminho, passávamos por uma pequena cidade, Guiambé, onde morava outro tio nosso. 

Naquele tempo, morar em Lins foi algo de maravilhoso para mim, pois me ajudou a formar uma ideia melhor do próprio mundo onde vivia. Eu não sabia quem eu era, nem quais eram os meus direitos, de modo que, viver ali, no meio de várias pessoas, principalmente de moças direitas, ajudou-me a formar um conceito de qual deveria ser o meu papel. 

Talvez tenha sido em Lins, que tenhamos sido levados às igrejas, para rezar. Lá, tive contato com a crença religiosa católica. Naquele momento, ignorava a influência que tudo aquilo poderia trazer para o meu futuro. 

‑ Por que queríamos isso? 

‑ Não, pois nem sabíamos a respeito. 

No entanto, por nossas razões, ou por outras, que iremos descobrir depois, fomos levados a sermos crentes em muitas coisas que então se pregavam. 

‑ Poderíamos resistir a tudo isso?  ‑ Não, nem cogitávamos. 

Lembro-me que, uma vez, conversando com meu pai, ele me disse que os seres comuns tinham a tendência a acreditar em tudo aquilo o que viam ou ouviam, o que, na opinião dele, era tudo bobagem. Naquela hora, posso até ter concordado com ele, mas, intimamente, refutei aquele ponto de vista. Mais tarde, viria a compreender o quanto de lindo ele havia me dito naquela oportunidade. 

No entanto, nada existe para nos orientar quando somos levados cegamente pelos caminhos das grandes crenças e dos preconceitos. 

 

6.

Quando o tio Hashimoto se casou com a tia Sadae, sua grande missão foi a de vencer na vida como qualquer ser humano normal. Mas as coisas andavam difíceis no Japão daquela época. Foi nesse meio tempo que surgiu a ideia de ele imigrar para o Brasil. 

Leu livros e informou-se. Segundo suas palavras, no novo país, tudo seria fácil. Ninguém precisaria trabalhar, pois nada seria difícil. Ovos de galinha ou de passarinhos… Era só apanhá-los, já que havia muitos, por todas as partes – dizia. Com o tempo, ele se “especializou” em Brasil. 

No entanto, para vir para o Brasil, segundo o entendimento que existia então, somente seria permitido a famílias grandes. No caso, ele poderia vir, pois era casado, mas, como seus filhos ainda eram pequenos, teve de arranjar mais alguém para acompanhá-los. Foi assim que minha mãe, Koharu, irmã caçula de Sadae, ajudou a compor a família e imigrou para as terras brasileiras.

Meu tio era um homem pequeno, porém inteligente, casado com a irmã de minha mãe, uma mulher frágil, mas enfermeira competente, que havia trabalhado no exército japonês, tendo, inclusive, ido até a Manchúria e recebido uma medalha de honra por seus serviços. Uma história que mereceria ser condignamente registrada. 

Assim foi que vieram para o Brasil de navio, em 1928, quando minha mãe tinha apenas 17 anos de idade, uma vez que nascera em nove de outubro de 1911. 

Realizaram uma bela viagem, cheia de emoções, a bordo do “La Prata Maru”. Minha mãe, uma professora de jardim de infância, que nunca havia viajado anteriormente, nos contava sobre as festas, as diversas paradas em portos, como conhecera diferentes povos e culturas e a inesquecível passagem pela Linha do Equador. Após cerca de 40 dias, desembarcaram no Porto de Santos (SP). Logo no primeiro dia, começaram a descobrir que o Brasil não era exatamente aquilo com que sonharam. De Santos, seguiram pela Estrada de Ferro Sorocabana. Naquela época, os trens que levavam os imigrantes tinham as portas travadas, impedindo que qualquer um saltasse nas paradas. Foram levados até uma fazenda. O tratamento dispensado era bom, mas os japoneses, não obstante a cultura que trouxessem, eram tratados como rudes trabalhadores braçais. Esperava-se muito dos imigrantes japoneses. O próprio tempo provou que poderia se esperar muito mais. 

Contudo, no início, foi tudo muito difícil. Na maioria dos casos, os japoneses imigrantes não eram trabalhadores rurais em sua terra de origem, poucos entendiam da labuta da roça. O que plantar, como capinar, o que fazer? Tudo era um mistério. 

A alimentação foi outro choque. No Japão, não se comia feijão com carne-seca, ou fubá com linguiça. Os fazendeiros abriram crédito para os imigrantes realizarem suas compras. Funcionava assim: retiravam o que precisavam da cooperativa, embora posteriormente tudo entrasse no cômputo dos custos. Depois de algum tempo, verificando que a capinagem não prosperava, em grande parte porque muitos dos japoneses não sabiam executar bem a atividade, os fazendeiros arregimentavam mão de obra local para realizar depressa esse trabalho. Mas, todo dinheiro pago a esses trabalhadores aparecia depois na conta dos imigrantes. 

Tinham casa para morar, mas nada havia dentro para servir de móvel. Minha mãe diz que tiveram de se adaptar às circunstâncias. Além disso, como não havia energia elétrica, tiveram de aprender a acender lampiões a querosene. Acordavam cedo e todos tinham de ir para a roça, passando sempre por um portão, onde ficava um administrador observando se todos por ali passavam, para depois trancá-lo. Trabalhavam o dia inteiro e só retornavam quando a noite chegava. Como o número de colonos era grande, tudo era alegre no início, pois se podia viver razoavelmente. Aquela era a vida que teriam de levar. Pensar em fugir seria quase impossível, pois, com as terras cercadas, muitos eram os riscos. 

O trabalho naqueles cafezais não era fácil, mas como poderiam progredir sem falar a língua portuguesa e sem saber outro ofício que não a agricultura? Havia momentos alegres e tristes. Sabiam que, durante um ano ou quem sabe dois, teriam de permanecer ali, para sobreviver. 

Um dia, quando o café já estava para ser colhido, sobreveio uma grande chuva de granizos, tão grande e em tal quantidade que nada restou. Toda a produção de café estava irremediavelmente perdida. Todos os bancos suspenderam seus financiamentos. Os fazendeiros desapareceram. Então, os próprios imigrantes japoneses resolveram se reunir, para trocar ideias sobre o que fazer. Os fazendeiros não estavam lá para pagá-los e eles não tinham dinheiro para nada. Decidiram colher mais algum café dos pés devastados e juntá-lo com o que havia estocado no armazém local, para, então, vendê-lo em Santos. O dinheiro arrecadado seria distribuído, de forma equitativa, entre todos os imigrantes. 

Todos se lançaram à tarefa com grandes esperanças. O café foi colocado nos trens e seguiu, juntamente com um tradutor japonês, encarregado da venda em Santos. Os imigrantes aguardariam o resultado da venda. Contudo, os dias foram se passando e o vendedor japonês não retornava. Começaram a se preocupar com a demora, até que alguém resolveu ir até Santos, para verificar o que tinha ocorrido. Descobriu, então, que o tal japonês havia vendido o café e, ao invés de voltar, para entregar dinheiro, havia desaparecido. Houve uma grande decepção no grupo, em achar que todos os japoneses fossem bons e honestos… 

Sobre as recordações dessa época, minha mãe relutava muito em fazê-lo. Foram anos de sofrimento, tão duros, que todos aqueles que os viveram preferiam esquecer aqueles tempos de fome, de escassez total. 

Por fim, tiveram de sair daquele sítio, sem rumo certo, para tentar viver por conta própria. Nem lugar para morar eles tinham. Por sorte, conseguiram encontrar uma casa abandonada, que dividiram com outra família. Nem sequer tinham condições de comprar querosene para o lampião. Tiveram então a ideia de colocar um pouco de barbante numa xícara com um pouco de óleo vegetal, para acender dentro de casa. 

Nessa época, o tio Hashimoto, com a ajuda da esposa e da minha mãe, começou a fabricar um molho japonês, do tipo “shoyu”, para vender. O sabor era excelente, mas, por falta de documentação, foi impedido pela fiscalização de continuar comercializando-o. 

Nesse mesmo período, minha mãe recebeu uma ajuda oportuna de meu avô paterno Hidesada, que começou a visitá-la para atender ao pedido da filha, que preocupada com a situação da amiga, pediu ao pai que, quando viesse ao Brasil, procurasse a Koharu, pois algo lhe dizia que a mesma deveria estar passando por dificuldades. Para a minha mãe, essas visitas eram importantíssimas. Aguardava ansiosamente as visitas daquele velho senhor. 

Tempos depois, no início da década de 1930, quando a minha tia estava grávida de minha prima Laurinha, meu pai e minha mãe se casaram. Por uma dessas estranhas coincidências, meu pai resolveu ir até o Amazonas, para onde o meu avô decidira ir com toda a família, para lá plantarem pimenta e outras plantas. A ideia era de que tão logo nascesse a Laurinha e tudo estivesse acertado, minha mãe também fosse para lá. Contudo, depois de algum tempo, meu tio Keigo, irmão de meu pai, resolveu sair do Amazonas e vir para São Paulo, para tratar da tuberculose de sua esposa. Aproveitou para ir até o interior, a pedido de meu pai. Ao chegar ao sítio, ficou apavorado com a extrema situação de penúria e pediu a minha mãe, Koharu, que o acompanhasse, e fosse com ele, morar em sua casa, na capital. Foi então que minha mãe conheceu a esposa de meu tio, que se tornou sua grande amiga e que viria a falecer, meses depois, em seus braços, de tuberculose. 

Nesse meio tempo, depois de um longo período de internação em hospital, devido a um ferimento grave, que lhe provocou um câncer, meu tio Hashimoto morreu. Pouco antes, pediu desculpas a minha mãe. Sua esposa, viúva, retornou ao seu ofício de enfermeira. Para minha mãe, o tio Hashimoto era uma pessoa notável, embora não soubesse como cuidar de sua família. 

Meu pai acabou também retornando do Amazonas, cheio de problemas. Reencontrou minha mãe em São Paulo. Juntos, recomeçaram suas vidas. Em 1934, nasceu o Zeniiti, em 1936, nasci eu, e, posteriormente, os outros irmãos. Éramos uma família feliz, a despeito de todas as dificuldades. 

Analisando a trajetória de vida da minha mãe, há, sem dúvida, muitos outros fatos que mereceriam menção. Filha caçula de uma grande família, que lhe deu todas as condições para conhecer bem o Japão, veio, aos 17 anos, para o Brasil, acompanhando a nova família de sua irmã. Seguiram-se anos de muita luta. Seus pais morreram no Japão, sem que os tivesse conseguir ver. A ideia de retornar era constante, embora impossível de realizar naquela época, por absoluta falta de recursos. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, mais tragédias ocorreriam.

7.

Em 1945, antes do término da Segunda Guerra Mundial, mudamo-nos para outro bairro, dentro da própria cidade de Marília. Nessa ocasião, voltei de Lins. Não me lembro bem como as coisas aconteceram. Recordo-me, porém, da casa para onde fomos, dentro de uma chácara grande, um pouco velha, mas uma boa residência. Inicialmente ficaríamos por pouco tempo, mas acabamos permanecendo por meses. Gostávamos do lugar, naquele bairro afastado. A chácara era grande, abrangia todo o quarteirão, devidamente cercado. Podíamos usufruir das frutas que colhíamos, embora contra a vontade de meu pai. Compreendo agora. Aquele era um lugar provisório, até que a casa ao lado, em obras, fosse construída. 

Quando a guerra terminou, já estávamos na casa nova, de madeira, toda cercada, com um enorme pé de paineira. Nos lados e nos fundos, éramos cercados por construções mais simples, habitadas por pessoas mais pobres. De frente, a casa dava para uma rua onde viviam pessoas de nível econômico melhor. Essa convivência foi muito interessante para nós. 

Uma vez, ao entardecer, o Zeniiti resolveu colocar uma escada junto ao muro da antiga chácara, onde morávamos anteriormente, e tentou, com muito esforço, colher algumas mangas que estavam amadurecendo. A árvore era alta, e ninguém a subia para apanhar os frutos. Meu irmão mais velho subia a mangueira com muita galhardia. Lá embaixo, nós o aguardávamos, esperando que tudo corresse bem. Sabíamos que era proibido, mas ninguém nos via. Só que, nesse mesmo momento, chegou meu pai, vindo mais cedo da cidade. Zeniiti, que não o vira, continuou colhendo as mangas. Nós ficamos em choque com tudo aquilo e, calados, nos retiramos. Quando ele desceu com as mangas, meu pai o obrigou a juntar todos os frutos já colhidos e levá-los até o vizinho, dizendo que estavam do lado de fora. Uma indescritível humilhação. 

Ficamos por lá cerca de um ano, talvez mais. Muitos dos grandes acontecimentos de nossas vidas nesse período tiveram início ali. Naquele ano em que para lá mudamos, fomos a uma escola. Não era muito perto, mas era divertido para todos nós. A escola ficava perto de uma igreja, lembro-me bem disso. Foi lá que cometi um grande erro, embora nada tão sério assim, mas que contribuiu deveras para a formação de meu caráter. Foi quando, após a realização dos exames, recebemos os boletins de final de ano. Um amigo, a quem considerava um líder, o Takashi, sugeriu que alterássemos as notas finais, muito baixas, antes de entregarmos os boletins a nossos pais. Discutimos, discordei. Fiquei sem saber o que fazer, até que ele me convenceu. Pegamos um raspador e lançamos uma nota maior. Saiu borrada, no meu caso, lamentavelmente. Eu tremia, quando entreguei o boletim a meu pai. Ele olhou, não sei se entendeu, mas nada disse. Talvez tivesse visto e entendido tudo. No entanto, nada disse. Eu nunca soube o que tinha acontecido. 

Entendi, tempos depois, que aquilo tinha feito um mal maior a mim mesmo. De certa forma, esqueci o assunto. Se o meu pai não reparou, o problema era dele. Poderia ter apanhado naquela ocasião e tudo estaria resolvido. No entanto, a ideia de que havia feito uma coisa errada ficou dentro de mim. E foi forte essa reação, porque nunca soube como as más tendências surgem. 

Constatei, depois, que passei a ter o costume de cuspir. Nem sabia como essa necessidade surgiu. Mas precisava cuspir, e muito. O que será que teria acontecido?  Como sofria do fígado, segundo minha mãe, deveria ser por isso. E assim fiquei com esse péssimo hábito, por muitos anos. Sofria de outras formas e tornara-me uma pessoa extremamente supersticiosa. Tentava, de algum modo, demonstrar que não tinha qualquer tipo de culpa. 

Mais tarde, já em 1957, descobri que essa falha, aqui comentada, teria iniciado esse processo. Desde então, tenho realizado um grande esforço para eliminar a causa desse mal. Eu não cuspia para fora alguma coisa ruim, pois entendia que não deveria ter nada nesse sentido. Fazia isso para mostrar aos outros que era um ser humano limpo, sem nada para esconder. Esquecera que havia até enganado meu pai, sem necessidade, um dia, em 1945. 

Ainda nessa casa, no bairro de Marília, pude viver emoções diferentes. Naquela época, havia escassez de gasolina, em razão da guerra. Os carros usavam gasogênio, um tipo de combustível obtido por meio da queima de carvão, que, para ser usado, requeria um estranho equipamento, acoplado na traseira dos veículos. Lembro que passava perto dessa nossa casa, todos os dias, um padeiro vendendo pãezinhos, que eram extremamente deliciosos, em um desses carros movidos a gasogênio. Todos os dias, comprávamos um ou dois desses pãezinhos. 

No ano seguinte, passamos a frequentar o Grupo Escolar de Marília, uma bela escola, séria e eficiente, que ficava distante. Tínhamos de usar uniformes. A minha professora, Isollete, era uma excelente profissional, embora perdesse a paciência com certa facilidade. Comecei no segundo ano; foi ali que aprendi realmente o que interessava. No terceiro ano, tive de mudar de escola, pois mudamos para o interior de Assaí, no Paraná. 

No bairro de Marília, fizemos amizade com algumas pessoas. Uma senhora, que morava do nosso lado, numa casa pequena, tornou-se amiga de minha mãe, e começou a lavar toda nossa roupa. Não me lembro do seu nome, Lidia, talvez, mas ela ia sempre para a nova casa para nos ajudar. Eram pessoas de nível moral elevado, embora pobres. O marido já estava aposentado, com três filhos, dois homens e uma moça. Todos trabalhavam e pareciam pessoas sérias. 

Certa ocasião, surgiu uma notícia preocupante: os comunistas iriam passar pela nossa rua. Ninguém deveria sair de casa, pois, afinal, entendia-se que nós não podíamos, sequer, ver tais indivíduos. 

É claro que nos escondemos. Todos nós ficamos assustados com aquele acontecimento. Logicamente, aqueles comunistas passaram por lá simplesmente fazendo algum tipo de propaganda e nada de dramático aconteceu.

Hoje, nós sabemos que os comunistas são seres humanos iguais a nós, talvez com ideias melhores. Mas, naquele tempo, para nós, crianças, a ideia de tudo aquilo parecia horrível.   Nessa época, Getúlio Vargas havia deixado de ser presidente do país e, em seu lugar, havia sido eleito o general Eurico Gaspar Dutra. Foi bom?  Não sei. Discutível, talvez. 

Muitas outras coisas aconteceram naquele lugar. Perto de nossa casa havia um pantanal, muito grande, cercado por precipícios enormes, perigosos.   Íamos sempre lá para pescar. Na volta do Grupo Escolar, andávamos por um lugar onde havia uma grande fonte de água natural. Várias pessoas apanhavam água para beber. Essa região, anos depois, foi transformada em um parque natural. 

Lembro-me, agora, que um dia o Zeniiti, depois de preencher um grande álbum de fotografias de jogadores, ganhou uma bola de futebol de verdade, com a qual brincamos muito. Vê-lo ganhar aquela bola foi sensacional. Brincar por aquelas ruas, pelos bairros de Marília, foi uma coisa formidável.      

Uma vez, cortei o meu pé esquerdo. Não sabia onde andava, no meio da rua, cheia de grama, e pisei num copo quebrado. Penetrou-me profundamente; fiquei alguns dias de cama, com o pé enrolado em panos fortemente amarrados. Depois, melhorei, mas ficou uma inchação pequena, que esqueci com o tempo. Em 1958, sofrendo novamente com a dor no pé, fui a uma farmácia, onde descobriram que era o resultado daquele acidente. Fizeram, então, uma incisão, após me aplicarem anestesia. Qual não foi a minha surpresa, quando vi sair de dentro do meu pé um pedaço de vidro, que ficara lá por todos esses anos.

Praticamos, depois, um esporte denominado “kendô”, na realidade uma luta de espada japonesa. O meu pai tinha um amigo, um ilustre professor dessa modalidade esportiva. Não era difícil, mas ajudou-me a entender um pouco do espírito japonês por meio da luta dos samurais. Trajávamos roupas especiais para a prática do “kendô”. Foi algo de bom que aconteceu comigo. Havia até um clube para tal fim ali perto. 

Foi também naquela época que nasceu Goro, meu irmão, que viria a falecer em condições terríveis. Tantas coisas aconteceram em nossas vidas, que temos de ter tempo para equacioná-las. Do contrário, elas passam e nem chegamos saber por que teriam acontecido. 

Ainda em Marília, chegamos a nos mudar para uma casa de cimento, no centro da cidade. Era uma belíssima residência, em que havia todos os móveis altamente adequados. Pensei, no início, que eram emprestados. Havia móveis para a sala de visita, para a sala de jantar, para a cozinha, para os quartos, para tudo. Todos de boa qualidade. Contudo, não moramos muito tempo naquela casa.

A nossa vida em Marília, principalmente nessa nova casa, no centro, foi ótima, por várias razões. Os colegas eram melhores e os nossos relacionamentos também. Vivíamos, como se dizia, como gente grande então. 

Uma vez, estavam montando um circo, um parque com rodas-gigantes e outros brinquedos. Honestamente, não sei o que aconteceu: no meio das crianças, alguém empurrou com os pés uma lata de tinta, que caiu. Todos correram e eu também. 

Ao chegar a minha casa, descobri que um homem lá estava, querendo receber o custo de uma lata de tinta que eu teria derrubado. Falei com meu pai, no escritório dele, que não havia sido eu. Fosse por que fosse, ele pagou. E o assunto ficou por isso mesmo. As coisas aconteciam, ficava com a impressão de que havia feito, e não havia sido eu. Por que isso acontecia? 

– Eu acredito sinceramente em você. Mas, ele não acredita. Vou pagar, só para encerrar a questão – informou meu pai.

Em Marília, foi onde vi chegar um trem com soldados que haviam ido lutar na Itália, na Segunda Guerra. Foi uma festa em que todos os grandes homens da cidade lá estiveram para cumprimentar tais soldados. Alguns anos mais tarde, eu soube que tais soldados ficaram na rua, sem terem para onde ir, perdidos e esquecidos. 

Uma vez, ao voltar da escola com um grupo de colegas, um deles, sempre agressivo, ofendeu-me e exigiu que o enfrentasse. Não queria brigar com ninguém, sobretudo com ele, que parecia ser muito forte. Não entendi bem como as coisas aconteceram, mas, de repente, começamos abrigar, e não é que acertei de mau jeito, com o meu pé, o nariz dele, que começou a sangrar. Ele, evidentemente, ficou apavorado. Na hora, também me atrapalhei, pois não esperava aquela reação. 

Pude, então, ter consciência, como uma lição da minha vida, de que, quando necessário, tínhamos forças suficientes para enfrentar pessoas muito mais fortes. 

A cidade de Marília me traz muitas outras lembranças… Como a de um colega de escola que pertencia a uma família que tinha uma indústria de artefatos agrícolas, onde ele trabalhava após as aulas. Um dia, convidou-me para visitá-lo. Fiquei surpreso com o que vi. Fabricavam maravilhosamente máquinas para plantar cereais na roça, ou para espalhar veneno contra as pragas que apareciam nas plantações. O rapaz, nosso colega, era um dos caçulas naquela família. 

A relação com minha mãe, sincera, boa, começou ali, em Marília, quando ela me pedia para comprar sorvetes no bar da esquina, e o tomávamos em silêncio, naquela hora tardia da noite. Gostávamos, intimamente, daquilo que fazíamos. Tudo era bom naquela época. 

Uma vez meu pai chamou-me e perguntou se eu poderia ir até Guaimbé, levar alguma coisa para o meu tio, que morava naquela cidade. Claro que concordei, embora, na ocasião, tivesse apenas dez anos. No dia marcado, ele me levou à rodoviária, colocou-me no ônibus, e disse-me para tomar muito cuidado. Depois de rodar por quase duas horas, cheguei a Guaimbé, à casa do meu tio. Fui recebido com uma grande festa, por ter conseguido chegar até lá. Meu tio elogiou o meu esforço. Aprendi, com o tempo, a enfrentar com valentia as coisas que apareciam. 

Meu pai era bom comerciante. Talvez fosse um bom agricultor, mas o comércio era a matéria onde ele se dava bem. Sabia quando e como deveria comprar alguma coisa e, igualmente, quando e como vender.  Geralmente, dava-se bem na área comercial. Por isso, seu escritório, que começou pequeno, cresceu muito, tornando-se, com o tempo, talvez o principal do ramos da sericultura, que cuida da criação de bichos-da-seda. Os comentários, no entanto, não eram bons.

– Não estaríamos ajudando os americanos do norte na confecção dos seus paraquedas? Deveríamos continuar, ou não? 

Foi nessa época que surgiram os “Shindo-Renmeis”, um grupo de radicais japoneses, que começou a matar outros japoneses que entendiam que o Japão havia perdido a guerra. Eles, os membros dos “Shindo-Renmeis”, haviam concluído que o Japão ganhara a guerra e que as rádios transmitiam notícias erradas. Se alguém dissesse o contrário, morria. Nem precisavam dizer isso de forma clara e evidente, bastava dar a entender isso. A reação era horrível. 

Meu pai tinha um amigo, relojoeiro, que havia dado a entender, em algum lugar, que o Japão havia perdido a guerra. Um belo dia, um dos membros do “Shindo-Renmeis” foi lá, chamou-o, e, do meio da rua, atirou com sua arma no pobre homem, matando-o. Quem o conhecia, como o meu pai, ficou fulminado com tudo aquilo. Além disso, soube então meu pai que seu nome constava da lista, e que, a qualquer momento, ele também corria o risco de ser morto.          

Provavelmente, foi isso que o levou a abandonar aquela atividade em seu escritório, que ficava em frente ao bazar do meu tio Keigo, no centro de Marília. Tivemos de deixar aquela nova casa, que tanto bem-estar e conforto nos havia proporcionado, e fomos para o interior  de Assaí, no estado de Paraná.

 

 

Capítulo II

Pelos geradores do futuro

8.

 

Comecei a trabalhar, efetivamente, aos onze anos. Foi no sítio do meu tio Rokuro Ito, no interior de Assaí, estado do Paraná. Para lá fomos em abril de 1947. 

Ir para Assaí, para mim, foi uma aventura. Estava atento a tudo o que acontecia. Colocamos todas as nossas coisas no caminhão e saímos de Marília, à noite. Lembrava-me que estava deixando aquela cidade, que havia sido tão magnânima para todos nós. Aos poucos, na estrada, Marília saiu do meu campo visual e ingressamos na escuridão da noite. 

No dia seguinte, pela manhã, já estávamos atravessando a balsa para cruzar o Rio Paranapanema e ingressar no estado de Paraná. No meio da mudança, não estávamos muito bem. Incomodavam as coisas. Não podíamos sequer conversar com familiares, cada um se sentou em lugares diferentes dentro daquele caminhão. Meu pai comprou chocolates e os distribuiu entre nós. E continuamos correndo. 

À tarde, chegamos ao sitio do tio Ito, em Caviúna, no interior de Assaí. Foi uma alegria. Pela primeira vez, eu via aquele tio, e também sua esposa, minha tia, e seus filhos, nossos primos. Para nós, era uma curiosidade. Não sabia em que pensar. Cansados da viagem, ficamos satisfeitos por termos chegado enfim. 

Na realidade, aquele foi um encontro importante. Eu não sabia ainda por que tínhamos ido para aquele lugar, para morar com eles. Nossas coisas, que trouxemos de Marília, no entanto, lá estavam. 

Só bem mais tarde soube a razão de sairmos de Marília, e o drama que meu pai enfrentou, deixando de vender material para a sericultura, para fugir do risco de ser assassinado pelos extremistas do “Shindo-Renmeis”. 

Não me lembro por quanto tempo ficamos por lá. Talvez um ano, ou algo mais. Foram tempos produtivos, em que aprendi, pela primeira vez, a viver na roça. Nossos primos eram, como, de modo geral, as pessoas que viviam no lugar, bem fortes, sadias, alegres, talvez um pouco agressivas. Estávamos ingressando numa grande casa, pertencente ao tio Ito, de madeira, que parecia novíssima, com uma enorme varanda, na parte da frente. 

As mãos dele eram de pele curtida, os cabelos ralos, na cabeça, ele usava certo tipo de chapéu de tecido, diferente do nosso. Logo aprendemos a ser como eles, aproximamo-nos, usando as suas roupas, falando agressivamente, atuando como eles; aos poucos, acostumamo-nos àquela vida. Não sei por que, o nosso novo tipo de vida de certo modo nos envergonhava um pouco. 

A comida deles era simples, mas muito boa. A vida, para nós, naquele período, foi simples, embora dura. Trabalhamos bastante naquela casa, ao mesmo tempo em que aprendemos a conviver no meio da roça, nos adaptamos ao estilo do lugar. 

Zeniiti tinha então treze anos de idade. Era forte e ele se deu bem no lugar. Fez as amizades necessárias, e logo se integrou ao grupo local. Naquele lugar, o Mitsuteru, meu primo mais velho, cerca de um ano acima do Zeniiti, um bom rapaz, tornou-se líder, de forma espontânea. Ainda hoje, ele mora por lá. E nos parece estar feliz. 

O segundo filho, o Seiji, um pouco mais novo que o Zeniiti, fazia um esforço enorme para acompanhar o grupo da frente. A seguir, vinha o Mário, da minha idade, um tanto agressivo, e Yoshinori, dois anos mais novo do que eu. 

O Zeniiti, o Mitsuteru e o Seiji formavam o grupo da frente, pois eram os mais fortes, e, mais atrás, vínhamos nós, eu, meu pai, o tio Ito, o Mário e o Yoshinori, o segundo grupo. Quero dizer, formávamos a turma dos oito, um grupo que ia assim a todos os lugares. 

Desse novo núcleo familiar faziam parte ainda a minha mãe, Koharu, e a minha tia, além da Cecília, minha irmã, que era dois anos mais nova do que eu. E também o Kyozo, o Hiroshi e o Goro. Este veio a falecer naquele local de forma tão inesperada. Da parte deles, havia ainda cerca de cinco irmãos mais novos, todos pequenos, porém igualmente bons rapazes. 

No casarão do meu tio Ito, o número de quartos era grande e tudo era feito para facilitar as coisas. Nem tudo ficava limpo o tempo todo. O chão lá de fora era marrom, mas carregado, pois a terra roxa, como se diz, era altamente fértil. Havia cachorros, gatos e outros bichos. Era lá também que se batia o “mochi”, no início de cada ano e em ocasiões especiais. E todos viviam ali, com seus costumes. O ambiente era muito animado e festivo. 

De manhã, tomávamos café e íamos trabalhar. Não sei se era uma ordem, ou se passou a ser. Mas trabalhar sempre era uma norma geral. Com exceção dos pequenos, todos trabalhavam.

O sítio do meu tio Ito tinha cerca de dezoito alqueires. Em grande parte havia plantações de café, que eram a joia do lugar. Havia áreas onde se plantavam outras coisas, como arroz, algodão, milho; havia um bom pasto, com um pantanal enorme, onde ninguém conseguia penetrar. Muitos colonos viviam com suas famílias, na parte baixa, entregue às fainas locais. 

Todos nós ganhávamos uma enxada, que aprendíamos a valorizar, tendo os cabos lustrosos, e a parte metálica cortante, e com ela íamos carpir. Passávamos dias carpindo dentro do cafezal ou nas áreas onde eram plantados algodão, feijão, arroz ou outros produtos. Acordávamos cedo e levávamos os chamados corotes cheios de água para bebermos, pois o sol era forte, e tínhamos de trabalhar bastante. Aprendemos a colher algodão, o que tinha acontecido pela primeira vez, ensacando o produto colhido em fardos, que depois eram vendidos. Igualmente, aprendemos a colher o feijão, o arroz, ou o milho. Tudo era um trabalho que exigia de todos nós um grande empenho. 

Mais tarde, aprendemos a colher o café, quando chegava a época. Todos eram avisados quando se iniciaria a colheita, naquelas grandes áreas onde os pés de café estavam plantados em fileiras, sempre verdejantes. Era um trabalho interessante, pois inicialmente derrubávamos os grãos de café no chão, preparado antecipadamente, juntávamos com a esteira, depois peneirávamos, colocando o produto nos sacos, que eram levados à casa do tio, que secava tais grãos no terreiro cimentado para esse fim. Ficávamos provavelmente por mais de três meses colhendo os cafés. 

Quanto a mim, no primeiro ano, frequentei a escola, que ficava um pouco distante, juntamente com Mário e Yoshinori. Eles estavam no primeiro ano e eu, no terceiro. A professora dava aulas para o terceiro ano ao mesmo tempo em que dava aulas para o primeiro ano, uma vez que na escola só havia uma sala. 

Uma história que ficou guardada em minhas lembranças foi a de uma garota chamada Yoshiko. Conhecemo-la naquela escola. Havia entrado naquela mesma época, pouco tempo após o meu ingresso. Tinha mais ou menos a minha idade, era filha de alguém que já havia morado na cidade e ido depois para o interior. Vestia-se bem, era bonita e simpática. 

Nós gostávamos demais dela, porém, seria um sentimento inadmissível de demonstrar. Por isso, todos nós criávamos condições ruins para ela. Por tais e quais razões, ela foi ficando agressiva. Dava-se bem com as demais garotas, mas com relação aos rapazes, estava sempre pronta para umas brigas, embora só de palavras.

Um dia, durante um “undokai”, ela veio me ver. Eu estava encostado a uma árvore de café, para estancar o sangue que escorria do meu nariz. Não estava agressiva e falou normalmente.

– Como está, Lyoji? Parece que seu sangramento foi forte.

– É. Corri demais. Mas, vai passar logo – respondi.

– Precisa de alguma ajuda? – perguntou, olhando-me. – Não, estou bem agora – disse, meio sem jeito.

Depois, olhou-me bem, e desapareceu em seguida. Nunca mais a vi. Ela estava no terceiro ano, comigo, na escola. Fiquei sem saber se teria continuado naquela escola, pois, logo depois, também tive de deixar aquela instituição de ensino.

Foi, também, naquele “undokai”, um festival de esportes, com as pessoas da região, realizado na área da escola, que vi então um rapaz sobre quem todos comentavam que era o campeão do lugar. Sério, porém altamente capaz de realizar aqueles esportes mais perigosos, filho de um dos sitiantes. Rapaz alto, forte, dono de um carisma irritante, não quis aparecer. Não obstante, venceu todas as disputas das quais participou, com galhardia. Ficamos eu e os meus primos admirados com o mesmo.

Residia naquela região o agricultor Iwane, a quem conheci na casa do tio Ito.  Gostei do seu jeito, parecia ser uma pessoa excelente. Minha mãe falou-me que a esposa dele era considerada anormal, que era melhor tomar cuidado com ela. Algum tempo depois, passei perto de sua casa. Queria água, e não havia onde conseguir. Resolvi, então, recorrer a eles. Ela lá estava, e atendeu-me bem. Os filhos dela, bem pequenos, lá estavam, e nada vi de estranho naquele ambiente.

O local onde morava, no entanto, não era normal para o meu gosto, pois dava a impressão de que ela não estava feliz com tudo aquilo. Dizer, no entanto, quando uma mulher está feliz, ao morar na roça em condições tão adversas, era algo difícil de expressar. Só posso dizer que, tempos depois, numa bela noite, o Iwane estava todo cortado com machadadas, desferidas por sua esposa. Machadadas mesmo! Tudo aquilo chamou por demais a minha atenção.

Efetivamente, a loucura tinha voltado e assaltado aquela mulher, que, pegando um machado, avançou sobre as crianças, e, apesar da resistência oferecida por Iwane, cortou-o de forma violenta e brutal. Não chegou, contudo, a ferir as crianças. Nunca mais se ouviu falar na mulher do Iwane. Provavelmente, levaram-na para um hospício. Com relação ao seu marido, ficou um período hospitalizado, até que voltou. Não era mais o mesmo ser humano que conheci.  Já não andava bem, e seus cortes, nos dois braços e nas duas pernas, custaram a ficar bons. No início, ele ficou por lá, naquela casa do tio Ito. O vi trabalhando mais tarde, não mais na roça.

De que terá sido a culpa por tudo aquilo? Dela, como estranhamente eu pensava?  Ou terá sido dele?  Ficar com uma família, no meio do mato, por tanto tempo… Dava o que pensar. Tinha de entender que ele passava por uma fase extremamente difícil.

Tudo aquilo era um retrato da vida, lá na roça de Assaí. Algo de dramático tinha acontecido, mas não saberia dizer por culpa de quem.

Muitos outros eventos ocorreram nesse período em que residimos na casa do tio Ito. Uma vez, fui ao cemitério visitar um parente falecido. Foi interessante. A cidade de Assaí nos pareceu lúgubre na primeira vez em que a vimos, um sentimento que depois mudou, dando-nos a oportunidade de conhecer um local muito agradável.

9.

 

Meu irmão Goro tinha cerca de um ano e dez meses quando, em dezembro de 1947, veio a falecer. Tinha sofrido uma forte gripe, mas minha mãe, sob influência da minha tia, alimentava-o pouco, porque lá, naquele local, curavam os doentes dessa forma. Por alguma razão, meu pai aceitou aquelas recomendações dos meus tios, e não insistiu em alimentar o menino.

Minha mãe, levada pelos conselhos que ouvia, quase não o deixava comer. Dava-lhe remédios caseiros. O tempo passou e ela sentiu que ele, ao invés de melhorar, piorava. Piorava, apenas.

A doença do meu irmão era notícia no local, como tudo aquilo que por lá acontecia. Todos os dias, nos perguntavam como ele estava. Com lágrimas nos olhos, de tanto sofrimento, minha mãe não concordava com as recomendações de que não o alimentasse. Fiquei extremamente comovido com tudo aquilo, e não sabia o que dizer. O que eu, um garoto com pouco mais de onze anos de idade, poderia dizer sobre a doença do meu irmão mais novo?  Afinal, estava ocupado, trabalhando, junto com meu irmão Zeniiti, meu pai, meu tio e meus primos.

Na realidade, aquela união das duas famílias tivera fins utilitários. Nós, de alguma forma, imaginávamos que tudo aquilo estava certo. Por que lá estávamos para aprender. Efetivamente, por que será que uma família, que morava na cidade de Marília, viria ao interior de Assaí, se não estivesse tentando viver a vida do interior, tentando acostumar-se aos costumes locais?  Pelo menos, era essa a imagem que todos nós tínhamos. Equivocadamente, depois verificamos.

Num determinado dia, passados quase dois meses ouvindo as fortes lamúrias da minha mãe, meu pai resolveu levar o Goro à cidade, a dezoito quilômetros, por estrada de terra, para mostrá-lo ao médico, o dr. Bardall. Ele sentiu que se não tomasse essa providência, o garoto poderia morrer. Não quis mais ouvir as opiniões dos outros. Tomaram um ônibus e foram à cidade. O médico o examinou e disse que ele estava muito doente, receitando-lhe uma série de remédios.

Depois da consulta, hospedaram-se no hotel local. Chovia torrencialmente na ocasião e, em determinado momento, como o quarto ficava no andar de cima, minha mãe tentou fechar a janela, quando, de repente, sentiu que toda ela se soltara. Deu um grito abafado e segurou a janela, que poderia ter caído e se despedaçado lá embaixo. Teve aquele brio e, diante daquele impacto, sentiu profundamente que alguma coisa tinha acontecido. Foi ver o menino Goro e ele estava morto. Correram ao dr. Bardall, que, ao vê-lo, nada mais pôde fazer.

De repente, meu pai deu-se conta de que tudo aquilo ocorrera em consequência de todas aquelas conversas que teve com meu tio e minha tia. Nós estávamos lá para aprender tudo. Aprendemos, contudo, por meio de um gravíssimo equívoco.

Meu pai, que até então eu nunca havia visto chorar, chorou, e muito, no dia do enterro. Por que será que tudo aquilo teria acontecido? Perguntava, sem saber o que responder. Vieram muitas pessoas amigas ou que tinham alguma relação com meu tio, para lá estarem juntas na hora do funeral.

Minha mãe, então, nem se podia falar com ela, tão amarga estava em sua dor. Nunca ela imaginara que tudo aquilo poderia acontecer. Por que acontecera?  Ela não sabia dizer. Sem que ninguém pudesse dizer qualquer coisa, minha mãe e meu pai compreenderam que tudo aquilo ocorrera em consequência das influências daquele grupo.

– Por que será que deixamos tudo isso acontecer? Como terá sido possível?

Levamos depois o corpo de Goro, numa delicada caixinha, para o Cemitério de Assaí. E lá o enterramos. Foi dramático ver um irmão, tão querido, ser enterrado lá, sem qualquer palavra de salvação.

Muitas vezes depois, sonhamos com tudo aquilo que lá aconteceu. Frequentemente sonhava que Goro voltava, ou que estava com vida. Às vezes, pergunto-me por que ele teria morrido. Será que para nos ensinar que tudo deve ser feito dentro das regras que intuímos como verdade?  De certa forma, sabíamos que nós, os citadinos, éramos mais fracos do que os interioranos; eles estavam mais curtidos com aquela vida mais difícil. Ficou-nos uma história triste, no entanto.

A morte de Goro deixou em todos nós uma lembrança, uma lição, algo sobre o qual não poderemos esquecer. Por alguma razão, que não entendi, ele morreu. Tinha de morrer? Não, possivelmente não tinha de morrer. Morreu, lamentavelmente, em seis de dezembro de 1947, na cidade de Assaí, no estado do Paraná.

10.

 

Aprendi muito com o meu tio Ito e os meus primos. Fomos nós que deixamos que eles nos influenciassem. Meu pai sentiu, pela primeira vez, algo de realmente grave acontecer em sua vida: a morte de seu filho, Goro. Mudamos, após esse episódio, para o nosso sítio, um terreno ao lado do tio Ito, que havíamos arrendado por quatro anos. Tinha cerca de onze alqueires, setenta por cento dos quais plantados de café, cujos pés estavam começando a dar frutos, após quatro anos. O restante do lugar era reservado parra outras plantações. Havia lugar para pasto e para residência dos colonos. Do outro lado do pasto, depois do rio, havia uma floresta, de mata virgem.

Lá fizemos muitas coisas. Afinal, era o nosso lugar. Plantamos um pouco de tudo, algodão, arroz, feijão, milho e outros cereais. Até melancia. Havia uma chácara onde existiam maças brancas, doces e pés de cana-de-açúcar.

Fomos viver em uma casa de madeira recém-construída, de três cômodos, erguida na parte superior do lugar. Era uma construção pequena. Evidentemente, não seria suficiente para nós. Meu pai resolveu construir uma cozinha enorme, no outro lado, com paredes de barro. Moramos por lá, um pouco longe da casa dos colonos, que ficava na parte baixa, perto do rio. Lembro-me que existia até uma casa de madeira, coberta de telhas, próxima da nossa casa, onde muitos camaradas, os serviçais da roça, dormiam.

Um dia, lá no sítio, meu pai estava conversando com um camarada, quando me aproximei dele. Discutiam, em um clima amigável, sem problemas de relacionamento, o quanto meu pai deveria lhe pagar de salário. Ele achava que determinado valor era suficiente para o camarada. Este dizia que não, que precisava de maior importância. Foi quando meu pai, olhando-me, perguntou-me o que achava de tudo aquilo, certo de que eu aprovaria as suas proposições.

Eu, perguntado subitamente dessa forma, procurei responder o mais corretamente possível. Sem entender o sentido capcioso da pergunta disse-lhe, com a maior ingenuidade, que achava que aquele camarada deveria ganhar aquilo que estava pleiteando, mesmo porque, honestamente, em outra localidade, outro sitiante pagava esse valor.

O camarada, mais do que depressa, interveio, e disse, apontando-me, amigavelmente:

– Veja, se até seu próprio filho reconhece aquilo que estou lhe dizendo, não há razão para a discussão.

E, assim, depois dos entendimentos de praxe, eles encerraram a discussão. Nunca tinha passado em minha mente que o propósito de meu pai era de que eu o apoiasse. De qualquer forma, eu era uma simples criança, sem entender questões de negócios. Depois, soube que havia falhado em algo que meu pai desejara. Foi, de qualquer forma, sem querer.

Tempos depois, minha mãe, comentando esse fato comigo, disse-me em tom de brincadeira, que eu era uma pessoa honesta em minhas opiniões. E que, em razão disso, sem desrespeitar o pensamento do nosso pai, externava as minhas próprias opiniões. Não entendi a questão naquela oportunidade. Hoje, compreendo perfeitamente por que meu pai me fez aquela pergunta. Talvez tivesse ficado um tanto decepcionado. Porém, ele me entendeu.

Numa ocasião, meu pai comprou uma bicicleta para o Zeniiti. Era de estilo moderno, verde-azulada, de aro número 24, um encanto de coisa. Deixou-me maravilhado. Nunca havia visto algo tão bonito. Meu irmão deixava-me andar nela, de vez em quando.

A partir daí, comprar uma bicicleta tornou-se um dos meus maiores desejos. Meu pai, depois de um ano, comprou outra bicicleta, agora de aro número 26, maior ainda, de cor lindíssima. A ideia dele era a de que esta nova bicicleta iria para o Zeniiti, sendo que eu ficaria com a antiga. O acerto ficou por nossa conta. Por estranho que pareça, o Zeniiti ficou mesmo com a bicicleta antiga, menor, embora ele fosse maior do que eu era, acabei ficando com a mais nova. E assim andávamos, sempre, estranhamente. Tudo muito engraçado, mas certo.

Nesse período, no sítio, lidamos, também, com todo tipo de gente, boa e ruim. Lembro-me que em Caviúna, tivemos vários colonos. Um deles, Spargetti, tinha quarenta anos e possuía alguns filhos mais ou menos da nossa idade. O filho mais velho não era o mais popular, era o segundo, mais alto, mais produtivo também nos trabalhos; havia também uma garota bonita. Era um bom colono, descendente de italianos. Tínhamos de saber lidar com suas mudanças de humor, embora fosse excelente pessoa. Qualquer coisa que realizássemos e que pudesse ser considerada boa, o fazia sorrir, mas, se a julgasse ruim, subitamente ele se fechava.

Uma vez, aquele filho mais velho, o mais criativo da família, fez um moedor de cana-de-açúcar em madeira. Era simples, bem feito, mas ninguém sabia se funcionava. No dia da inauguração desse moedor, todos nós lá estávamos esperando que funcionasse. Funcionou, embora precariamente. Pouco tempo depois, deixou de funcionar, porque suas partes se quebravam facilmente.

Esse colono, Spargetti, tinha trazido, quando de sua vinda ao nosso sítio em Caviúna, outro colono, mais moço, porém de idêntica natureza, igualmente bom, mas muito esperto. Quando alguma coisa ficava ruim, ele se fechava. E, como era um homem forte, todos o temiam. Não que fosse fazer algo de ruim, mas para evitar que alguém o encontrasse naquele estado. Quando as coisas não ficavam bem, ninguém podia chegar perto dele. Os dois casais, por estranho que parecesse, davam-se bem.

Os filhos do primeiro casal eram nossos amigos. Estávamos sempre juntos e realizávamos muitas atividades em comum, como trabalhar, pescar, caçar ou outras coisas próprias dos adolescentes como nós. Momentos bons aqueles, pois, afinal, estávamos na flor da idade. Era a própria vida, com todos os seus contornos.

Uma das histórias das quais me lembro é a do Zulmiro de Oliveira, um aventureiro nordestino, que por lá apareceu, e quis se tornar amigo do meu pai. Parecia ser uma pessoa confiável. Veio mostrando que era um hábil manejador de animais, e que tinha uma rara habilidade em usar laços de couro de vaca. Foi ficando, e acabou se assentando, em parte porque meu pai queria.

Outra coisa, na qual o Zulmiro parecia ser imbatível era com relação aos remédios. Ele dizia conhecer uma espécie de magia, aprendida na Bahia, sua terra natal. No final, fiquei sem saber nada sobre suas magias que “tudo curava”.

Zulmiro sabia, como ninguém, aproximar-se das pessoas. Nós, que não éramos suficientemente inteligentes, acreditávamos nele. Os colonos, inclusive, já haviam nos alertado que, um dia, o Zulmiro faria uma sujeira qualquer e fugiria, tomando rumo ignorado.

Tinha ele cerca de trinta anos de idade, moreno, inteligente, vivia provando que era uma pessoa direita. Era um bom açougueiro. Acabou se tornando um fiscal dos colonos que por lá trabalhavam. Logo depois, trouxe sua família, uma bonita garota, que dizia ser sua esposa, e um filho, pequeno ainda. Ela deveria ter vinte anos ou um pouco mais.

Ficou conosco por vários meses. Matava gado, para vender a carne. Até que, num belo dia, desapareceu. Não sei se levou alguma coisa; é possível, mas meu pai não nos relatou. Zulmiro devia, contudo, importâncias em dinheiro.

Meu pai nos chamou e disse que algo estranho havia acontecido: o Zulmiro desaparecera. Por respeito, nada lhe perguntamos. De outro lado, ele lamentava aquele desaparecimento, porém entendia que havia sido algo de bom para todos nós. A história de Zulmiro, que se tornou engraçada depois, foi logo esquecida. O tínhamos em alta conta e esperávamos muito dele. Contudo, pouco retribuiu. Ele matava as cabeças de gado, de forma até inteligente. Ele dava, de início, uma martelada na cabeça do animal, que desmaiava, E, então, usava a sua faca. Depois, fazia seu trabalho de açougueiro, no que era excelente. O Zulmiro não correspondera às expectativas do meu pai. Foi mais uma história daquele lugar.

De qualquer modo, o café do sítio começou a ser altamente rentável, porque seu preço subia de forma impressionante. Para nós, tudo aquilo era fantástico. Dentro do cafezal, plantávamos outros cereais, que colhíamos depois. A colheita do café era muito trabalhosa; além disso, tínhamos de lavá-lo e secá-lo no terreiro, por vários dias, ensacá-lo depois, para posteriormente vendê-lo. Levávamos muito tempo em toda essa faina. Era o nosso dever, a nossa vida de então.

A vida de cafezeiro, igualmente, é cheia de coisas boas. Havia até uma cabana, ou melhor, uma casa de madeira e telhas, que havíamos construído ali perto para guardarmos o café colhido. Trabalhávamos muito para que tudo saísse bem, houve até um jovem casal que ali morou algum tempo, exatamente na época batalhosa da colheita de café. Eram pessoas encantadoras, prontas para o que fosse necessário. Lembro-me que ficávamos depois do trabalho pesado do dia, descansando ali, junto com eles, tomando o café que nos serviam, deixando o tempo passar. Naquela época, entendíamos que aquilo era o melhor que poderíamos esperar, para a nossa vida na roça. Depois, não me lembro o que aconteceu, mas as coisas naturalmente mudaram, e essas pessoas foram trabalhar em outros lugares.

Recordo-me uma vez que havia um camarada, totalmente careca, que era um encanto de pessoa. Tudo com ele estava certo, era impossível, pensávamos, de ele fazer algo que pudesse nos ofender. Um dia, o encontramos bêbado, totalmente desfigurado, falando em voz alta coisas desagradáveis a nosso respeito. Ficamos chocados.

No dia seguinte, lá estava ele, normal, como se nada tivesse acontecido. Ficamos afinal duvidando de todos nós, e das coisas que tinham acontecido. Tempos depois, encontramos novamente tal homem, embriagado, dizendo coisas ruins a nosso respeito. Fomos vê-lo e este nos ameaçou de morte, de forma que nos afastamos. Descobrimos que toda a vez que ele bebia, tornava-se uma pessoa impossível de se aguentar. Ficou ainda algum tempo perto de casa, trabalhando, mas não confiávamos mais nele, pelo risco que representava. Depois, ele acabou se afastando.

A súbita alta do preço do café foi algo inesperado para todos nós. Ficávamos ali, rindo silenciosamente. Subiram tanto os preços que, ao final do segundo ano, o Kami, dono do terreno, disse-nos que o nosso prazo de permanência de dois anos havia terminado, e que, por isso, deveríamos sair daquelas terras. Ele nos mandou uns escritos em língua portuguesa, dando esse prazo.

– Como dois anos? Se os escritos em língua japonesa davam-nos quatro anos de arrendamento? – perguntava meu pai.

Ficamos estupefatos, com tudo aquilo. Em decorrência disso, um advogado do Kami, lá de Londrina, chamou meu pai para conversar. Ele foi até Londrina, levando os escritos em língua japonesa e mostrou-lhe, para provar que realmente era o único documento que teria valor legal. Falou com tanta convicção, que o advogado acreditou nele. Meu pai não voltou mais a falar com aquele advogado de Londrina. Porém, resolveu sair do terreno, desde que o Kami atendesse a algumas de suas reivindicações. Lamentava aquele triste acontecimento, porém sabia, por outro lado, que o Kami era muito amigo do seu irmão, o meu tio Ito, a quem devíamos muito favores. Não queria ele, de fato, deixar o sítio. No entanto, achou melhor sair, sobretudo depois que surgiu a história da Fazenda Hiraó, com cerca de cem alqueires de tamanho, no bairro de Bálsamo, perto de Assaí.

Ele foi então a São Paulo, procurou a diretoria do Banco América do Sul S.A., onde lhe garantiram que, realmente, aqueles cem alqueires da Fazenda Hiraó poderiam se arrendados. Isso não só pelo prazo de cinco anos, mas pelo prazo de dez anos, com renovação.

A vida no sítio de Caviúna era algo de arrebatador. Não sei, até hoje, se queria de fato, naquela época, ser um sitiante. Foi um modo que encontrei para poder falar com meu pai. Conversava com ele sobre vários assuntos. Ele sempre me dava elementos para pensar melhor. A reflexão sobre esses acontecimentos viriam a me ajudar no futuro.

Digo que pensava, e é claro que terei pensado. Dizer, no entanto, que imaginei, por quê?  Não sabia ainda qual a diferença entre pensar e imaginar. Hoje, sei que imaginar é ter imagens em ação, como nos ensinou González Pecotche, e que tudo o que imaginamos não corresponde à realidade. Embora nada exista sem o concurso da imaginação; é pensando que construímos um mundo melhor, mais real, mais sensível. São lições que aceitamos na nossa vida, para torná-la melhor.

De alguma forma, lá aprendi a viver e a sentir com mais profundidade as coisas que estavam acontecendo. Uma vez, recordo-me ter visto um rapaz, que por lá estava, olhando para minha irmã, Cecília, que teria seus doze anos. Disse-me ele, com a maior sinceridade.

– Olha, que beleza de garota. Ela é imensamente bela – falou, suspirando.

Naquela hora, olhei para minha irmã e vi que ela realmente havia crescido, e era uma bela jovem. Nunca, antes, havia reparado nela como uma garota excepcionalmente bela.

Aliás, é bom relembrar que nós vivemos naquele lugar por dois anos, e que tudo correu dentro de condições difíceis. Minha mãe, no início, para sobreviver, costurava roupas. Do contrário, nem teríamos dinheiro para comprar a comida necessária. Todavia, tudo aquilo era agradável, embora, na verdade, não quisesse ficar por lá, pois tinha sempre sonhos maiores.

Quem criava os meus sonhos era a minha mãe. Talvez, eu mesmo tivesse participação neles. Nosso sonho era morar em grandes cidades, como São Paulo ou Rio de Janeiro. Morar no interior, até que poderíamos, mas seria sempre a prazo limitado. Por quê? Não sei até hoje.

Certa vez, resolvemos comprar um caminhão. Ora, para nós, comprar um caminhão em 1949, era algo inolvidável. Porém, precisávamos dele, e surgiu a oportunidade de comprar um, da marca Chevrolet, ano 1942. O antigo dono, um dos maiores fazendeiros da região, dispôs-se a ensinar-nos a dirigir tal veículo de forma correta.

Quando o dia do treinamento chegou, Zeniiti, que tinha cerca de quinze anos, foi incumbido de aprender a dirigir. Fui com ele, para aprendermos como guiar um caminhão. Meus pais tinham viajado para São Paulo. Cecília e os outros irmãos mais novos ficaram em casa. Isso não era bom, havia muitos camaradas desconhecidos, perto de casa, trabalhando. Fiquei acompanhando, atento, as lições de direção. Entendi tudo, apesar de ficar na parte traseira do caminhão. Depois, quando retornaram, por volta do meio-dia, agradeci, mas resolvi retornar para casa, a fim de acabar com aquelas preocupações.

Zeniiti aprendeu a dirigir o caminhão com muita habilidade. Tornou-se um “expert”. A partir dali, nunca mais consegui chegar perto de meu irmão, naquele estranho ato de dirigir bem um veículo.

Descobrimos, então, que o tio Ito, que morava no sítio ao lado, não tinha ainda nenhum caminhão. Porém, logo depois, comprou um caminhão da “Internacional”, uma das melhores marcas de carros importados da época.

A compra daquele caminhão, para nós, foi um achado. Foi útil para todos os fins. Rodávamos com ele de um lado para outro. Na época, aquilo foi o máximo dos acontecimentos. Talvez, se fosse hoje, eu tivesse outra visão de tudo aquilo.

Outros fatos marcantes aconteceram naquele lugar. A um quilômetro do nosso sítio, havia uma “venda”, uma casa onde se vendia de tudo. Para nós, era uma salvação aquele “boteco”, pois quase tudo de que precisávamos, comprávamos ali.

Pois foi lá que houve, uma vez, um grande drama. O dono do “boteco” era brasileiro, descendente de italianos, muito bravo, e que tinha uma filha muito bonita, a quem todos queriam ver e enamorar-se. No interior, ter uma filha transformava-se num problema, se fosse então uma mulher particularmente bonita, como era naquele caso, tornava-se um problema ainda maior. Além do mais, com um pai bravo, daqueles que não confiam nos outros, a questão se multiplicava. Foi o que aconteceu.

Mas foi um descendente de japoneses que se encantou demais pela moça bonita. Ora, naquele interior de Assaí, um descendente de japoneses casar-se com brasileira era coisa raríssima. No entanto, por alguma razão, hoje compreensível, ele havia gostado daquela moça. E ela gostou dele também, embora o pai dela, não. Quando uma moça gostava de alguém, e seus pais não, tudo se tornava dramático. Os rapazes poderiam até ser mortos.

Descobriram depois que a moça tinha se encontrado com aquele rapaz mais de uma vez. Pegaram o rapaz e o surraram tanto, que ele depois não conseguiu sequer andar. No entanto, o rapaz era sério e valente. Fizera seus pais entenderem que se ele se casasse com a moça tudo se resolveria. Mais tarde, ele até se tornou um eleito dos sogros, o genro ideal para a belíssima filha. Acabou sendo um auxiliar, dos mais elogiados, dos donos daquele armazém.

São coisas que acontecem. No início, todos queriam matá-lo, só porque gostou de sua filha bonita. Surraram-no e quase o mataram. Depois, ele foi admitido na família, e se tornou efetivamente querido. Não é como hoje, que se alguém gosta de alguém, vai lá, conversa com seu pai, que aceita ou não, e tudo se resolve. Não, nada disso aconteceu. De qualquer forma, uma moça, belíssima como aquela, gostar de um descendente de japoneses, casarem-se, e, depois, torná-lo um filho admirado por sua família, não era uma coisa comum de acontecer. Era um drama brasileiro acontecido no interior de Assaí.

Naquele sítio, pude entender melhor o meu pai, como ser humano integral. Fazer a roça, não era fácil. Eu, Zeniiti e meu pai, que saíamos para trabalhar lá fora, na roça, todos os dias, assim que o sol aparecia. E lá ficávamos, até que o sol caísse, à tarde. Todos nós voltávamos, então, para casa, cansados. Era a nossa vida.

Tudo no mundo por descobrir. E nós, lá dentro daquele pequeno mundo, sem poder ver nada, a não ser por meio de revistas que, de vez em quando, nos chegavam, ou pelos livros que tínhamos. Líamos então a “Readers Digest” que era mensal e trazia notícias do mundo inteiro. Não obstante, meu pai queria que estudássemos. Porém, naquele lugar, não havia escola. Iríamos estudar sim, mas teríamos ainda de esperar um pouco.

Não podíamos ler bem à noite, pois não havia chegado ainda a eletricidade a Assaí. Usávamos lampião de querosene. As nossas noites, em casa, eram boas. Na cozinha, num grande fogão, queimava a lenha; havia uma grande mesa, para se sentar e conversar sobre tudo. Um ambiente amigável, efetivo. Conversávamos muito sobre todas as coisas. Dormíamos cedo, para trabalhar na manhã seguinte, quase de madrugada.

Certo dia, meu pai resolveu arrendar um grande terreno, por perto. Fomos para lá, plantar algodão. Colhíamos algodão e outros cereais. Tudo aquilo, naqueles alqueires a mais, era, por assim dizer, a nossa vida no interior de Assaí.

Naquele sítio, nasceu meu irmão Ferrúcio. Para nós, ele foi enviado pelos céus, um novo ser humano, em lugar do Goro, que havia falecido. Ficamos muito contentes com esse nascimento. Os anos, depois, comprovaram que nossa alegria tinha muita razão de ser.

A vida naquele sítio não foi longa. Do fim do primeiro semestre de 1948 até meados de 1950. Mas foram anos importantes para mim. Aos quatorze anos de idade, mudei-me para a Fazenda Hiraó, no bairro de Bálsamo, perto de Assaí.

Aqueles dois anos que por lá passamos foram fundamentais para mim, ajudaram-me a entender melhor as coisas. Eu era um ser humano normal?  Sim, esperava que sim. Porém, sei lá por que, tornei-me supersticioso. Aos poucos, fui conseguindo eliminar esses vestígios de crenças sem fundamento.

11.

 

A nossa ida para a Fazenda Hiraó não estava prevista. Surgiu de repente a ideia. Tudo indica que foi assim, em meio às questões que meu pai tentava resolver, que ficou decidido que sairíamos do sítio de Caviúna. Pensávamos, na verdade, em ir para São Paulo; por isso, não gostamos da ideia de arrendar a Fazenda Hiraó. Isso veio quebrar nosso grande sonho de ir para a capital do estado de São Paulo. Como contrariar meu pai, contudo, que veio com essa ideia que a ele parecia maravilhosa?

A Fazenda Hiraó não era um sítio como outro qualquer. Tinha cerca de cem alqueires de terreno, ficava em Bálsamo, perto de Assaí. Distante dois quilômetros. E, na sua maior parte, era ocupada por pés de café. Não eram, contudo, conforme constatamos depois, bons pés de café. Mas a terra prometia muito mais café do que poderíamos prever. Era, na realidade, algo espetacular, pelo menos para meu pai.

O lugar tinha quase trinta alqueires livres, para plantar o que quiséssemos. Eram áreas grandes, para plantar algodão, milho, arroz, batata inglesa, rami e outros produtos. Havia área de pasto, afora um grande pântano, meio abandonado, tendo, entretanto, peixes de diferentes espécies.

O encarregado anterior da Fazenda Hiraó estava saindo. Tinha feito um bom trabalho naquele lugar. Poderia ter ficado mais. No entanto, como arrendatários, teríamos de nos conformar com aquilo. Se ele fosse o próprio dono, teria, sem dúvida, realizado mais obras. Foi o pensamento que me ocorrera, naquela ocasião, quando fui ver a Fazenda Hiraó.

A casa principal, onde o encarregado anterior tinha fixado moradia, não estava ruim. A casa, simples, tinha de ser ampliada. Havia outras casas de colonos, umas boas, outras ruins, naquela baixada.

– Será que dará certo, se ficarmos por aqui? – era a pergunta que fazíamos a nós mesmos.

– Terá que dar certo! – era a resposta que vinha, respondida por nós.

Zeniiti, minha mãe, eu, todos nós nos perguntávamos isso. E é claro que tentávamos nos estimular, com a ideia de ficar por lá. Era o que queríamos, dizíamos a nós mesmos. Foi um início interessante, afinal de contas.

Plantamos de tudo naquela Fazenda Hiraó. Algodão, arroz, feijão, milho, tudo aquilo que nos poderia ajudar, inclusive dentro dos cafezais. Para isso, colocamos muitos colonos para carpir, arar, semear, colher frutos, realizar, enfim, a agricultura. E com tratores, que no início foram dois e depois transformados em quatro, trabalhamos muito naquelas terras. Descobrimos que os tratores não trabalhavam com tantos troncos de madeira, dentro do terreno, razão por que tínhamos de retirá-los. Arar o lugar era um problema, as máquinas quebravam e tudo se complicava. Porém, estávamos muito estimulados com tudo aquilo, de forma que, não obstante a dureza do trabalho, tinha valido a pena ter ficado por ali.

Quanto ao cafezal, era muito café para se colher. No primeiro ano, em 1951, tínhamos tanto café que nosso terreno não era suficiente para atender às nossas necessidades. Meu pai então descobriu que existia um secador enorme de café. Era tão grande, que o café era elevado para cerca de doze metros de altura, dentro de um sistema fechado, com aquecimento a vapor, motorizado. Aquecíamos aquele secador utilizando o óleo de motor dos tratores e outros combustíveis. O secador de café funcionou, a pleno vapor, por bastante tempo. O café vinha da roça, ainda meio verde, meio molhado, cheio de pedras pequenas; era lavado, primeiramente em um enorme tanque e, depois, era aquecido, dentro do secador. Foi dessa forma, que nos demos conta da grande produção de café daquela Fazenda Hiraó.

Nessa época, o preço do café estava tão alto, que parecia que iríamos enriquecer depressa. A quantidade de café era grande, e a qualidade do nosso produto era ótima. Tudo parecia um paraíso.

Plantamos tantos cereais e outros produtos, carpimos, tratamos com tanto carinho aquelas plantas, aplicamos drogas contra as pragas, e colhemos imensas quantidades de algodão, milho, arroz, feijão. Um trabalho enorme, mas recompensador. Tudo, de alguma forma, estava dando certo, não obstante as dificuldades.

Não só os tratores foram aumentados, mas também os caminhões. Meu pai chegou até a comprar um automóvel sedan, da marca “Nash”, zero quilômetro, importado dos Estados Unidos. Era um carro lindíssimo, lembro-me.

Construímos espaços na fazenda para guardar os tratores e os caminhões, além de uma garagem para o nosso lindíssimo carro. Criamos até uma oficina mecânica, para os consertos eram frequentes, pois não podíamos levar os veículos para a cidade toda vez que quebravam.

Na Fazenda Hiraó, tivemos, por duas vezes, em épocas diferentes, dois funcionários japoneses. Em ambos os casos, deu certo aquele tipo de colaboração. O primeiro foi um ferramenteiro, que vinha consertar panelas e outras peças de cozinha, e, depois de consertar, cobrava os seus preços e partia. Um bom funcionário, muito sério, que ficou conosco por cerca de dois anos; depois, casou-se, lá mesmo, dentro da fazenda, e, após acertar-se com meu pai, foi embora. Quanto ao outro, era um rapaz sério, mas brincalhão, e que gostava de conquistar garotas. Uma pessoa interessante, motorista profissional de caminhão, que viajava por grandes distâncias. Cansou-se disso, e resolveu ficar na fazenda por algum tempo. Ele era, como eu disse, um bom rapaz. Trabalhou por um bom tempo na fazenda. O trabalho dele foi ótimo, sob muitos aspectos.

Também foi naquela Fazenda Hiraó que meu pai teve uma discussão terrível com um vaqueiro que queria o pagamento, em dinheiro, para toda a turma, da qual ele era o representante. E meu pai dizia que não tinha aquele dinheiro, e que, por isso, não poderia pagar nada naquele dia. Eu, naquela ocasião, estava até preparado para qualquer eventualidade. No entanto, reconheço, hoje, que a situação ficou “preta”, como se diz quando as coisas ficam realmente difíceis de serem resolvidas. Vi que meu pai era uma pessoa corajosa. Quando tinha de dizer não, o dizia, sem a menor hesitação, depois de explicar suas sólidas razões.

Sempre achei, lá no íntimo, que meu pai não era um ser humano corajoso. Mas, nessas ocasiões, via o quanto ele era corajoso. Ele poderia até morrer com a faca afiada do vaqueiro, que a apalpava já desembainhada, enquanto conversava com meu pai, que nem ligava. Eu, que estava ali, senti até na minha carne aquela faca, que garantia o direito dos homens ali presentes. No entanto, como disse, meu pai não cedeu, de forma alguma, demonstrando uma coragem viril.

Todos os dias, acordávamos cedo e íamos trabalhar. Não sei, até agora, por que trabalhávamos tanto. Era o que todos nós fazíamos, de uma forma ou de outra. Quando fui ao sítio de meu tio Ito, tinha cerca de onze anos de idade. Não era a idade para se trabalhar. Desde então, nunca soube o que seria não trabalhar todos os dias.

Trabalhar, no entanto, tem sido algo de ruim?  Para mim, não, pois, de alguma forma, entendi que isso seria a forma normal de se viver. Viver sem trabalhar representaria algo errado.

Lembrar da Fazenda Hiraó sempre será uma tarefa complexa. Por exemplo, Masao Terada, grande amigo do meu pai, apareceu por lá, uma vez, para visitar-nos. Muito amigo de nossa família, depois de muita conversa, ele acabou levando sua família para viver naquela Fazenda Hiraó.

Ficou por lá, cerca de dois anos, com toda a sua família; tornou-se o nosso fiscal, para vigiar os nossos colonos. No entanto, apesar de ser nosso amigo, não era a sua especialidade aquele trabalho rural. De forma que, depois de passar esse tempo todo, por sua iniciativa, pediu demissão, e foi embora para São Paulo, sempre de forma amigável. Deixou-nos, no entanto, sua esposa, uma moça séria, e seus três filhos, dois garotos e uma garota, todos muito bons. A passagem de Terada deixou em todos nós uma grande saudade, pois ele continuava, como antes, um brincalhão, com quem nos dávamos muito bem.

Outro fato que ocorreu nesse período foi a visita da nossa prima Laurinha, uma garota lindíssima, já então uma moça com seus 18 anos de idade, em parte para definir o relacionamento com um rapaz lá na cidade de Assaí, o Ueno, que estava se candidatando para a função de vereador. No entanto, aquela visita dela, com sua mãe, a tia Hashimoto, foi um sucesso entre nós, pois além de alegrar o nosso ambiente, ela se dava bem com todos.

Num dia daqueles, ela foi conosco ao armazém de café, e vendo tantos sacos desse produto, ficou encantada. Viu o terreiro, a máquina de secar café, a fórmula para aquecimento, os caminhões e os tratores e tudo aquilo que aquele complexo representava. De noite, ela nos ensinou a dançar, o que, na ocasião, foi considerado algo de interessante. Laurinha estava, como sempre, pronta para o que fosse necessário. Naquela ocasião, ela nos disse que gostava realmente de um rapaz formidável, mas que ele tinha um grande problema.

– Que problema? – perguntamos.

– A bebida, pois ele toma bebidas alcoólicas em demasia. E isso sempre acabava criando problemas para o nosso futuro – disse, pensando muito.

Não fosse esse vício dele, ela se casaria com aquele rapaz, formidável em todos os sentidos. Não obstante, anos depois, ela se casou efetivamente com o Joaquim, um bom professor, que tinha de tudo de bom, mas possuía um grande vício, o de beber demais. Será que era dele, que ela estava falando?  Ficou-nos essa dúvida, depois. De qualquer forma, afinal de contas, as pessoas realmente acabam fazendo aquilo que querem. Foi a conclusão que nos ficou, de tudo isso. Posteriormente, depois de beber mito, sofrendo até mesmo de “deliriuns tremens”, por algum tempo, ele ingressou na associação dos alcoólicos anônimos, parando de beber como por um milagre. Não sei se tal parada seria definitiva. De qualquer forma, assustou-nos tal realidade, que nos pareceu algo precário. Anos depois disso, ele trabalhava para salvar outras pessoas, igualmente dominadas pelo álcool.

O trabalho naquela Fazenda Hiraó era algo que nos fazia pensar muito. Tivemos de trabalhar muito com os tratores, antes durante e depois da colheita de cereais, quer aprontando o terreno, arando, retirando e queimando os tocos de madeiras que lá existiam. Por exemplo, o trabalho na parte mecânica, consertando os tratores, os caminhões, etc., representava muito valor, pois poderiam atrasar as tarefas. Pelo que tivemos de realizar naquela Fazenda Hiraó, tudo ficou na nossa lembrança, como algo positivo, se não para o nosso futuro, pelo menos para a nossa vida de então.

12.

 

Relembrar da nossa vida na Fazenda Hiraó é, de alguma forma, reviver momentos que foram importantes para todos nós. Importantes talvez porque tivemos de trabalhar tanto e porque estávamos em formação, adolescentes ainda.

Um dia, nem me recordo como, veio trabalhar conosco um tal de Olímpio, que tinha um armazém junto à serraria do Kuri. Passávamos por ali, sempre que as circunstâncias nos exigiam, mas não éramos amigos da casa. Ouvia dizer que ele seria candidato a vereador da cidade, e que poderia vir a ser eleito. Depois de algum tempo, lá estava ele, um senhor de muito tirocínio, comandando as coisas, dentro da nossa Fazenda Hiraó. Não era um homem comum, dedicado apenas ao trabalho do dia a dia. Ele estava interessado em ganhar dinheiro. Eu, por exemplo, nem sabia quais eram exatamente as funções dele. Era, sem dúvida, um senhor livre, com muitas ideias, sobre as quais, ele nem sempre falava com meu pai, mas procurava as aplicar ali.

Começou trabalhando na colheita de café naqueles anos em que as geadas vieram para estragar tudo. Trabalhou muito, inclusive para salvar parte do cafezal. Além disso, trabalhou em outras áreas, sempre mostrando muito empenho em tais esforços. E ele, muito animado, sempre procurava criar condições para que tudo funcionasse bem.

Uma vez, ele me convidou para seguir em busca de terra com mistura de café, numa outra fazenda, que não a nossa. Tinha a autorização do meu pai para realizar aquilo. Na verdade, eu não estava bem a par por que tudo aquilo era feito. Pensei que era para ajudar o meu pai. Logo depois que chegamos a tal fazenda, pegamos nas pás e enchemos o nosso caminhão. Ele me explicou que aquilo era uma forma dele, Olímpio, ganhar algum dinheiro, pois depois que levasse a terra, usaria o lavador da Fazenda Hiraó, e metade daquele material seria do meu pai e a outra, dele. Não gostei daquilo, pois me pareceu um pouco mercenário.

Depois, nem sei mais o que aconteceu, ele desapareceu, seguindo para realizar outras coisas. No entanto, lembro-me dele como um tipo esperto, muito empenhado em realizar coisas nas quais ele levaria algum lucro. Não sei se meu pai ganhou alguma coisa com ele. No entanto, são aspectos da vida naquela Fazenda Hiraó.

Os trabalhos na fazenda nunca foram fáceis. Tínhamos os tratores para auxiliar-nos. No entanto, existiam tantos trabalhos, de tantas formas, que estávamos sempre cansados. Arar aquelas terras, aplainá-las, plantar algodão, milho, arroz, feijão, batata inglesa, rami, etc., etc., dava um trabalho enorme. Depois de plantar, tínhamos de carpir, as vezes, com os tratores, outras vezes manualmente. Matar os bichos que apareciam para comer aquelas plantações ou seus frutos, era outro trabalho que tínhamos de realizar. Posteriormente, tínhamos de colher, e em tudo tínhamos de obedecer ao tempo necessário, pois se atrasássemos tudo se perderia. O trabalho de apanhar algodão manualmente era grande e demorado. Além disso, não podia demorar. Se tomasse chuva, outro problema surgiria. Levávamos meses nesse trabalho.

Quanto à colheita de café, era enorme, igualmente. Tínhamos antes de proceder à colheita, de preparar o lugar, para tanto, afastando as terras do lugar, pois os grãos de café começavam a cair depois de amadurecer. Um trabalho enorme, esse preparo prévio. Depois, quando a época chegava, íamos, todos nós, colher aquele café. Nunca havia pessoas suficientes para a colheita de café. Tínhamos que ir buscá-las onde estivessem. Acontece que a colheita de café, quando começava, não era só conosco, mas todos tinham o mesmo problema. Dávamos algum jeito, de reunir as pessoas necessárias.

Derrubávamos os grãos dos pés de café, para depois, com uma esteira, juntá-los e, com uma peneira, retirar as folhas e as terras, que se juntavam. Logo depois, tudo era ensacado. Após isso, tudo era levado para o terreiro, que tínhamos em casa, exatamente para lavá-los e secá-los, a tal ponto, que poderia ser vendido na cidade.

Os operários ganhavam muito dinheiro com essa colheita de café, razão porque todos trabalhavam. Ficávamos de dois a três meses colhendo aquele café.

Os sacos de café amontoavam-se não apenas em dezenas, mas em centenas, pois eram os frutos que queríamos para vender. Tínhamos, quanto ao café que vinha da roça, como dito antes, de lavá-los e de secá-los no terreiro, muitas vezes utilizando o secador montado ali, e precisávamos realizar um grande trabalho, antes de vendê-los.

Além do café, trabalhávamos muito em outras áreas. Por exemplo, quando começamos a plantar batata inglesa, no início, pensávamos que não daríamos conta. Meu pai, no entanto, não obstante as dificuldades normais que adviriam, resolveu plantá-las. Assim, foi à cidade, comprou batatas pequenas, para servirem de sementes, e as plantamos. Tivemos muitas batatas, tanta que, depois, tivemos de colocá-las num caminhão, e eu e um motorista, saímos para vendê-las, no interior do estado de São Paulo.

As batatas que ali davam não eram tão boas como as oriundas do estado de São Paulo, pois as terras eram diferentes. As terras paulistas tinham muita areia, e, por isso, era melhores do que as do Paraná, onde a terra era roxa, forte, mas não tão boa. Comemos muita batata, portanto, naquela época. Se não conseguíssemos vender logo aquelas batatas, elas começariam a apodrecer, e começariam a cheirar mal. No entanto, embora não fossem boas como as batatas paulistas, o fruto em si, no Paraná, era bonito e saudável.

De igual forma, quando resolvemos plantar rami em nossa fazenda, as dúvidas então levantadas foram muitas. No Paraná, não dariam tais ramis, diziam, pois teriam que ser plantados no Amazonas. No entanto, pelo sim, pelo não, meu pai resolveu plantar. Deu tanto rami, então, naquela região, que colhemos por muito tempo. Compramos, para isso, um equipamento, para extrair os fios. Ligávamos tal máquina, colocávamos um monte de ramizal, e lá extraíamos o referido rami. Secávamos o rami ao sol, e posteriormente o vendíamos. E sempre eles queriam mais e mais rami. Essa foi outra das muitas aventuras do meu pai, que deram certo na Fazenda Hiraó.

Viver naquela Fazenda Hiraó, além de proporcionar uma vida cheia de aventuras, era, por outro lado, engraçada. Tudo, aliás, naquela fazenda, era objeto de reflexões, por parte do meu pai.

Naquela época, ele recebeu a visita do Kunito Miyasaka, então presidente do Banco América do Sul S.A., que, juntamente com mais dois ou três acompanhantes, veio ver como estava o arrendamento da Fazenda Hiraó, que era de responsabilidade daquela instituição bancária. Juntamente com meu pai, ele viu as imensas plantações de algodão e os cafezais sem fim, e, provavelmente, foi embora feliz com tudo aquilo que pôde constatar naquela ocasião.

Para melhorar os trabalhos daquela Fazenda Hiraó, meu pai começou a ter a ideia de que eu deveria realizar um curso de laticínios, pois achava que a criação de gado seria uma atividade do futuro. Depois de pensar muito no assunto, sempre concluía, que aquilo seria algo altamente produtivo. Pensando assim foi que surgiu a ideia de que, mais dia, menos dia, teríamos um grande pasto, com a criação de muitas centenas de cabeças de gado. Para isso, teríamos de aprender a lidar com leite, a fabricar manteiga, a elaborar queijos e iogurte e a tratar também de gado, de suas diversas maneiras.

Como a indústria de laticínios seria algo do futuro, precisaríamos de muita gente, pois bastava soltá-los no pasto, para tê-los. Igualmente, eles produziam leite, que poderia ser industrializado. Para lidar com gado, bastaria haver um bom veterinário. Por mais que ele calculasse, concluía que aquilo seria o ideal para o futuro profissional de todos nós.

Para realizar tais reflexões, nós líamos uma revista escrita em língua espanhola, mas publicada nos Estados Unidos, denominada “La Hacienda”, e que trazia todas as notícias daquelas regiões sobre a agricultura local. Por isso, resolvemos também comprar tratores, e realizar coisas que no Brasil eram consideradas novidades, como criar escavações, para evitar, naquela época, que as chuvas levassem todos os estercos ou reforços úteis das nossas terras. Outras revistas também frequentavam a nossa casa, para o nosso convívio diário. Não tínhamos televisão, que estava iniciando suas atividades. Tínhamos, contudo, rádio, cuja pilha durava cerca de dois meses. Ouvíamos nele as nossas novelas, que estavam iniciando. Assim, eu me atualizava com o que estava acontecendo no mundo.

Numa certa época, meu pai entendeu que Cecília deveria ir à cidade de Londrina, para lá ingressar num colégio de freiras, não para ser uma religiosa, mas para se educar. Não me lembro por quanto tempo ela frequentou aquele colégio, talvez algo mais do que um ano. No entanto, ela sempre voltava com novidades. Nunca sabíamos como ela estava. De qualquer forma, ficávamos com muita curiosidade para saber como era a escola dela.

Mais tarde, ela deixou de se interessar por tal escola, e, na cidade de Assaí, quis aprender a ser manicure e, depois, a ser cabeleireira. E, assim, ingressou num salão de beleza, onde procurou aprender tudo aquilo. Depois de algum tempo, estava indo bem. Meu pai comprou todos os móveis, inclusive com muitos espelhos e coisas assim daquele salão de beleza, quando resolvemos sair de Assaí e fomos morar em São Paulo.

Cecília tinha a sua vida na cidade de Assaí, pois era uma moça que se tornava cada vez mais bonita. Possuía muitas colegas, de forma que, antes de nos mudarmos de lá, ela se tornara uma pessoa importante, pelo menos no meio estudantil.

O Kyozo, meu irmão mais novo, também se tornara uma figura importante naquele tempo, pois frequentava a escola e tinha lá os seus amigos. Ele se destacava por outras razões, como sua maneira correta de ser, como sempre foi. Aos domingos, ele saía com o seu dinheiro, que ganhava de nosso pai, para ir ao cinema. E ficava feliz com isso. Ele trabalhava no trator, de forma que seu rendimento era assustador. Meu pai gostava dele, por tudo isso. De certa forma, o Kyozo sabia o que seria a vida ideal, pois sempre tivera uma vida normal, com forte compreensão de como deveria ser o ser humano.

Meus outros irmãos, menores ainda, eram o Hiroshi, o Ferrúcio e o Ricardo. Eram pequenos, davam trabalho, porém não causavam grandes problemas. Talvez, porque nós representávamos uma sociedade mais adulta, cheios de outros problemas. A vida que levávamos naquela Fazenda Hiraó foi importante para todos nós, por variadas razões. Minha mãe e meu pai viviam, como se poderia dizer, dentro daquelas circunstâncias, difíceis até, mas sempre bem, pois eles se entendiam agradavelmente. Nós, de outro lado, dentro também daquelas circunstâncias, vivíamos bem, de igual forma. Tudo, como sempre digo, com muito trabalho, mas sempre com dignidade. Por que tantas coisas aconteceram, e por que tantas coisas não sucederam como prevíamos, são outras questões, que nem sei como formular.

13.

 

Assaí fez parte da minha vida quando jovem. Conheci-a em 1947. Passei a visitá-la depois. Apesar de não ser uma cidade exemplar, sob muitos aspectos, não podendo ser considerada um lugar ideal para se morar, com ruas em mau estado, muitas pedras e lodo por toda a parte quando chovia, foi onde todos nós pudemos viver naquela fase difícil, porém fascinante, pois estávamos em plena juventude.

Criada quase por acaso, Assaí se tornou uma cidade dos japoneses que viviam naquela região. Situava-se ao norte do Estado do Paraná. Lá só havia terra roxa, ou vermelha, como se costumava dizer, um solo fértil, dando tudo o que lá se plantava. Foi fundada pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Ficou-me a impressão de que tudo ali brotou para atender aos japoneses em suas necessidades rurais. Provavelmente, começou de uma estrada, que ficou sendo a principal via da cidade, que levava até Curitiba e, de lá, para Paranaguá, onde os produtos locais eram exportados.

Assaí surgiu num lugar pouco adequado para uma cidade boa. No entanto, tinha de ser ali. Possuía uma prefeitura, uma pequena delegacia, cartórios, um pequeno foro, bancos e até uma rodoviária, onde o Garcia exercia o seu trabalho como dono de vários ônibus, postos de gasolina e tudo aquilo necessário para uma cidade adequada.

O nome Assaí representava uma expressão japonesa, o “Assahi”, isto é, “o nascer do sol pela manhã”, que naquele país tem um significado importantíssimo, com predisposição positiva. Os anúncios eram escritos não só em português, mas tinham, geralmente, todo o seu significado em língua japonesa. Era uma cidade interessante, para onde as pessoas iam por variadas razões.

Havia naquela cidade também os armazéns de café, para os quais vendíamos o nosso produto. Eram vários e realizavam um bom trabalho. Quanto ao algodão, não sei se havia usinas para isso.

Embora tudo lá fosse precário, havia um cinema; um teatro, adaptado. Até um salão de festas havia. Não me lembro a quem pertencia, talvez ao município.

Uma parte da cidade de Assaí era íngreme. Tínhamos de subir para chegar ao Centro. Era penoso, entretanto. Mas, valia a pena, pois, se não fosse isso, a cidade nem seria geograficamente notada. Havia, também, uma igreja, onde todos nós éramos amigos do padre. Achávamos que o pároco estava lá para nos ajudar, sempre correto em suas atitudes.

A cidade contava também com dois ou três médicos. Nós íamos a um, que por lá morava. Parecia que havia se acomodado à cidade. Era o doutor Bardall, que, como já disse anteriormente, cuidou do meu irmão Goro. Uma vez, caí doente, e não tínhamos dinheiro para ir ao médico. Meu pai insistiu para que eu fosse, e falasse com o Bardall, que ele me atenderia. Não sei se estava certo. Chegando lá, pedi que me atendesse, meu pai viria depois para acertar as minhas contas. Ele, amigavelmente, como sempre, atendeu-me, deu-me remédios, e tudo passou.

Em fins de 1950, iniciamos o curso de Admissão. Meu pai veio com a ideia de que nós deveríamos cursá-lo. O fato de não termos terminado o curso primário, não foi problema para ele. Insistiu tanto, que pegamos o caminhão e fomos nos matricular.

Tudo era novidade para nós. Frequentar aquela escola significava uma nova aventura. Os rapazes não eram tão jovens, como nas outras escolas. Eu mesmo tinha, então, quatorze anos de idade. E a maioria deles, inclusive as moças, vinha, em grande parte, da roça ali perto.

Aquele “Ginásio”, não obstante ter sido construído com muito amor, vivia com muitas dificuldades. Sobretudo, padecia de uma crônica falta de água. Assim, não podíamos beber água, nem usar os banheiros, e tudo se complicava. Quando chovia, o ginásio enchia de lama por todo lado. Apesar disso, era um dos locais mais importantes, naquela época, naquela cidade.

No início, íamos de caminhão, nosso meio de transporte. O Zeniiti não tinha ainda a carteira de motorista, em parte porque não davam carteiras para menores de dezoito. Era o caso dele, que dirigia com maestria, mas morrendo de medo que os policiais o pegassem. Quando chovia, íamos de trator. Depois que meu pai comprou um automóvel, o “Nash”, tudo começou a andar mais adequadamente. Foram, de qualquer forma, épocas gloriosas.

Nós não sabíamos como nos portar na cidade. Nossa timidez e todos aqueles problemas próprios da adolescência eram as nossas questões de todos os dias. Até 1953, moramos na Fazenda Hiraó. Posteriormente, fomos morar no Centro da cidade de Assaí.

A sociedade local, teoricamente, era prioritariamente a japonesa, que se reunia, de vez em quando, para tratar dos seus problemas. De alguma forma, nós ajudamos a formar a primeira sociedade assaiense. Depois, vários tipos de sociedades se formaram.

Foi em Assaí que tivemos um colega, de minha classe, mais velho, cujo nome era Santana. Ele trabalhava no banco local, o então pequeno Bradesco. Era um grande líder, com ideias avançadas. Falava muito sobre o seu banco, que viria, segundo ele, a se tornar um grande banco no futuro. Anos mais tarde, o Bradesco veio efetivamente a se tornar um dos maiores bancos privados do país. Admirável tudo aquilo, sobretudo depois que soube que o Santana havia se tornado um dos superintendentes dessa grande instituição financeira em todo o Brasil.

Nesse período, tivemos um professor de matemática, Tarcísio, vindo de Curitiba, que nos era estranho. Não falava com ninguém, tinha uma forma lenta e comandada de andar, fazia curvas em noventa graus, vestia-se esquisitamente com ternos de cores estampadas, de estilos ultrapassados e gravatas mal colocadas, era, enfim, uma figura ímpar na escola. Sempre sério, não brincava com ninguém. No início, a maioria dos alunos não gostava dele. Ficou assim por mais de um ano. Ele não ligava para nada, mas era exigente com seus alunos, um excelente professor de matemática, embora só permitisse perguntas mais tarde, depois das suas explicações.

Ele era solteiro e morava num hotel da cidade. O considerávamos estranho, porque considerávamos simplesmente estranho seu jeito de ser. Não podíamos condená-lo por isso. Mais tarde, os alunos resolveram fazer-lhe uma festa. Então, o vi sorrindo, embora fosse um sorriso difícil, meio forçado. Não era exatamente o que ele queria, mas ficou grato. Com isso, mudou sua maneira de ser? Não, pois sua estranheza era mesmo de nascença.

Nesse período, durante o curso de Admissão, me encontrei com um professor de português chamado Mário Linário Leal. Ele me deu aulas por cerca de um ano, sempre muito entusiasmado. Gostávamos dele como professor. Mais tarde, ele brigou com outra professora, filha de um catedrático de Língua Portuguesa. Ninguém nunca soube quem havia vencido a batalha. Foi uma briga complexa. O tal professor, com seu jeito de agradar a todos, conseguiu que todos nós entrássemos em greve, para lutar por seu direito em relação à Língua Portuguesa. No fim, o professor Mário Linário Leal deixou a escola, e foi ser candidato a deputado estadual. Sua oponente também deixou de ser professora ali. Deixou o ginásio e mudou-se para outro lugar.

Macário, diretor do Ginásio, também era professor de história, uma pessoa ótima. Um pouco gordo, mas sempre muito elegante, era casado com uma moça que depois resolveu cursar o ginasial. Achamos engraçada a ideia, mas ela se manteve firme desde o início até o fim.

Uma vez, apareceu por lá Martha, uma linda professora de francês. Uma moça bonita, de rara condição física. Provavelmente deveria ser francesa, ou, pelo menos, ficou-nos essa impressão. Gostávamos dela por todas as razões. Dava suas aulas em francês, para que aprendêssemos a língua. Depois de um ano, ela deixou o Ginásio, por alguma razão ligada a algum movimento contra o que alguns alunos realizaram. Ela se queixou internamente, não disse uma só palavra contra, simplesmente pediu demissão e foi lecionar em outra cidade, ali perto. Não houve forma de fazê-la voltar. Ela tinha entendido o recado, não quis, como disse, brigar por qualquer motivo, embora todos nós tivéssemos esquecido, inclusive, a causa daquilo tudo, que não deveria ser assim tão sério. Desse modo, todos nós sentimos a perda de uma belíssima professora, que veio nos ensinar francês, com uma aura de gente grande.

Ela ainda retornou algumas vezes, para participar de algumas festas, mas nunca voltou a nos dar aulas. Ficou, de tudo aquilo, uma grande lição: nunca deveremos acusar alguém sem ter certeza. Tivemos de nos conformar com tudo aquilo. A professora Martha demonstrou, com fatos notórios, que não dependia de nós para que a apreciássemos. Nunca ouvimos dela qualquer palavra de arrependimento, por tudo o que aconteceu.

Aquela digna professora deixou-nos saudades, talvez por que a transportássemos em nosso automóvel. Ela morava no outro lado da cidade de Assaí, no caminho que tomávamos, que ia da Fazenda Hiraó para o Centro da cidade. Era uma pessoa calma, tranquila, e muito concentrada naquilo que fazia. Possuía aquilo que chamamos de beleza profunda. Encantou-nos pela sua beleza e por seu profundo conhecimento de língua francesa.

Depois que nos mudamos para a Fazenda Hiraó, meus tios Kuriyama foram morar em Assaí. Minha tia era uma boa parenta, um pouco mais velha do que minha mãe. Seu marido, meu tio, era o professor da família, e ensinava a todos ali. Quanto aos meus primos, tínhamos a mais velha, a Machiko, depois o Aldo e o menor, o Nardo. A Machiko era uma boa garota, sempre bem disposta, pronta para o que fosse necessário, sempre sorridente. Nunca a vi realizando qualquer coisa de ruim em toda a minha vida. O Aldo, um rapaz calado, mas que mostrava que no futuro poderia vir a ser alguém importante. Gostávamos muito dele, por várias razões.

Mais tarde, a Machiko tornou-se técnica em contabilidade, e casou-se com um rapaz, brasileiro, bom em vendas. Eu a reencontrei há algum tempo. Ela nunca mais pôde deixar de trabalhar, pois o dinheiro tornou-se imprescindível. Continuava, como sempre, sorridente, pronta para o que for indispensável. Envelheceu, claro, embora continuasse bem. Foi uma grande amiga, por todos esses anos.

Quanto ao Aldo, ingressou na Mercedes-Benz, como desenhista, e hoje sustenta os pais.  É um rapaz excelente, embora, como sempre, muito sofrido. Não fosse ele, aqueles velhos tios não teriam condições de sobreviver. O Aldo, inclusive, casou-se com uma moça ótima, formidável para tudo, e ambos lutam para manter a vida naquele lar.

O nosso Ginásio era uma escola bonita, grande, com amplas áreas internas. Assistíamos às aulas na parte da manhã, em conjunto com as alunas, o que era para nós algo de formidável. Entretanto, numa determinada data, o diretor veio e, drasticamente, separou-nos, reservando uma parte feminina e a outra, para o setor masculino. Aquilo, nos causou uma impressão ruim, pois nunca esperávamos algo assim. Depois, acostumamo-nos. Entendi que aquilo foi feito porque alguma coisa séria havia acontecido no então cenário entre moças e rapazes. Ficará para a história da vida. Ter vivido em Assaí naquela época foi importante sob todos os pontos de vista.

Antes, uma criança, agora, já moço, queria participar das coisas que estavam acontecendo. Queria salvar o mundo, com o entusiasmo da minha juventude. Porém as minhas deficiências e limitações ainda não me permitiam ter um papel melhor nas abordagens. Não saber, de outro lado, como iriam reagir às iniciativas era um dos fatores que inibiam as minhas atuações.

Começamos a estudar no Ginásio na parte da manhã, no início de 1951. Trabalhávamos na parte da tarde. Posteriormente, devido a uma série de acontecimentos, deixamos de estudar no turno da manhã e passamos a frequentar a escola no horário noturno.

– Será que dará certo, passarmos a estudar à noite?

– Tinha que dar! – era a resposta que dávamos, dizendo isso com firmeza, para superarmos toda aquela dificuldade.

Igualmente, o Zeniiti, no ano de 1952, teve de servir ao exército, onde ficou por quase um ano, em Curitiba. Foi, satisfeito, com outros colegas. Lá, ele pôde prosseguir nos seus estudos, embora de forma irregular. Quando voltou, teve de recomeçar no ponto onde havia parado.

Na Fazenda Hiraó havia um campo de aviação, não muito grande, mas suficiente para aviões pequenos pousarem e decolarem. Isso seria muito raro. Chamava a nossa atenção.

Um dia, quando menos esperávamos, um determinado avião, de pequeno porte, desceu naquele campo de aviação. Todos o viram, de forma que muitas pessoas correram até lá. Coisa difícil de acontecer, pensávamos. Para nós, aquela aeronave parecia ser o primeiro avião já inventado.

Depois que alguém desceu, o avião fez uma manobra e tentou subir. Entrou no meio do mato, fora da linha de voo e, ao invés de subir, bateu numa árvore caída e trombou. O piloto desceu e olhou aquilo assustado. Tentava entender o que teria acontecido. Procurou-me depois, fez-me uma pergunta, pediu-me para vigiar o avião e saiu num carro ali presente.

Fiquei ali sem saber bem como vigiar aquele avião. Como surgiram muitas pessoas para ver tudo aquilo, o meu trabalho correu bem pela manhã, porém, quando anoiteceu, tive de ficar ali, no frio da noite. Depois de certa hora, não havia mais ninguém. Queria ir embora, mas não podia deixar aquele avião sem a minha vigilância. Não obstante o frio, acabei ficando por lá.

Somente no dia seguinte, o piloto apareceu com um caminhão, para buscar o avião. Veio preocupado, trazendo um mecânico, que entrou na aeronave, viu tudo e, com muita dificuldade, desmontou as partes do avião e colocou-as sobre o caminhão, com a ajuda do piloto. Este, após agradecer-me com uma boa gratificação, partiu.

Tudo aquilo tinha chamado muito a minha atenção. Além disso, aquele avião naquele lugar, todo deformado, havia transformado aquele campo de aviação em algo real. Levei o dinheiro daquela gratificação para casa. Todos riram, mas, para mim, foi uma grande satisfação ter participado ativamente daquele episódio em Assaí.

Como dito anteriormente, desde 1950, morávamos na Fazenda Hiraó, perto de Assaí. Tudo havia mudado desde então. Tudo era difícil e complicado, mas vivíamos plenamente o que lá acontecia.

Não sei se por causa do meu trabalho diário, achava que quando fosse jovem, teria direito a muito mais coisas, mesmo não sendo graduado numa universidade. Por trabalhar duro, achava que teria mais direitos. Depois, vi que as coisas não funcionavam assim. Foi o que aconteceu comigo, com relação à Toyoko, nossa colega no Ginásio.

Ela era uma moça diferente das demais. Talvez fosse um pouco mais madura do que as outras colegas. Tinha, no entanto, um lindo sorriso. Ou, mais do que isso, possuía o dom de encantar as pessoas. Não havia como não gostar dela. Todos os que a conheciam, adoravam-na.

A Toyoko era uma garota magra, porém bonita, extremamente bela. Provavelmente, tinha um lindo espírito, que a fazia brilhar tanto. Falando por mim, conheci muitas garotas, mas ninguém como a Toyoko, que brilhasse tanto, por todo o tempo. Além disso, seu jeito de vestir era todo seu. Parecia até que suas roupas eram feitas por ela mesma. Provavelmente, apaixonei-me por ela, desde que a vi, em 1950. Porém, todos aqueles que a conheciam, sentiam-se, assim como eu, apaixonados pela Toyoko. Era uma moça inteligente, tanto que, normalmente, tirava o primeiro lugar. Conquistá-la era, de alguma forma, a minha luta discreta nesse período em que frequentei o Ginásio. O fato de ela também estudar ali era, para todos nós, uma sensação de que alguma coisa poderia acontecer.

Um dia, o pai dela abriu um restaurante, no Centro da cidade. Nós poderíamos ir até lá, como clientes, mas não fazíamos isso, éramos terrivelmente tímidos. Ela tinha uma prima, muito bonita, que morava com ela, e que, assim como Toyoko, frequentava aquele restaurante. Fico me perguntando, por que não tivemos coragem de ir ao restaurante para conversar com a Toyoko. Como disse, nessa época, éramos considerados tecnicamente adultos, mas não tanto, pois éramos rapazes.

Quando estava no quarto ano ginasial, lamentavelmente, a Toyoko, como sempre cheia de carisma e provavelmente mais bela ainda, viu seu nome relacionado a um dentista que por lá apareceu. Não sei realmente o que aconteceu depois com ela. Provavelmente, casou-se com o dentista e permaneceu em Assai.

Afinal de contas, a cidade de Assaí, naquela época, foi um lugar importante, que marcou a vida de muita gente. Tudo ali, naqueles tempos, era novidade. São recordações que nunca mais voltarão. Pude verificar isso, quando voltei, anos depois, para buscar os ossos do meu irmão Goro, já em meados de 1972. A cidade havia se transformado em outra, sem a correria que caracterizou o início da década de 1950.

 

 

Capítulo III

Pelas vias de formação

 

15.

 

Em fins de 1954, depois de concluir o curso ginasial em Assaí, fui a Juiz de Fora, na época, a melhor cidade do estado de Minas Gerais, depois de Belo Horizonte. Para mim, que tinha dezoito anos de idade, era uma cidade grande e suficientemente bela para ser conquistada por todo jovem.

Juiz de Fora, era uma cidade voltada para a educação, possuindo até uma universidade. Tinha também uma tradição – a de ali se viver bem. Foram fatores que me prenderam. Não sabia até então que rumo daria a minha vida.

A cidade encantou-me. Suas ruas eram bonitas, principalmente a Rua Healfeld, afora a Avenida Presidente Vargas, além de outras vias por onde andávamos.   Muita gente sempre elegante por toda parte. Outro ponto de destaque era o Instituto de Laticínios Cândido Tostes, no bairro de Santa Teresinha, um bocado distante, mas um digno local, naquela grande cidade.

Para mim, um jovem formado na base da agricultura, cheio de força, querendo conhecer o mundo, chegar a um lugar como Juiz de Fora, com tanta tradição superior, era algo de vibrante. Depois de viver alguns anos em Marília e outros em Assai, ficou a ideia de que tudo lá, assim como no mundo inteiro, seria possível. Fui ao Instituto de Laticínios Cândido Tostes, para conhecê-lo. Visto por fora, era um prédio imponente de dois andares, comprido, com uma entrada principal na parte central. Receberam-me muito bem, talvez até excessivamente, o que me encantou.

Na parte inferior daquele prédio havia uma grande cozinha, com um enorme refeitório, e uma biblioteca. Do outro lado, a administração da escola com outros órgãos. E, na parte superior central, um quarto grande, onde dormia o diretor de ensino, Hobbes Albuquerque; os dormitórios ficavam nas partes restantes.

No lado interno da escola, havia um grande prédio, onde funcionava uma parte das aulas normais; havia um corredor extenso, com quadros dos alunos que concluíram os cursos técnicos, além de uma fábrica, igualmente grande, no outro lado, para produzir diversos tipos de queijos, como o cobocó, o reino, o cheddar, e o “minas”, devidamente maturado por vinte e um dias. Produziam também produtos como queijo provolone, doce-de-leite enlatado, requeijões, leites fermentados tipo iogurte, keffir, etc. Aquele Instituto tinha por fim propiciar que seus alunos produzissem todos aqueles produtos, tendo, no entanto, seus operários para os seus serviços normais.

Existiam outros prédios naquele lugar, uns para guardar diversos materiais, outros para pesquisas de microbiologia, além de campos de esportes, para basquete, tênis e futebol. Havia também uma casa onde se vendiam os produtos ali fabricados. A escola era arborizada, cheia de grama e de flores por toda a parte. Morro acima residia o diretor geral, Sebastião Sena de Andrade. O Instituto não era só grande em construção, mas, sobretudo, um lugar agradável para quem lá fosse estudar.

Havia ainda uma obra, lá em cima, de dois andares, para recreação dos estudantes. Do outro lado, ficava o quartel, possivelmente da Polícia Militar, com o qual mantínhamos um bom relacionamento. Seu comandante autorizava que frequentássemos a sua piscina. Nos finais de noite, ouvíamos os sons que assinalavam a hora de recolhimento dos soldados. No início, escutávamos e não entendíamos nada. Depois, ao ouvi-los, sentíamos uma grande tristeza – eram sons lindos, que nos faziam lembrar nossos entes queridos. Eram os sons do silêncio.

O material utilizado no Instituto era da melhor qualidade. Na parte de fábrica, todos os tonéis eram de aço inoxidável e tudo o que se utilizava era para demonstrar que a higiene era algo sagrado para a saúde dos consumidores. Era, de certo modo, uma das premissas da escola, de forma adequada, disponibilizar os materiais necessários para oferecer produtos feitos dentro de padrões rigorosos de qualidade.

O curso técnico durava dois anos. Era, provavelmente, o mais difícil. Por isso, o número de alunos naquele ano era pequeno, cerca de dez a doze. Escrevi uma longa carta a meu pai, relatando como as coisas ali funcionavam. Havia, também, um curso avulso, para os veterinários e agrônomos, que durava cerca de um mês. Seria o tempo indispensável para praticar na fabricação de queijo e de outros produtos lácteos. Atendia-se, assim, às empresas e, sobretudo, aos pedidos de outras instituições municipais, estaduais ou federais. Não se estudava teoricamente, mas, na prática, experimentalmente.

No início, fiquei com algum receio, sem saber se meu pai enviaria o dinheiro necessário para o curso principal. Afinal, além de durar dois anos, não era barato, pois havia ainda a pensão. No entanto, logo depois, recebi a sua resposta, aprovando, o que me alegrou muito. Passei, então, a estudar laticínios. Era, como eu sabia, um dos sonhos do meu pai.

Estudar laticínios passou a ser uma obrigação rigorosa para mim. Estudava com tal intensidade que fui, em todo o meu curso técnico, um aluno especial. Talvez não fosse o melhor aluno, mas o que tirava a melhor nota. Depois, fiquei perguntando a mim mesmo por que ganhava notas tão altas se eu não era o melhor aluno. Conclui que isso se dava por que estudar laticínios era uma promessa que havia feito pra meu pai. Descobri, contudo, que não era aquilo o que eu realmente queria.

No entanto, até então, nem sabia o que realmente queria. Frequentei depois a Academia de Contabilidade, localizada num majestoso edifício, dirigido por padres, onde iria aprender contabilidade. Para, posteriormente, vir a ter condições de ingressar em um curso superior.

A Academia não era a melhor escola de contabilidade naquela cidade de Juiz de Fora. Fui mal naquela escola, mas não por minha culpa, apenas porque não tinha tempo para estudar mais. Fiquei cerca de dois anos por lá, para prosseguir com os estudos, mais tarde, em São Paulo.

No primeiro ano, logo depois de ingressar naquela Academia, tive um professor muito especial de contabilidade. Era tão extraordinário que tinha até escrito um livro famoso sobre o tema. Queria que todos estudassem com afinco. Perguntou, logo na primeira prova, o que pretendíamos conseguir estudando contabilidade. Teríamos de responder em poucas linhas, mas de forma direta. Do contrário, tiraríamos zero, foi a sua ameaça.

Respondi algo que o meu pai, como contador, sempre dizia: que todo contador deveria ter, em suas mãos, toda a situação da empresa em uma ou duas linhas. O resto não precisava saber, porque, em contabilidade, era isso que seria importante. O professor ficou encantado comigo, de forma que me chamou lá na frente, dizendo que era o que todos deveriam responder. Provavelmente, ele esperava muito de mim, mas não pude retribuir-lhe naquele ano, não por culpa da escola, mas porque o outro curso, o de laticínios, tomava todo o meu tempo disponível.

Conheci muitas pessoas no Instituto de Laticínios. Além do Hobbes Albuquerque, diretor de ensino, do Sebastião Sena de Andrade, diretor geral, muitos outros foram importantes para a minha formação. Foi o caso do Prado, se não me engano, diretor da parte administrativa, do Bontempo, professor de tecnologia, e do Massini, da área de microbiologia.

Um dos colegas que tive nesse período foi o Wantuil de Paula Coelho, um rapaz forte e, sobretudo, bonito. Parecia até um artista de cinema. Precedera um ano a mim no curso técnico, um aluno excepcional. Veio a ser meu amigo. Ele tinha um irmão, o Wanderlei, que foi meu colega de turma. O Wantuil morava no município de Cantagalo, onde uma vez fui para jogar futebol com um time local. Naquela época, estudávamos laticínios motivados por razões diferentes. Depois, tanto ele quanto eu, nos tornamos advogados. Por isso, mais tarde, depois que me formei, chegamos a abrir um escritório de advocacia, no Rio de Janeiro. Foram momentos bons, amigáveis, que passamos juntos. Ele ficava com suas causas, e eu, que estava aprendendo a ser um bom advogado, com as minhas.

Por alguma razão, que nunca entendi, seguimos caminhos diferentes. Em parte, porque os meus clientes, que considerava bons para mim, não seriam para ele. Depois de ficarmos alguns meses juntos, separamo-nos, seguindo ele o seu caminho, sempre como meu amigo, até hoje. De vez em quando, Wantuil aparece e vem com presentes.  É um amigo para todas as horas, em qualquer circunstância.

Quando estávamos no Instituto de Laticínios, Wantuil era um grande poeta. Escrevia poemas com uma inspiração que nos deixava emocionados. Anos mais tarde, quando me acidentei gravemente, em 1987, Wantuil apareceu no Hospital São Vicente, no Rio de Janeiro. Disse-me que havia pensado muito em mim. Eu estava bem, mas nem tanto, de forma que não pude desfrutar daquela visita, ou mesmo entender o que ele tentou me dizer. Ele passou a dedicar-se ao espiritismo, coisa que nunca compreendi. No entanto, quem seria eu para dizer-lhe qualquer coisa a respeito. Conheci também sua esposa, uma digna senhora, também formada em advocacia; pareceu-me sempre a pessoa certa para cuidar de Wantuil.

Muitos outros amigos eu tive, além de Wantuil, em Juiz de Fora. Osny Talmann era um filho de alemães, mas ele nada tinha de característico dessa nacionalidade. Magro e elegante, ele era um aluno excepcionalmente bom. Gostava dele, pois, assim como eu, adorava ler livros, sobretudo romances. Mais tarde, já em São Paulo, poucos anos depois, ele apareceu na Leite Paulista, dizendo que queria conhecer a cidade de Cunha, pois lá ofereciam um emprego de técnico em laticínios. Lá o encontrei, com sua linda esposa, uma moça com contornos suaves. Ele era um rapaz formidável. Em qualquer das circunstâncias.

Conheci, também no Instituto, um rapaz que fez um curso rápido de laticínios. Seu nome era Cristiano, jovem ainda, querendo conhecer muito mais o mundo.  Gostei dele e ele de mim. Mais tarde, soube que ele tinha tendências para homossexualismo, embora eu não quisesse saber disso. Em sua vida, cheia de tropeços, ele havia passado por fases difíceis, desviando-se, sem querer. De qualquer forma, nunca me pareceu que fosse, ou que fizesse força para manter o lado estranho de sua maneira de ser. Depois de conhecê-lo, fui pensar realmente no que significava ser homossexual, quando tanta gente que não queria, às vezes, o era. Além disso, fiquei pensando também por que todos nós temos a tendência de pensar mal de quem é homossexual, imaginando que será sempre um ser humano diferente. No fundo, no fundo, são seres humanos, como todos nós, com as nossas fraquezas e as nossas qualidades. Foi então que pensei que nunca deveríamos manter um relacionamento ruim, preconceituoso, com pessoas assim.

Lá no Instituto, ensinei-o a escrever poesias. Ele passou a escrever peças bonitas. Depois desapareceu e fiquei sem saber dele, por longo tempo. Anos depois, vim a encontrá-lo no Rio de Janeiro. Trabalhava no Jornal do Brasil, como repórter, e estava bem profissionalmente. Participava de programas de televisão, até que sofreu um grave acidente, vindo a falecer. Soube então que ele havia escrito e publicado um livro, em que expôs suas ideias sobre tantos aspectos da vida. Viveu como um bom rapaz, sem provocar qualquer mal, a quem quer que fosse.

Em Juiz de Fora, conheci também um rapaz, bom estudante, que me convidou a ir até Miracema, no interior do estado de Minas Gerais, onde seu pai tinha uma fazenda. Fiquei feliz com tudo aquilo. No dia seguinte, depois de tomarmos café, seu pai, uma pessoa admirável, alegre, convidou-me a ir ao sítio, para ver os pés de café, que eu dizia entender. Lá, ele me mostrou tais pés, de tamanho médio. Agachei-me e enfiei as mãos no seu interior, e entendi que tais pés estavam todos tomados de galhos estranhos. Tentei explicar isso, dizendo que tais galhos estranhos deveriam ser arrancados enquanto eram pequenos. Fiz força, nesse sentido, com um galho, mas como estava grande, ele partiu toda a árvore, para meu constrangimento. O velho riu e fiquei naquela hora sem entender se ele teria compreendido o que eu tentara lhe explicar. De qualquer forma, foi fundamental, para mim, ter ido àquela fazenda, na cidade de Miracema. Nunca mais retornei lá, mas ficou-me na lembrança uma boa imagem de tudo aquilo.

Viver na cidade de Juiz de Fora foi importante para mim, pois além de estudar laticínios, queria descobrir a outra parte do mundo, que não conhecia. Foi lá que conheci uma moça, muito bonita, que se tornou minha namorada. Quando houve um baile no Instituto de Laticínios, convidei-a. E ela veio, alegremente, trajando roupas caras. Ficávamos por lá, namorando-nos. Depois desistimos, por variadas razões. Também lá comecei a escrever artigos de crítica musical nos jornais locais. Eu nada entendia de música, a não ser naquelas questões que me eram familiares. Minha preocupação maior era o fato de escrever o mais corretamente possível. Frequentava os recitais musicais, escrevendo depois as minhas críticas. Foram notas importantes, para quem, como eu, tinha lá os meus dezenove ou vinte anos e escrevia naqueles jornais. Hoje, na verdade, pergunto-me, por que fazia tudo aquilo. Lembro-me de que escrever tais notas exigia de minha parte uma grande concentração, pois nem sabia como escrevê-las. No entanto, a prática de escrevê-las foi útil para desenvolver tal importante habilidade.

– Mas que importância teria tudo aquilo?

16.

 

Como disse antes, havia ido a Juiz de Fora para estudar laticínios. De certa forma, aquilo era o meu dever. No entanto, nem sempre o dever é exatamente aquilo o que queremos. Foi naquela cidade também que descobri a vida universitária. E, logicamente, interessei-me demais. Por quê?  Não sei. Talvez porque, no fundo, não quisesse dedicar minha vida à carreira de laticinista, por melhor que fosse.

Naquela época, achava que um dia poderia vir a ser um universitário. Por isso, achava ruim que a escola de laticínios não exigisse o curso científico. Bastava se formar no ginásio que estaríamos prontos. Aquilo me afligia, pois, sem querer, sentia-me intruso naquele meio. Por outro lado, dava-me uma grande satisfação, pois, ao invés de exercer um alto cargo dentro do Diretório Acadêmico, fui indicado para ser o secretário de publicidade do DCE, isto é, do Diretório Central de Estudantes de Juiz de Fora.

O Instituto de Laticínios Cândido Tostes fazia parte da Universidade de Juiz de Fora. Evidentemente, isso era meritório, pois era uma escola de sólida reputação. Além dos alunos normais, era o centro para estudos de veterinários e agrônomos. Transformá-lo em parte da Universidade era mais do que merecido. Era, afinal, um centro de muitas convenções e de diversas reuniões estaduais e federais sobre laticínios, e para lá convergiam autoridades de todos os lugares. Sem dúvida, o Instituto era importante, sobretudo no estado de Minas Gerais, um grande polo produtor de leite e queijos.

Todavia, eu não sabia como exercer o meu papel no Diretório Central de Estudantes. Intenção de fazer um bom trabalho, eu tinha. E, para isso, pude contar logo com um grupo de estudantes do melhor nível: como o presidente, Nelson Boechat, o secretário-geral, Alexandre Bailly, além de Rosália Guimarães, afora outras pessoas integrantes daquele grupo.

Meu trabalho era o de conhecer todas as atribuições daquele DCE, ajudar na elaboração de sua programação e divulgá-las. Ser secretário de publicidade foi algo de formidável para mim, embora não soubesse ainda escrever bem. Era, na verdade, uma grande sensação ter que divulgar os trabalhos daquele DCE.  Ganhei uma mesa nova, como todos os colegas que lá se encontravam, e com muito custo realizamos o nosso trabalho.

O Alex, diminutivo de Alexandre Bailly, era um rapaz formidável. Possivelmente, foi em função dele que todo aquele grupo de rapazes e moças trabalhava. O Boechat era admirável, a Rosália uma garota fantástica, todos lá eram realmente excepcionalmente bons. E ninguém veio em cima de mim, esperando que realizasse alguma coisa que não estivesse dentro das minhas condições. Foi lá também que acabamos conhecendo outras pessoas notáveis.

O DCE localizava-se no Centro da cidade de Juiz de Fora, em local especialmente adaptado para aquela atividade. Tudo ali parecia novo. Lá dentro, além das mesas da direção do DCE, arrumaram lugares para o parlamento, que funcionava como órgão deliberativo. Era interessante verificar que os estudantes se reuniam aos sábados para discutir assuntos da maior relevância. Para mim, esses foram momentos de grande transcendência conviver alguns meses com aquele grupo universitário.

Para atender àquele compromisso universitário, realizamos as minhas obrigações com a maior pressa, isso me dava satisfação. Como depois entendi, a minha vida estava começando ali. Alguma coisa nova em tudo aquilo já era importante para mim, sobretudo para a minha formação. Dúvidas, eu tinha muitas. Entretanto, achava que me dedicando tanto a tudo aquilo, estaria atendendo a uma obrigação que cabia a um bom estudante.

Participei de muitas atividades. Primeiro, organizamos uma série de apresentações de recitais diversos, inclusive de peças teatrais. Uma vez, inclusive, apresentamos uma ópera, cujo nome era “Os Sertões”, composta por um compositor francês. Era apresentada em quarta récita mundial. Para assisti-la, veio um senhor, já com bastante idade, mas muito feliz com tudo aquilo. Ele foi à emissora de rádio local, para falar sobre aquele episódio. Disse que era algo fundamental, pois retratava a história dos sertões, descrita no livro de Euclides da Cunha. Mandamos imprimir grandes cartazes, com letras vermelhas. Durante a noite, saíamos para afixá-los na rua. Quantas noites, em razão disso, voltei de madrugada, por volta das quatro horas da manhã, cansadíssimo com tudo aquilo, mas satisfeito em realizar alguma coisa para o público.

Apresentamos muitas outras peças. Certa ocasião, promovemos um balé do Rio de Janeiro, o Balé do Cinquentenário, espetáculo dos mais bonitos. Além dessas peças e recitais, organizávamos bailes de todos os tipos para os estudantes. Para mim, tudo era um encanto, pois, com isso, pude me relacionar com muitas pessoas. Foram experiências importantes, que estavam ajudando a minha formação como ser humano. Trabalhávamos muito em outros tipos de reuniões. Por exemplo, participávamos de encontros municipais, estaduais e federais de universitários, realizando um trabalho da maior qualidade. Viajávamos muito, por esse motivo. Na visita à cidade de Uberaba, uma vez, e à cidade de Itajubá, outra vez, realizamos reuniões estaduais de universitários.

Recordo-me de muitos estudantes, que tanto brilharam naquela época. Um estudante de medicina, José Carlos Magalhães seria o seu nome, brilhou, com seu carisma, por defender todos os demais estudantes. No parlamento, era a ele que devotávamos toda a nossa atenção, pois era um estudante excepcional. Sempre sabia agradar a todos. Depois, no segundo ano, não era mais o representante daquela escola. Procuramos por ele, mas José não estava mais ali. Foi assim, também, com o Alex, com o Boechat, com a Rosália, com todos, enfim. Todos aqueles brilhantes estudantes desapareceram no ano seguinte.

De certa forma, foi assim que conheci o Décio, um estudante de Logosofia, o qual me deu bons exemplos de como os jovens de então deveriam atuar. Ele, como representante de uma faculdade, apresentava-se no parlamento para defender suas ideias. No caso dele, votava sempre de acordo com as melhores ideias, não porque era do partido dele ou porque era do partido alheio. Tudo aquilo me ajudou a entender melhor o mundo em que estava penetrando.

Por diversas vezes fui com ele visitar galerias de arte, onde se expunham quadros de pintores. Para entender de pintura? Talvez ajudasse um pouco. No entanto, estava interessado em ouvir as conversas dele, que eram interessantes. Talvez, nem ele soubesse disso. No entanto, em razões de tais contatos, ele acabou dizendo-me que estudava Logosofia. Nem me dispus, contudo, a ir com ele, para saber do que se tratava, pois estava muito ocupado com outras atividades. Mais tarde, depois de chegar a São Paulo, fui procurar a Fundação Logosófica, onde ele ensinava aquela estranha, mas promissora ciência.

Tornamo-nos grandes amigos desde então. O Décio era, em verdade, um rapaz sempre voltado à busca de coisas novas, de aspectos originais, procurando fórmulas superiores, fora da rotina. Por alguma razão, que não entendi naquela ocasião, ele atraía muitíssimo a minha atenção.

Uma vez, quando íamos a Uberaba, para participar do Congresso da União Estadual de Estudantes, passamos por Belo Horizonte. Décio me levou à casa de sua tia, uma senhora inteligente, com traços marcantes, talvez algo exigente em suas colocações, e que ocupava o papel de diretora de um educandário local. Seu marido era um grande pintor de quadros. Ambos estudavam Logosofia.

Assisti à conversa daquela ilustre tia do Décio, falando com grande interesse sobre coisas superiores ao estudo de Logosofia. Evidentemente, admirei-me muito com tudo aquilo. Décio então me levou ao ateliê do seu tio Bracher, onde o mesmo se encontrava com seus quadros. Eram trabalhos belíssimos, pelo que me lembro. Todos eles possuíam aspectos como a situação das cidades, sempre com igrejas no seu meio.

– Todos os homens. Desde os primórdios, estiveram sempre voltados para a busca de Deus. Por isso, criaram as igrejas, construídas com materiais de luxo, nos melhores lugares, sempre com suas torres voltadas para cima, para o céu, para Deus – disse ele, mostrando os seus quadros.

– De fato, nem sempre podemos dizer que os senhores das igrejas eram maus. Provavelmente, eram homens dotados de boa vontade, querendo consertar os erros dos seres humanos – concluiu o Décio.

– Embora tenhamos que concluir que todas as crenças cegam a consciência – murmurou o referido pintor. – São aspectos que temos de rever agora.  É possível – observou Décio – que talvez seja a linguagem que o ser humano busque para sua superação pelo lado do seu espírito, como nos ensina Raumsol. – Por isso, tenho pintado esses quadros, mostrando que sempre foi uma busca incessante do homem pelo seu criador, apesar dos seus erros essenciais. Veja: neste quadro, estas cruzes, colocadas nos pontos mais elevados, representam braços elevados desesperadamente aos céus, tentando captar a palavra de Deus – declarou o pintor. Foram conversas simples, mas fundamentais para a minha vida de então. Jantei na casa daquele tio de Décio e depois saímos, pois tínhamos de seguir para Uberaba. Hoje, fico me perguntando por que será que tudo aquilo acontecera naquela época. Representou, sem dúvida, um grande salto para mim!

17.

 

Meu pai era um homem forte. Tinha uma estatura mediana, era um homem digno, era forte, sem dúvida alguma, material e espiritualmente. Seu nome era Shitiro Okada. Era, igualmente, uma pessoa inteligente. Tinha excelente agilidade mental, porque sua mente era, como se diria, “grande”. Demonstrava agilidade com negócios; os resolvia sempre com sucesso. Nunca, contudo, foi um escravo do dinheiro.

Inverosimilhanças? Talvez. Nunca foi um homem pobre, embora nunca tivesse sido rico. Possuía o jeito de quem já havia sido rico, ou que poderia ter sido. Era a impressão que transmitia.

Sobretudo, costumava ler muito. Um pouco de tudo. Em sua casa, abrigava romances, aventuras, biografias, livros técnicos, tratados sobre agricultura, o que fosse. Sonhava muito, pelo menos, dava-nos essa impressão. Era a sua visão do mundo e a sua colocação frente às coisas. Seu relacionamento com a minha mãe foi ótimo, talvez mesmo excelente. Raramente brigavam. Os dois sempre se entendiam. Ela falava mais do que meu pai, mas esse tinha a sua maneira peculiar de expor as coisas. Meu pai normalmente falava pouco. Quando estava animado, tornava-se expansivo e abria seus pensamentos. Na verdade, nunca conseguimos perceber onde começavam e onde terminavam suas ideias. Essas eram quase sempre realizáveis. Era como se ele fosse o centro irradiador de uma força, de algo elevado que orientasse a nossa vida.

No entanto, meu pai não era um homem alegre. Geralmente sério, porém extremamente honesto. Quantas vezes, enquanto ele negociava, nós, seus filhos, ficávamos com receio de que, por conta de sua excessiva honestidade, acabasse cedendo às investidas de seus amigos. Nunca entendemos por que ele era tão honesto e sincero. Quanto aos problemas, ele os tinha, e muitos. E, ao trabalhar na roça, suava muito, quase por rotina. Parecia que gostava daquilo tudo. Sentia-se que aquilo fazia parte do seu mundo.

De minha parte, quando criança, tive certo receio do meu pai. Não sei se por culpa dele, possivelmente, por minhas próprias razões. Por que será? Provavelmente porque se entendia, naquela época, que todas as crianças deveriam ter algum tipo de medo do pai, eis que era o resultado da civilização então reinante. Medo esse, no entanto, sem explicação sensata. Estávamos em 1947, quando resolvemos deixar a cidade de Marília e fomos para o interior de Assaí. Era um novo mundo que não conhecíamos. A Segunda Guerra Mundial terminara e um grande embate ideológico estava surgindo. Nós nem sabíamos o que era comunismo ou capitalismo. Tudo aquilo era um mundo novo, para cada um de nós.

Quando fomos trabalhar na roça em Caviúna, Assaí, no Paraná, descobrimos outro pai, mais amável, mais gente. Talvez antes nem tivéssemos tido tempo para isso. Lembrávamos dele, não só dos momentos bons, mas, sobretudo, daqueles difíceis. Em Caviúna, cheguei com onze anos. Trabalhando na roça, podíamos estar mais juntos. Foi uma época em que sonhávamos com o nosso futuro. O trabalho foi duro; tínhamos de carpir, colher algodão, arroz, feijão, café, ou tratar o gado nos pastos.

Tínhamos sempre alguns momentos livres para conversar. O Zeniiti era o mais forte. Quando íamos carpir, ele seguia adiante. Eu e meu pai ficávamos para trás, e era nessas horas em que podia falar com ele sobre minha visão do mundo, minhas dúvidas e sobre os sonhos que tinha. No almoço, ou na hora de descanso, sempre podia contar ao meu pai os meus problemas. E ele sempre me entendia, por incrível que pareça. Talvez ele conversasse com o Zeniiti, mas, por alguma razão, ele se abria mais comigo, ilustrando as coisas que entendia, com maior clareza, dando-me elementos de sua filosofia de vida. Foram momentos de muita alegria para mim aquelas longas conversas de pai e filho.

Recordo-me, até hoje, da geada que caiu em nossa Fazenda Hiraó, nos anos iniciais da década de cinquenta. Sabíamos que a geada viria e que seria terrível. Meu pai, que comandava pessoalmente todas as operações na Fazenda Hiraó, havia mandado levar madeiras, com o fito de queimá-las para aquecer as áreas baixas dos cafezais e, assim, evitar os aspectos negativos da geada.

Esperávamos que a geada fosse fraca e que não afetasse os cafezais. Os preços do café haviam subido muito nos últimos anos por razões de mercado. Precisávamos de muito café ara subirmos na vida.

Tirávamos a temperatura do local na noite da geada. Ficamos em casa olhando as coisas acontecerem. Nós, os jovens, esperamos fervorosamente que nada de mal sucedesse. No entanto, à medida que o tempo passava, fomos vendo as coisas ruins se concretizarem. Numa determinada hora, colocamos água num copo e depois vimos que ela congelava, tal o frio que fazia. Mais tarde, madrugada avançada, fomos ao cafezal, para ver como as coisas iam. Tudo dominado, porém.

Vendo tudo aquilo, meu pai mandou que os homens ateassem fogo naquelas madeiras. Fazia muito frio e as madeiras queimavam lentamente. De nada adiantou. A geada foi muito mais forte. Queimou todas as folhas dos cafezais. A parte do cerne dos cafezais permaneceu viva. Tudo indicava que dentro de dois anos poderia voltar a dar café. Nós não podíamos compreender então toda a gravidade daquela geada gigantesca. Posteriormente, compreendêmo-la em toda a sua amplitude. Era, no entanto, tarde demais.

Meu pai, contudo, encarando o fenômeno da geada como um problema da própria vida, o aceitou, gravemente, porque não havia outra saída. E começou a traçar outros planos para sair daquela situação, dando uma volta por cima. Planejamos plantar outras coisas e recuperar, mesmo que parcialmente, uma parte daquilo que lá tínhamos perdido. A rigor, ele não se deixou abater, pois o cerne dos cafezais estava vivo e seria questão de tempo.

Tudo isso foi feito naquele ano e no ano seguinte. Os frutos dos outros cereais foram bons, isto é, bastante úteis. Tínhamos de continuar assim. Esperávamos que logo o café voltasse, embora gradativamente. Não obstante, outra geada fortíssima foi anunciada. Era estranho para o meu pai, pois, segundo a literatura existente, tal tipo de geada ocorria a cada cinquenta anos, e nunca em anos quase seguidos. Só nos restava esperar o desenrolar dos fatos.

Desse modo, quando a outra geada efetivamente veio, matou tudo. Até o cerne dos cafezais, que antes estava vivo, acabou sendo queimado. Agora, o drama foi completo. Senti, então, que o drama havia, por fim, atingido meu pai seriamente. Não havia mais o que esperar. Os pés de café não voltariam a dar frutos. Ele havia perdido uma grande batalha em sua vida.

De certa forma, posso dizer que dois acontecimentos abateram profundamente o ânimo do meu pai. Um deles foi o falecimento de seu filho Goro, em 1947, e a outra foi, sem dúvida, a queda das geadas gigantes, que mataram todos os cafezais. Foram esses dois fatos que levaram o meu pai, ainda aos quarenta e nove anos, a falecer, em meados de março de 1956.

Na época da minha viagem para Juiz de Fora, em fins de 1954, meu pai envelhecera bastante. Quando o chamávamos, para explicar determinada coisa, ele custava a nos responder. Tínhamos de chamá-lo com mais força, para que nos atendesse. Tudo aquilo me inquietou por demais.

– Será que isso seria sinal de velhice? – eu me perguntei, então

É possível que, naquela época, ele já estivesse sofrendo os efeitos de sua doença. Ele ia e vinha com o seu automóvel “Nash”, ou com algum caminhão, que ele dirigia com alguma dificuldade, até a Fazenda Hiraó, para vender os produtos e cuidar dos seus assuntos. Mas, na verdade, ele estava visivelmente cansado, ou melhor, sentia-se derrotado, após tantos anos de luta.

A situação na Fazenda Hiraó não estava boa. Afinal, ele colhera o que sobrara em plantações diversas. Menos em café, inexoravelmente perdido. Não me lembro se a saída dele estivesse acertada então. Alguns meses depois, no entanto, meu pai foi até o estado do Espírito Santo, para encontrar-se com o cientista Haga, que havia se destacado por realizar trabalhos agrícolas importantes, tendo até ganhado uma medalha por tais serviços prestados ao governo daquele estado. Sua ideia era ir até lá, inclusive para ver as fazendas que existiam no norte daquele estado brasileiro em franco crescimento.

Ao retornar da cidade de Vitória, no mês de maio de 1955, ele passou por Juiz de Fora e me pediu para mostrar-lhe algumas das melhores fazendas que lá existiam. Ele estava interessado em fazendas para criar gado no futuro. Fomos visitas algumas. Mas ele estava cansado, em parte talvez como reflexo de sua doença, cujos impactos ainda não podia imaginar. Ele ficou feliz com as providências que eu havia tomado para atendê-lo. Depois, cheio de esperanças, foi embora. Sem dúvida, aquele era o meu pai, o meu querido pai.

Depois de algum tempo, soube que ele estava gravemente enfermo. Havia feito diversos exames e os médicos não queriam dizer o que tinha. Recomendaram que ele fosse para São Paulo, para submeter-se a exames mais rigorosos. Fui até a capital paulista, encontrar-me com ele e com a minha mãe, que o acompanhava. No dia seguinte, fui com os dois ao médico recomendado.

Depois de examiná-lo com muito cuidado, o médico me chamou aos fundos do consultório, e disse-me:

– Ele está com um grande problema. – Está com o quê? – perguntei-lhe. – Está com câncer – foi a resposta. Levei um choque tremendo. Quase morri na hora. – Não é possível! – disse a mim mesmo. No entanto, perguntei-lhe gravemente, quase achando ruim com o médico: – Tem certeza de que é mesmo câncer? Que tipo de câncer? Onde? Ele me respondeu, com muito cuidado, que havia examinado os testes realizados e que não tinha mais dúvidas. ‑ É um câncer muito grave, no caso. Fica no intestino fino, que existe na saída do estômago. – Doutor, o que poderíamos fazer para salvá-lo? – perguntei-lhe, sofregamente, como pedindo para salvar meu pai. Ele, no entanto, disse que nada poderia fazer nesse sentido. – Quanto tempo ele viverá ainda? – perguntei-lhe, ansioso para que a resposta fosse longa. – Pouco, muito pouco, talvez dois ou três meses. – Não é possível! – foi a minha reação. – A não ser que opere – disse o médico. – Na sua maneira de ver, acha que o curaria?  – perguntei-lhe. – Mesmo operando, não sei se irá melhorar muita coisa. No entanto, poderemos operá-lo, se vocês quiserem. – Melhoraria aparentemente? – É uma tentativa, que poderemos realizar, embora sem garantir os resultados.

Depois de dizer que durante a cirurgia poderia extrair a maior parte do tumor maligno, o que, talvez, prolongasse o tempo de vida, explicou-me, porém, que isso não iria resolver o caso, porque, efetivamente, nada ainda existia para curar o câncer.

– Com a operação, talvez ele vivesse entre seis a oito meses ou, quem sabe, um pouco mais. Irá depender do que formos capazes de retirar – foi a resposta que me deu.

Fiquei alguns instantes sem ação. Não sabia o que fazer. Fiz um esforço supremo para ficar natural, dentro do possível, e, então, voltei ao local onde meus pais me esperavam e disse-lhes que tínhamos de ir embora.

No Hotel Íbis, onde eles estavam hospedados, minha mãe preparava um suco de verduras cruas, de gosto horrível, que ele tomava. Fomos a um restaurante para jantar. Eu não sabia como agir, pois tudo era gravíssimo. Meu pai, como esperado, não podia comer quase nada, pois começava a sentir-se mal. Abandonamos o jantar e retornamos ao hotel.

Nem sei mais, de que modo, acabei dizendo aquela notícia terrível para minha mãe. Penso que foi no dia seguinte. Porém, tínhamos de tomar providências para que ele fosse operado imediatamente. Inventamos várias desculpas para a operação dele. Ele aceitou, de forma que a operação foi realizada em poucos dias. Lá eu estava, esperando que tudo corresse bem.

Não me passou pela cabeça a ideia de não operá-lo, pois ele poderia sofrer muito. A operação foi realizada e ele ficou um pouco melhor. Mas, não muito, como já esperávamos. Depois, voltei para Juiz de Fora. Não sabia, então, o que fazer. Ninguém poderia me ajudar. Minha mãe sofria muito, e ele, também.

– Se alguém pudesse nos ajudar, como gostaríamos! – suspirei inúmeras vezes.

Até então, nunca havia sentido a presença da morte como naquela ocasião. Estava presente. Não havia como escondê-la. Procurei, desesperadamente, algum modo de curá-lo. Nada existia para curar aquele câncer na saída do estômago. O drama que vivi foi terrível, pois gostava dele, como meu pai, um ser humano muito querido. Nada pude fazer, no entanto. Era incurável, algo inconcebível, indescritível, tudo aquilo. Naquela ocasião, frequentei muito as igrejas, esperando que algum tipo de milagre ocorresse.

Fiquei naquele final de 1955, em São Paulo, na casa que alugamos em Campo Belo. Meu pai, sempre deitado, sofria muito. Ele acordava, lamentava-se, depois voltava a se deitar. Conversava um pouco conosco, embora não frequentemente. Pelas leituras que ele realizava, provavelmente, já deveria saber que tinha câncer. Foram semanas horríveis aquelas, pois nada podíamos fazer por ele. Um drama terrível para todos nós.

Minha mãe dava remédios, sobretudo para tirar a dor. No início, tudo funcionava bem. Depois, os remédios deixaram de surtir efeito. Foi piorando, piorando, até que, por ordem médica, passamos a dar morfina, para fazê-lo dormir. Eu não conseguia entender como um ser humano daquela qualidade tinha de morrer de câncer, uma doença tão terrível.

Em fins de fevereiro, resolvi voltar a Juiz de Fora. Iriam começar as aulas no Instituto de Laticínios. Despedi-me dele no quarto de cima, onde ele ficava. Desci, já ia embora, mas, movido pela intuição, voltei a subir, para despedir-me mais uma vez, pois sabia que não o veria mais vivo. Quanta emoção! Por que tudo aquilo teria de acontecer? Meu pai tinha então quarenta e nove anos de idade.

No dia 22 de março de 1956, ele faleceu. Enterramo-lo com toda a dignidade que ele merecia, na presença de muitos amigos. As lembranças que ele nos deixou, no entanto, continuaram a nos acalentar, a nos incentivar a viver de forma superior. Meu pai foi um homem com uma grande visão sobre o mundo. Viveu com a expectativa de que todos nós iríamos vencer na vida. Concretizou as suas ideias, sempre avançadas, em relação aos outros homens de sua época.

Pude conhecer muito bem meu pai. E sinto-me feliz com isso. De certa forma, ele ajudou-me a pensar sempre positivamente. Foi, afinal, um grande homem. Não sei o que se poderá dizer de outros tantos grandes homens que já viveram. No caso dele, no entanto, posso dizer que foi um homem exemplar, em todos os aspectos. Nasceu em 10 de dezembro de 1907, em Kobe, no Japão, e faleceu em 22 de março de 1956, na cidade de São Paulo, no Brasil.

18.

Em fins de 1956, saí de Juiz de Fora e retornei à cidade de São Paulo. Tinha terminado o curso de Técnico em Laticínios.

Vivíamos em meio às nossas turbulências, como podíamos. Desde o falecimento de meu pai, tudo mudara. Por alguma razão, nós tornamos os responsáveis por tudo. Morávamos, então, numa casa regularmente boa, perto da estação de Campo Belo, em São Paulo. Por ali, passava um bonde rumo a Santo Amaro. Tínhamos alugado uma casa ali, por pouco mais de um ano, e foi lá que meu pai faleceu.

Em casa, faltava praticamente tudo. Nem móveis adequados nós tínhamos, pois morávamos anteriormente na cidade de Assaí e grande parte deles havia desaparecido. Lá, estávamos prontos para trabalhar e, sobretudo, para sobreviver.

Não éramos ricos, mas aparentávamos ser. Vivíamos agora uma fase difícil, mas transitória. Vendemos a casa que tínhamos em Assaí, embora não tivéssemos sequer visto o dinheiro. De qualquer forma, vendemos o caminhão, o automóvel, os tratores, enfim, tudo o que possuíamos. Aplicamos todo esse dinheiro para montar uma farmácia dentro da cidade de São Paulo.

Mas o negócio da farmácia não vingou. Com o Zeniiti à frente, descobrimos que não tínhamos o dinheiro que julgávamos dispor. Morávamos pagando aluguel e tínhamos de trabalhar para sobreviver. Não aceitávamos isso na ocasião como coisa certa, mas sempre achamos que tudo aquilo seria provisório. Nosso otimismo, que no início parecia ser inquebrantável, foi, aos poucos, sendo substituído pelo pessimismo. De alguma forma, estávamos perdidos. Tínhamos de dar algum jeito para sair daquela situação. Tudo parecia tão difícil.

A falta que meu pai fazia… Foi uma morte terrível para todos nós. Talvez, porque fôssemos amigos, sentimos muito a sua ausência. Tínhamos de aprender a viver sem ele.

– Por que será que tudo aquilo tinha acontecido conosco?  Era como se tivéssemos perdido o calor que existia dentro de cada um de nós…

Quem parecia estar em melhores condições em casa era eu, técnico em laticínios. De fato, ingressei na Leite Vigor, logo no início do ano de 1957, mas lá fiquei apenas um mês. Na ocasião, tive de ir buscar os meus documentos em Juiz de Fora, para continuar o meu curso de contabilidade. Quando voltei, havia sido despedido. O meu chefe era um senhor anguloso, difícil de levar. Não gostava de mim, por alguma razão. Era estranho, mas foi assim.

A Leite Vigor era uma grande empresa, toda mecanizada. Pertencia a uma família de alemães. Tudo lá, ao que me consta, parecia perfeito. Gostei da empresa, pois era uma das melhores empresas brasileiras na área de laticínios. Aquele foi o meu primeiro emprego na cidade de São Paulo.

Havia naquele laboratório da Vigor um jovem, provavelmente descendentes de alemães, que parecia muito adaptado a tudo aquilo e que gostava de mim. Trocávamos muitas ideias. Dessas conversas, surgiu o pensamento de que eu deveria ir até o Instituto de Laticínios Cândido Tostes e trazer fermentados, que ele teria condições de desenvolvê-los. A grande paixão desse jovem era implantar novos fermentados lácticos naquela indústria.

Contudo, a estada em Juiz de Fora me possibilitou ver como as coisas mudavam ‑ os colegas que nós gostávamos não mais estavam lá. Tive a sensação de que, passados poucos meses, tudo havia se desmoronado.

– Por que tudo isso aconteceu? – perguntava a mim mesmo, sem qualquer resposta. A sensação de que tudo havia mudado irrompeu de forma cristalina.

Voltei e arranjei outro emprego, na Leite União, que pertencia a uns empresários espanhóis. Não era um lugar muito bom. Dava-me a impressão de que estavam interessados apenas em ganhar dinheiro, não importando como.

Fiquei cerca de quatro meses, trabalhando em um laboratório pequeno, dentro de uma fábrica, onde se fazia de tudo, sem muitas condições de higiene. Não havia nenhuma divisão de serviços; fiquei meio perdido em meio a tantas coisas que então se sucediam. Fazia um pouco de tudo – manteiga, fermentados, pasteurização etc.

Não pagavam bem, mas me permitiam autorização para retiradas antecipadas. No fim do mês, queria saber como estava a minha situação financeira. Certa vez, fiquei furioso quando descobri que nada receberia naquele mês.

O gerente do local, um espanhol, vivia me prejudicando. Eu queria pôr em prática ideias novas, mas ele não as aprovava.

Havia também um senhor, que deveria ter sido um chefe antes de eu chegar, e que fazia tudo sem reclamar de nada. Parecia até que se conformava ao seu destino. Sofria muito, mas não se queixava de ninguém. Fazia tudo, porque alguém tinha de fazer. Era um senhor meio gordo, que suava muito, mas um ser humano da melhor qualidade. Nunca se queixava de ninguém, porque não era da sua índole. Fiquei com pena dele, pois, certamente, não teria qualquer futuro naquela empresa.

Passei a trabalhar, então, na Leite Paulista, uma cooperativa de produtores de leite de uma grande área próxima à cidade de São Paulo. Lá me encontrei com o Edgar, um ilustre senhor, que era um dos diretores daquela instituição. Recebeu-me bem, conversei com ele muito à vontade, explicando minha situação. Soube, depois, que havia sido admitido para trabalhar naquela empresa, tendo por chefe o Zicarelli, um excelente administrador.

Fiquei cerca de dois anos na Leite Paulista. Por que queria? Não, não queria, mas não havia sequer meios de evitar tudo aquilo. De outro lado, nem poderia fazer nada melhor dentro daquela empresa. No início, tentei, por conta própria, assumir o laboratório, para realizar minhas provas. Não consegui. Por quê? Porque existia um enfermeiro que se arrogou ao direito de controlar sozinho aquele laboratório que nada produzia, com o reconhecimento da chefia inferior. Por que tudo isso? Nunca soube. Depois, descobri que aquela empresa era gerida quase como se fosse uma empresa pública. Não adiantava brigar, pois não levaria a nada.

Não sei por que ser técnico em laticínios, pois isso tinha pouco valor dentro daquela empresa. Queria ser outra coisa. Mas ser o quê? Perguntava, sem nenhuma resposta. Ganhava relativamente bem. Não podia reclamar. Não sabia, no entanto, por que ser um técnico em laticínios, se não estava utilizando os meus conhecimentos na área.

Fui ser chefe da Fábrica de Manteiga. Fabricamos tantas toneladas de manteiga naquele lugar! Possuíamos várias batedeiras enormes, a maior parte em aço inoxidável, e possuíamos cerca de quinze a dezessete funcionários. Aliás, foi ali que descobri que a manteiga extra, que era de excelente qualidade, era sem sal. Descobri que o sal alterava todo o bom gosto das manteigas de alta qualidade. A manteiga comum podia ter sal, mas nunca a extra. Foi uma das coisas que aprendi, então.

Diariamente, recebíamos dezenas de latões de creme, a maioria fresco, extraído de leite das cooperativas do interior, e que nos eram mandados para fabricar manteiga. Medíamos a acidez, e depois o utilizávamos na fabricação de manteiga. A manteiga produzida era de excelente qualidade. Razão pela qual a guardávamos em frigoríficos. Tudo, na prática, era normal, e o produto saía perfeito para os nossos gostos. Zicarelli era um chefe admirável, sempre de terno, muito versátil, resolvia todos os problemas daquela Leite Paulista. Forte, vigoroso, direto, mas sempre bem intencionado. Como o conhecíamos, não duvidávamos que quem mandava ali era o Zicarelli.

Tínhamos outro chefe, pouco atuante, que não mandava nada. Juarez seria seu nome. Era chefe por falta de outra colocação. Pois ele não entendia de nada. Pessoa difícil, no entanto. Havia, ainda, outros funcionários que nos eram caros, como o Oscar, uma pessoa admirável, e que foi chefe da Fábrica de Manteiga antes de eu ingressar. Depois que ele me ensinou tudo a respeito da fábrica, foi trabalhar na parte de recepção e tratamento de leite comum. Era uma pessoa importante dentro daquela organização.

Havia, entretanto, outras pessoas que dirigiam aquela indústria. Uma delas, o chefe da área de recepção de leite, cujo nome era Pedro, e que era uma pessoa admirável. Um dia, ele participou de um concurso público, ingressando como investigador de polícia. Trabalhava muito. Conversávamos com frequência. Porém, ele se mostrava uma pessoa inteligente, sutil, fácil para resolver divergências e pronto para tudo aquilo que fosse útil e bom para todos nós. Nunca brigávamos com ele, pois era forte elemento junto à diretoria da Leite Paulista.

Foi lá que conheci um bom funcionário da Leite Paulista, o Sílvio. Era o encarregado no laboratório especial, onde se faziam os exames para verificar as condições dos fermentados e da manteiga, bem como dos demais produtos ali fabricados. Ficava no andar em cima da Fábrica de Manteiga, e tornei-me seu amigo. Em parte, ele cuidava de relações públicas internas da Leite Paulista, na sua sala ficavam as autoridades fiscais que examinavam a situação daqueles produtos. O lugar era limpo, e tudo lá era agradável para todos nós.

Éramos amigos, para todos os fins. Todos os dias, estávamos juntos. Às vezes, íamos à casa do Silvio, em Guaianases. Fui lá algumas vezes para um churrasco ou para outras coisas. Ele era casado com uma moça muito amável e que nos recebia bem. Tomávamos um trem que nos levava para aquele bairro, no subúrbio de São Paulo. Sempre me entendi bem com aquele casal.

Uma vez, ele passou a vender relógios, que comprava de um revendedor. Eram de uma marca comum, provavelmente, de fabricante paulista. Ele facilitava a forma de pagamento. Para mim, parecia uma atividade perigosa, ao vender sem nenhum controle da transação efetuada. Ele, no entanto, não se importava com tudo aquilo. Ria, e ria muito, pois achava que estava fazendo a coisa certa.

Naquela ocasião, eu e o Silvio resolvemos abrir uma fábrica de doce de leite. Eu, evidentemente, queria fabricá-lo conforme havia aprendido no Instituto de Laticínios Cândido Tostes. Demos até um nome, “Milkin”, ao tal doce de leite. Porém, quando saímos para procurar um local adequado para abrir a fábrica, o Silvio machucou-se gravemente. Rememorando, a fábrica ficava na parte térrea, e o laboratório do Silvio na parte de cima, isto é no andar superior. Além da escada, existia ainda um elevador, com porta gradeada de encaixe. Utilizávamos muito esse elevador de serviço, para os nossos afazeres. Pois bem, de repente, o Silvio escorregou na manteiga caída no chão, caiu dentro do elevador, com os dois pés para dentro da porta gradeada fechada. Como o elevador estava subindo, foi só um grito, e os dois pés ficaram para fora, arrebentados. Nem podíamos acreditar no que havia acontecido. Corremos muito, amarramos as duas pernas para estancar o sangue, e chamamos uma ambulância para levá-lo ao hospital. Nem sabíamos se ele se salvaria então.

Foi uma confusão total. Custamos, mas ele foi transportado para um hospital. Não imaginávamos que fariam. Os médicos o atenderam apressadamente. Depois, tivemos de falar com sua esposa. Um desespero. Nem sabíamos como falar de uma coisa tão séria.

De certa forma, tudo aquilo nos pareceu algo inconcebível. Por que tudo acontecia daquela forma?  Depois de passar muitos dias naquele hospital, ele melhorou. Ficamos depois sabendo que ele poderia voltar a trabalhar mais tarde, mas dependeria da sua recuperação e das próteses nas pernas. Nós, evidentemente, ficamos abalados com tudo aquilo.

Sílvio retornou, depois de vários meses, mas agora sem as duas pernas. Tudo muito difícil. Eu, que acompanhava aquilo, achei tudo por demais dramático.

19.

 

Aqueles anos foram importantes para a minha vida. Com a morte de meu pai, conheci uma fase de profunda revisão do meu ser. Nossa subsistência dependia de todos nós, do nosso trabalho, e tudo se complicava então. Como disse, todo o dinheiro que tínhamos foi investido na abertura de uma farmácia, na cidade de São Paulo. O Zeniiti foi quem organizou tudo isso, na sua maneira honesta de ser. Foi enganado por seu sócio, um “prático” de farmácia, que não tinha dinheiro para montar um estabelecimento daquele, mas que sabia como manejar aquele empreendimento.

Eu, de certa forma, acompanhava todo aquele drama. Essa experiência acabou transformando o Zeniiti, simples e honesto, em uma pessoa cheia de brios, principalmente com relação ao campo financeiro. Não entendia nada daquilo em 1956, quando ainda estava em Juiz de Fora. Várias vezes, eu fui à farmácia ajudar nas vendas, quando vinha a São Paulo. Alguma coisa estranha estava acontecendo. E Zeniiti não conseguia dar um jeito. As brigas começavam e não tinham fim. Uma vez, duas vezes, dezenas de vezes, sempre sem solução.

Tudo indicava que o sócio-prático comprava os remédios necessários, porém em quantidade muito superior às possibilidades do estabelecimento. E o Zeniiti tinha de pagá-los, sob pena de sofrer protesto dos referidos títulos. Na primeira vez, tudo bem, na segunda, idem; à medida que aquilo foi se recrudescendo, ele começou a ficar aborrecido.

O sócio-prático do Zeniiti era uma pessoa calada, fechada, taciturna. Não sei se tudo aquilo não teria se resolvido se Zeniiti tivesse um pouco mais de paciência e a enfrentasse com a classe que hoje tem para resolver todos os seus problemas empresariais. Possivelmente nada daquilo teria acontecido.

Por conveniência, o Zeniiti, em sua boa fé, cedera graciosamente ao seu sócio-prático cerca da metade das quotas sociais da farmácia; ficou, portanto, pouco à vontade, quando os problemas surgiram. Quanto mais tempo passava, mais e mais o Zeniiti ficava em situação difícil, quase incontrolável.

Sei que, com isso, ele acabou vendendo a sua parte naquela farmácia, tomando parte do remédio que lá existia. O objetivo era vendê-lo depois e ficar com o seu resultado. Essas coisas geralmente acontecem com todos aqueles que não sabem negociar. Por que teria ele feito tudo aquilo, da forma tão errada, nunca saberemos. No entanto, ele quase não recebeu nada do que tinha direito naquela importante farmácia que havia criado.

Mais tarde, ingressou com ação judicial para preservar os seus direitos. Não me lembro como as coisas se resolveram. Provavelmente, nada recebeu. Saiu, então, para procurar um emprego e arranjou um trabalho noturno, junto à torre elétrica do “Cosmopolitano”, instalado no edifício Martinelli.

Eu, então, trabalhava como técnico em laticínios. Numa tarde, por curiosidade, fui até lá para vê-lo. Cheguei à porta do edifício Martinelli, tão tradicional em nossa infância, por fatos ali ocorridos com tantas pessoas famosas e políticos. Melhor dizendo, o prédio Martinelli foi, durante muitos anos, um palco importante dentro da cidade de São Paulo, não só por ser o edifício mais alto da cidade, mas pelo luxo que envolvia sua construção e pela decoração do seu interior.

– O que restou depois daquele importante edifício?

Tomei o elevador e fui subindo. Vi andares abandonados, muitos guardando lembranças do luxo que então devia existir. No teto daquele edifício, encontrei-me com o Zeniiti.   Ele lá estava, pareceu-me algo feliz, com tudo resolvido.

Não estava sozinho, mas em companhia do engenheiro, que, inclusive, estava alojado em nossa casa, um especialista japonês, para instalar aqueles instrumentos de visualização eletrônica. Provocando imagens bonitas no teto, construíram, com a palavra “cosmopolitano”, uma simbologia em metal enrolado. Valia a pena ver aquelas luzes luminosas subindo aos céus da cidade de São Paulo. Sem dúvida, era algo que chamava a atenção de todos.

– E então, como está, Zeniiti?  Está feliz, agora, depois de tudo resolvido, com relação à farmácia? – perguntei-lhe.

– Sim, é claro. No entanto, é tão pouco o que estou ganhando agora, que não sei como ficarão as coisas – respondia ele, de um lado, feliz com tudo aquilo, mas triste por sua nova situação.

– E o que pretende fazer, doravante? Tem ideia sobre o que fazer no futuro? – insisti.

Na verdade, não sei ainda, mas tenho de realizar outras conquistas, pois não será possível manter-me assim. Não será suficiente para custear as nossas despesas em casa – foi o que disse Zeniiti naquela ocasião.

Fiquei, ainda, um pouco mais, e depois me retirei. Ele ficaria até a meia-noite trabalhando, tentando, de outro lado, encontrar outros caminhos para a sua vida no futuro. Eu estava conformado com o fato de ser técnico em laticínios, e de estar ganhando muito mais do que ele, embora, como sempre, insuficiente para atender a todas as necessidades.

Depois que desci, olhei melhor o anúncio luminoso. Lindo, espetacular! Realmente, como se diria, era uma imagem que deveria ser vista mais vezes, pensei eu.

Em casa, o dinheiro para o sustento não era suficiente. Por isso, minha mãe arranjou alguns jovens japoneses, que vinham trabalhar no Brasil, para ficarem alojados conosco, como pensionistas. Lembro-me de três deles, que ficaram lá, por algum tempo. Eram boas pessoas, afinal de contas, então, tinham para onde ir.

Eles eram engenheiros, formados no Japão. Tinham vindo para trabalhar aqui no Brasil, e permanecer, se possível. Pudemos conviver com eles de alguma forma. Alguns deles estão ainda no Brasil, outros retornaram ao Japão ou foram para outros países.

Não sei por quanto tempo tivemos de levar esse tipo de vida, naquela casa de Campo Belo. Posteriormente, mudamo-nos para a Rua Costa Pereira, lugar próximo ao final da Av. Santo Amaro, onde ficamos por alguns anos.

Muitas coisas aconteceram. Conheci a Mariinha. Um belo dia, eu a encontrei. Fizemos amizade. Convidei-a, então, para sairmos juntos e nos encontrarmos em frente ao monumento de metal que existia dentro da galeria que nos conduzia da Praça Paissandu para a Avenida Nove de Julho, ou melhor, debaixo do Viaduto do Chá.

No dia marcado, temendo que ela não aparecesse, fui lá e, por surpresa, Mariinha surgiu. Bonita, como sempre, com uns belos cabelos, bem penteados, e uma roupa agradável. Encontrou-se comigo, sorriu, e saímos de lá juntos, para o nosso programa.

Não sei como descrevê-la. Além de bonita, era vistosa. Não era alta, mas magra, sem dúvida. Tinha alguns dons, que a diferenciavam das demais garotas de então. Era, sem dúvida, uma bela moça. Não sei se daria certo comigo, pensei depois. Penso hoje que aquele foi o meu primeiro namoro, real, verdadeiro. Saíamos muito, nem me lembro quantas vezes. Fomos a cinemas, teatros, e visitamos o meu amigo Silvio no bairro de Guaianases, para onde íamos de trem. Passeamos muito, realizamos até mesmo piqueniques. De qualquer forma, não sabia realmente o que esperar do futuro.

Depois de passar algum tempo, acostumei-me com ela, de forma que resolvi levá-la para a minha casa, lá na Rua Costa Pereira. Minha mãe recebeu-a bem, mas disse depois, entre resmungos para outro irmão, que ela poderia esperar tudo de mim, menos uma garota como aquela como namorada. Não se queixava dela, diretamente, nem foi contra. Era quase como se fosse uma lamentação. Evidentemente, senti, mas não me aborreci. Entendia o que ela pretendia dizer. Afinal, Mariinha não representava a garota que minha mãe esperava que eu conquistasse.

Muitas coisas depois aconteceram com a Mariinha. Ela morava com mais duas colegas, igualmente jovens, numa cobertura de um prédio de luxo, num dos melhores bairros da cidade. Fui lá por várias vezes.

Namoramos por cerca de dez meses, talvez quase por um ano. Tinha também convicção própria de que ela não serviria para mim, pois seu jeito de ser não combinava com o tipo de vida que eu gostaria de construir. Uma vez, descobri que ela estava grávida. Não de mim, esclareça-se. Precisou realizar uma cirurgia e tudo se complicou. Tive, então, de arranjar um dinheiro extraordinário, para socorrê-la, num hospital.

Por que tudo aquilo tinha acontecido? Não sei. Aliás, ela sempre arranjava uma bela desculpa para justificar tudo aquilo. Ela não trabalhava, de forma que fiquei com dúvidas sobre a sua qualidade de vida. No entanto, não se poderia dizer que ela vivesse com meios anormais. Não era desse tipo.

Por todas essas razões, depois de algum tempo, resolvemos desistir de namorar. Ficávamos algum tempo sem nos ver. Mas a saudade e outras questões que surgiam aproximavam-nos novamente. Não adiantavam as nossas intenções de nos afastar um do outro. Depois de alguns dias, voltava, lamentavelmente. Até que, depois que ela arranjou outro namorado, acabei deixando-a definitivamente.

Foi, no caso, um exemplo, de como as pessoas seriam. Não sei se ela era ruim. Parecia que não. Porém, as dúvidas me atormentavam. Conquistei, destarte, o direito de namorar, de forma normal. Representou uma experiência difícil para mim, entender tudo aquilo, da forma como aconteceu. Não senti que tivesse cometido algo ruim, no caso.

Muitas outras coisas tiveram lugar naquela época. O Zeniiti, após ficar por pouco tempo no edifício Martinelli, fazia um curso de telegrafista, quando foi chamado para ser comissário de bordo de uma empresa aérea, que acabou se transformando na Varig. Nos seus aviões, ele percorreu, durante uma década, os aeroportos do mundo inteiro.

Os outros irmãos, a Cecília, o Kyozo e eu, trabalhávamos da melhor forma possível. Estávamos fazendo o nosso papel, em prol do nosso lar. Tudo aquilo pelo que havíamos passado tinha sido extremamente duro. Depois de dois anos, as coisas começaram a melhorar gradativamente.

O trabalho de minha mãe era da melhor qualidade. Por alguma razão, que nunca entendi, ela realizava aquilo que sempre entendeu como o seu papel de mãe. Sabia que seu papel seria da maior importância, desde que seus filhos, depois da morte do seu marido, deixassem de brigar e lutassem para ganhar a vida. Foi, sem dúvida, uma época importante de nossas vidas, por variadas razões.

20. 

 

Aqueles três anos, entre 1957 e 1960, foi um período difícil, pelo menos para mim. Entender o mundo naqueles tempos não era fácil para os jovens. Passei por muitas fases tumultuadas. Nessa época, contudo, comecei a experimentar muitas coisas interessantes para o meu futuro e, sobretudo, para a condução da minha vida.

De certa forma, foi isso o que aconteceu com relação ao estudo de Logosofia.  Após ler anúncios nos jornais propagando a realização e preparação sobre essa ciência, fui à Fundação Logosófica de São Paulo, que ficava em um andar alto, na Rua do Riachuelo, no meio de uma subida. Na ocasião, não me importei quanto ao lugar, de difícil acesso. Lá ficava a Associação Comercial e o lugar não me parecia ser tão ruim. Hoje, no entanto, teria muitas dúvidas em construir aquela sede em um local de acesso tão difícil.

No local, encontrei um estudante de Logosofia, um bom alfaiate, que se tornou meu amigo e me deu toda a atenção. Passei a frequentar a Fundação Logosófica e, enquanto esperava o meu preparador, conversávamos longamente sobre os problemas da nossa vida. Na época, a situação não era das melhores, pois além de trabalhar muito, não tinha dinheiro para me vestir adequadamente e passava por momentos críticos, sob muitos aspectos. Mas era jovem e cheio de inquietudes sobre meu futuro, com dúvidas sobre como encarar o mundo.

Tinha vivido muitos anos no interior, período em que pude formar meu caráter, em condições complexas, embora vivesse em bons sítios e numa excelente fazenda. Contudo, a morte prematura do meu pai no ano anterior não me permitia entender melhor todo o nosso drama daquela época. Agora, tinha de viver por minha conta, isto é, conseguir dinheiro para o nosso sustento. Tudo, portanto, era extremamente difícil.

Em São Paulo, fui atendido inicialmente por um estudante de Logosofia, um engenheiro e sua delicada esposa. Tornei-me amigo deles em virtude de nossas conversas constantes. Recordo-me, igualmente, que a convite dos mesmos, fui uma vez até a casa deles para almoçar. Eles eram amigos do Antonini, que compareceu animadamente ao evento, tentando eles, de todas as formas, fazer-me um bom estudante de Logosofia naquela época.

Posteriormente, fui aspirante do próprio Jose Antônio Antonini, um advogado brilhante, preparado, de alto nível, com quem mantive um intenso intercâmbio para ingressar na Fundação Logosófica em São Paulo.

Conheci o Jurandir da Silveira, diretor daquela instituição, um mineiro, então com cerca de quarenta e cinco anos, oficial do exército, muito concentrado em tornar a Logosofia algo de nível maior. Era alto e magro. Sua esposa Juracy, era uma mulher inteligente, muito dedicada a tudo aquilo, e que contribuiu para que eu ficasse por lá mais tempo.

Guardo do Jurandir lembranças das mais agradáveis. Além de criar a filial da Fundação Logosófica em São Paulo, ele a dirigiu sempre de forma honrada, procurando desenvolvê-la. Recordo uma vez em que encontrei o Jurandir dentro de um elevador na filial de São Paulo. Ele estava acompanhado por uma pessoa, que me apresentou como Fritz Weissmann, então reitor da filial do Rio de Janeiro. Este me olhou, mostrando todo o seu lado humano. Cumprimentei-o. Viria a conhecê-lo melhor depois que vim morar no Rio de Janeiro, em 1959.

Fritz Weissmann foi, talvez, aqui no Brasil, um dos homens importantes para a obra logosófica. Relata que um dia ele estava numa barbearia, quando viu uma revista que falava algo que lhe chamou a atenção: “Logosofia”. Leu uma vez, depois, mais uma, até que resolveu pedir ao barbeiro aquela publicação, para poder escrever, pedindo informações sobre a Logosofia. Isso teria ocorrido em fins da década de mil novecentos e quarenta.

Fritz era então presidente da Ciferal, até recentemente a maior empresa de carrocerias de ônibus do Estado do Rio de Janeiro. Foi, de qualquer forma, um homem sábio, de elevados princípios, como excelente cultor dos princípios logosóficos. Em certa ocasião, ele me fez o seguinte relato:

– Há algum tempo, fundei uma fábrica de carrocerias no Rio de Janeiro. Entendi que aquilo seria o anelo maior da minha vida. No entanto, talvez pelo excesso de confiança que devotei aos meus colegas, eles acabaram, a meu ver, “surrupiando” o controle daquela empresa. Fiquei desesperado, então. Contudo, pensando melhor, cheguei à conclusão que assim como me usurparam uma empresa de carrocerias, eu poderia, por minha conta, criar outra empresa, talvez maior. Foi assim, com rebeldia, que construí esta grande empresa, que foi a Ciferal.

Além de ser reitor por muitos anos da obra logosófica no Rio de Janeiro, ele foi membro vitalício do Conselho de Administração, que construiu, com sua ajuda, os assentamentos principais da Fundação Logosófica.

Noutra ocasião o Jurandir apareceu com o Afonso Ranieri e sua ilustre esposa, Guilhermina, que, muito animados, falavam de um passeio a Santos, num carro pertencente ao visitante, levando o reitor e sua esposa, que tinham vindo de Belo Horizonte para passar alguns dias em São Paulo, de forma que, como de costume, não podiam deixar de visitar a Fundação Logosófica local.

Mais tarde, vim a conhecer melhor o Ranieri, que sempre lutou, com uma força extraordinária, para fazer a obra logosófica avançar. Uma vez, o Ranieri descobriu que alguém queria vender uma casa. Prontamente, ele decidiu que aquela seria destinada à obra logosófica. E, melhor do que isso, ele mesmo fez questão de comprá-la, pois os demais estudantes daquela época não tinham o dinheiro necessário. Foi dessa forma, segundo ouvi, que não apenas uma casa, mas várias foram sendo adquiridas, para construir parte daquilo que hoje representa a Fundação Logosófica na cidade de Belo Horizonte. Grande admirador e também amigo de González Pecotche, a quem chamávamos de Raumsol, criador da Logosofia, Ranieri fez de tudo para que a obra logosófica se fixasse e ampliasse de forma admirável naquela cidade, onde o mesmo tinha uma rede de lojas de materiais esportivos.

Um dia, ele foi convidado a dirigir um importantíssimo Congresso de Logosofia, de nível internacional, em Belo Horizonte. Todos entenderam que seriam ditas coisas de importância transcendental no curso do mesmo, inquietando a todos. Depois, para o encanto dos inúmeros convidados, falou para que não se preocupassem em dizer qualquer coisa de especial, pois tudo estava dentro de cada ser humano, na medida de sua realização consciente. Disse que seu espírito, como ensinava Raumsol, estava indicando o caminho da superação para alcançar a Deus, pela realização consciente, participando do mesmo em sua integridade. Tudo aquilo ele vinha comprovando de forma segura e reiterada, em vários anos, mostrando o quão verdadeiro era tudo aquilo. Citou muitos relatos encantadores a respeito, para admiração de todos, dizendo que esperava que os discípulos de González Pecotche fizessem a mesma trajetória.

Outro fato importante que aconteceu, ainda em 1958, foi a visita que recebemos de Alcira Lopes Ibarburu, Enriqueta Olave e Elena Martinique, que vieram de Montevidéu, Uruguai, para nos preparar para a visita que González Pecotche faria brevemente ao Brasil, depois de muitos anos de ausência.

A Alcira era uma moça alta, magra, elegante e dona de grandes conhecimentos, sabendo impor-se de forma leal e poderosa, se não pelos ensinamentos logosóficos, que comprovava possuir, mas pela sua esplendorosa individualidade. Encantou-nos completamente. Quando Alcira chegou, fomos todos nós cativados por ela, em todos os sentidos, quer pelo seu conhecimento logosófico que era esplêndido, quer ainda por sua longa experimentação individual.  Ela, afinal, devia ter as suas razões, por tudo aquilo que apresentava. Era considerada uma verdadeira discípula de Raumsol. Além de Alcira, carismática como sempre, lá estava a Enriqueta, uma moça que na ocasião nos pareceu sábia e brilhante em suas colocações. Todos os problemas que nós colocávamos, elas os resolvia prontamente, de forma surpreendente. Para mim, um novato, parecia-me que estava falando com o próprio criador daquela importante ciência. De alguma forma, tudo aquilo me encantou sobremaneira. Fiquei, como se diz, fascinado com o estudo de Logosofia.

Naquela ocasião, lembro-me agora, perguntei-lhe algo, e a Alcira respondeu-me com aquela magistralidade, nunca vista em outras pessoas:

– Segundo meu entendimento, se alguém me dissesse que realizou determinada coisa, eu responderia corretamente que sim. Porém, se dissesse que havia matado outro ser humano, eu nunca responderia que sim. No entanto, se me perguntasse se havia realizado uma coisa verdadeira, responderia que não.

– Não entendi sua explicação – repliquei.

– A resposta dada é simples. No entanto, será indispensável que você pense a respeito. Com isso, tenho a certeza de que tudo se tornará claro.

Tudo aquilo me abismou, pois não podia entender. Fiquei de pensar sobre tal assunto. Contudo, compreendi que uma coisa certa foi realizada, a morte de um terceiro. No entanto, não foi um ato verdadeiro, o de matar, pois não é normal aos seres matarem os outros.

Fomos almoçar juntos em um hotel de alto luxo, para nos despedirmos delas. Tudo foi maravilhoso, naquela época, para todos nós. Eu havia ficado encantado com Alcira Lopes Ibarburu, Enriqueta Olave e Elena Martinique, aquelas fantásticas moças, grandes estudantes de Logosofia.

Em 1959, cerca de um ano e dois meses depois que ingressei na Fundação Logosófica, transferi-me de São Paulo para o Rio de Janeiro, para fins profissionais. Enquanto permaneci em São Paulo, pude estudar muito, para entender melhor tudo o que a Logosofia me ensinava. Eu gostava de tudo aquilo; tornava-se parte da minha vida. Meus outros companheiros de então, que viviam em São Paulo, eram grandes amigos para todos os fins.

Ingressei na Fundação Logosófica no dia 21 de abril de 1958. Foi um ato de bondade terem permitido o meu ingresso, pois achava que pouco entendia daquilo tudo. De qualquer forma, fiquei grato. Sempre guardei daquela instituição logosófica de São Paulo uma recordação das mais elevadas e carinhosas.

21.

 

Nem sei bem como as coisas aconteceram. Contudo, tornaram-se importantes para o nosso futuro. Refiro-me a Minako. Ela talvez tenha aparecido em minha vida porque a sua mãe teria vindo do Japão com minha mãe, ou teria vindo para acompanhar sua irmã Sumiko, interessada em conhecer melhor o Zeniiti.

Fiquei fascinado pela sua beleza e por sua expressão. Não sei o que ela tinha de tão carismático assim. Contudo, havia-me encantado completamente. Honestamente dizendo, nunca havia pensado em namorar uma filha de japoneses. Ela, no entanto, superava todas as minhas intenções anteriores a respeito do assunto.

Ela era lindíssima, alta, magra, com um sorrido encantador, demonstrava em seu ser toda a beleza de uma mulher extraordinária. Tinha cerca de vinte anos e trabalhava naquela ocasião numa empresa local, como assistente de contadora, ganhando relativamente bem.

Em parte, em razão das antigas ligações que a família dela tinha com a nossa, comecei a frequentar a casa dela, passando ela também a vir à minha, para passearmos. Quando começamos a namorar, propriamente dito, fui a sua casa para sairmos juntos. Mas, na hora de sair, ela, subitamente, caiu da escada íngreme, que havia em seu apartamento, machucando-se gravemente. Levei um grande susto, ou melhor, nem consegui entender o que tinha acontecido. Cheia de contusões, ela teve de ficar imobilizada por vários dias.

– Será que ela quebrou uma perna ou, quem sabe, um braço? – eu perguntei, na ocasião, assustado. – Ninguém sabe. Mas irão chamar um médico, urgentemente – foi o que me responderam. – Havia algo que pudesse ser feito? – Ninguém sabe.

Bastante sem jeito, fui embora, já que a Minako não poderia sair por vários dias. Não sabia em que pensar, pois tinha, havia pouco tempo, deixado de namorar a Mariinha e tudo estava ainda confuso para mim. De qualquer forma, depois de alguns dias, verificamos que nada de mais sério acontecera com a Minako.

Várias e várias vezes, nós saímos depois, para trocar ideias e formar uma visão sobre o futuro e sobre as nossas vidas. Estávamos, então, realmente encantados com tudo aquilo que acontecia. Tudo isso começou em fins de 1958. De alguma forma, as coisas começaram a se encaixar.

Dei-me conta, assim, que meus ganhos, como chefe da fábrica de manteiga na Leite Paulista, eram menores que os da Minako, que trabalhava como assistente de contadora numa empresa ali perto. Tudo isso me levou a pensar que teria de realizar outras coisas, se quisesse imprimir à minha vida um novo rumo. Por minha iniciativa, acabei levando-a para a Fundação Logosófica, a fim de que ela conhecesse a Logosofia. Foi mais ou menos no meio daquele ano, que surgiu a oportunidade de vir para o Rio de Janeiro, para trabalhar na empresa Ishikawajima.

De certa forma, a ida para o Rio de Janeiro iria nos ajudar na parte financeira, que era o meu ponto fraco naquelas circunstâncias. Afora isso, me afastaria do Zeniiti, que, quer quisesse ou não, agia sempre como irmão mais velho, com tendências totalitárias. No Brasil, naquela época, havia um clima de grande euforia. Era a época do desenvolvimento industrial. As grandes multinacionais estavam se instalando no país. A atmosfera era adequada para investimentos significativos. Juscelino Kubistchek de Oliveira era o presidente da República, incentivando entusiasticamente com seu plano de metas. Estávamos na época do grande milagre econômico, da grande esperança do Brasil, segundo a maioria dos jornais.

Uma noite, eu pedi a mão da Minako. Sem jeito, não sabia como dizer isso de forma amigável. Assim, num dado momento, perguntei-lhe se gostaria de casar comigo. Evidentemente, ela respondeu que sim, mas de forma estranha. Ou melhor, depois de pensar um pouco, respondeu afirmativamente, embora não do modo que eu esperava.

 

 

Capítulo IV

 

Pelas fundamentais transformações

 

22.

 

Tinha vinte e três anos de idade quando, em agosto de 1959, cheguei à Ishikawajima, no Rio de Janeiro, a pedido do seu departamento de pessoal. Não sabia, porém, se conseguiria entrar naquela importante empresa. A pretensão era essa, entretanto. A contratação dependeria do resultado da entrevista a que me submeteria.

Preparei-me o melhor que pude para a mesma; pensei em tudo, para poder responder de forma conveniente. Estudando Logosofia, achava que tinha condições para transpor aquela prova.

– Raumsol não dizia que tínhamos de estar preparados, com uma mente grande, para suportar todas as situações que aparecessem?

Queria ingressar na Ishikawajima e iniciar minhas atividades na indústria naval, que estava, na realidade, em plena efervescência, em razão do Plano de Metas do Governo Kubitschek de Oliveira.

– Será que essa indústria terá vez aqui no Brasil? – era a pergunta que todos fazíamos naquela época, não obstante o desenvolvimento promissor que se anunciava.

Ninguém sabia, embora, dentro de cada um de nós, existisse uma forte esperança. Na ocasião, havia um grande marasmo na administração pública. Na parte de controle de pessoal, por exemplo, a inércia era generalizada, inclusive no setor privado, pois este era regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas. Segundo a CLT, após cada dez anos, era garantido ao empregado o direito à estabilidade, segundo a qual, o mesmo só poderia ser despedido pagando-se a indenização em dobro, embora mediante a instalação de inquérito judicial.

Tudo era extremamente difícil. Ninguém poderia chegar e dizer que iria abrir uma empresa, pois as consequências na área de pessoal eram imprevisíveis. Havia greves por toda a parte, em nome da “democratização do povo”.  Ninguém conseguia, quer no âmbito do funcionalismo público, quer no âmbito da política de pessoal das empresas privadas, entender o que então acontecia. Parecia mesmo haver uma estagnação generalizada em todas as áreas. Os presidentes da República até então eleitos tentaram alterar o caos reinante, mas não conseguiram.

Contudo, o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira estava conseguindo agora alterar toda aquela estrutura. Não sabíamos até onde aquilo nos levaria. Porém, as perspectivas eram animadoras para todos nós. Seus planos de trabalho estavam impregnados de grandes ideias, daquilo que ele denominou de “Plano de Metas”, segundo o qual realizaria cinquenta anos de avanço neste país num período de cinco anos. Foi sua promessa durante as eleições. No setor da indústria automobilística, por exemplo, dentre vários outros, estava dando resultado.

– Por que não daria também na área naval?

Quando se desenhou o Plano de Metas para o setor naval, várias grandes indústrias se interessaram no mundo inteiro. Viriam a Ishikawajima, pelo Japão, a Verolme, pela Holanda, e mais um grande estaleiro pela Alemanha, além de outras indústrias de menor porte. Todos receberiam muitos benefícios para se instalarem no Brasil, inclusive pedidos de navios de algum porte, para funcionarem por algum tempo.

No caso na Ishikawajima, esta recebeu terrenos na Ponta do Caju, em parte ainda necessitando ser aterrados, teve direito à importação de máquinas e equipamentos, sem cobertura cambial, para serem utilizados em seu ativo fixo, e, ainda, uma participação do próprio Governo Federal como acionista, sem contar com outros itens.

Quando ingressei, em agosto de 1959, os trabalhos estavam intensos por toda a parte. Fui admitido sob o número dezenove na Ishikawajima do Brasil – Estaleiros S.A., a que denominávamos simplificativamente de Ishibrás, constituída em janeiro de 1959. E tudo começou ali, na Avenida Presidente Antônio Carlos, 607, sobreloja, onde se situava a Ishikawajima do Brasil S.A. Indústria e Comércio, com a sigla Ishicom, empresa estabelecida aqui no Brasil alguns anos antes, para comercializar a venda dos navios.

Naquela ocasião, a viagem de São Paulo para o Rio de Janeiro era feita pela Rodovia Presidente Dutra, uma boa estrada, não tão segura quanto a atual, que possui duas vias, uma para vir e outra para voltar, separadamente. Como sempre, havia a presença de neblina, muitos carros correndo, luzes na contramão tirando a nossa visão da pista, quer dizer, o perigo sempre existiu. Não era nada fácil, para mim, vir de São Paulo para o Rio de Janeiro para trabalhar. No entanto, fazia-o a cada duas semanas, via de regra. O tempo que se levava era grande. Havia trem, que funcionava como hoje, mas não era o elemento apropriado para tal fim.

Quando ao telefone, conseguíamos fazer ligações do Rio de Janeiro para São Paulo, mas levávamos horas, geralmente duas ou três, sempre pedindo à telefonista da empresa telefônica. E a voz não era nítida, como hoje. De certa forma, também na área telefônica, tudo melhorou com o tempo, com a instalação de novos equipamentos, mais modernos, no seu circuito. Naquela época, não obstante serem caríssimas e difíceis tais ligações, eu me esforçava para falar com a Minako, com a minha mãe, meus irmãos e nossos amigos.

Cabia-nos cuidar, também, da instalação de telefones, tanto no estaleiro, quanto no escritório da cidade. Uma tarefa impossível naqueles tempos. Não podíamos comprar as linhas, pois isso era proibido. Tínhamos de negociar muito para conseguir telefones. A facilidade que hoje existe, naquele tempo, seria um verdadeiro sonho. Sem telefones, o estaleiro funcionava com muita dificuldade.

O tráfego de aviões entre as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro já existia. Mas não era ainda a belíssima ponte-aérea que foi criada depois. Contudo, as aeronaves eram pequenas e voavam com hélices. Os aviões maiores, só para viagens internacionais. De vez em quando, ou em emergências, viajávamos de avião.

O meu trabalho era no setor de serviços gerais. Cuidávamos da vigilância interna dentro do estaleiro, tendo até mais de quarenta homens, em determinada época. Tínhamos de organizá-los, estabelecer as hierarquias e outras regras, com vistas a salvaguardar aquele importante lugar. Cuidávamos também do correio, entre o escritório da cidade e o estaleiro, nas idas e vindas de pessoal, quer da empresa, quer de outras empresas. Cabia-nos regularizar a parte dos registros legais do estaleiro, tanto nas construções dos prédios, quanto dos terrenos; o Governo Federal fornecia dados, porém, sua perpetuação, como terreno foreiro, era problemática. Tínhamos de cuidar de tudo isso. Contratou-se, inicialmente, o advogado Elbe Hayao e um pouco mais tarde, no início de 1960, o advogado Takeo Ogino. Até então as decisões legais ficaram sob o nosso comando. Nem me lembro de como foi possível fazer tanta coisa naquela ocasião.

Travamos contato com todo o pessoal da primeira linha, como o almirante Ayres Pinto da Fonseca Costa, o engenheiro civil Orlando Barbosa, o almirante Aniceto Cruz Santos, o Ruben Noronha, além do pessoal do Japão, como o Giroku Fuji, o Taiji Ubukata, o I. Sawanobori, e outros diretores de então. Havia outras pessoas que foram úteis nessa etapa, quer do setor de pessoal, do setor de finanças, de compras, de projetos ou de construção civil. Foi uma curiosa aventura ter trabalhado com todo esse pessoal altamente qualificado.

O nosso trabalho na Ishibrás foi bastante produtivo, uma vez que tudo parecia ser importante. No meu caso, convivi com vários outros colegas de destaque, tais como a Setuco Nakano, que logo depois deixou a empresa para ser uma tradutora de língua japonesa e portuguesa; o Nakajima, expressivo estudante de direito; o Nakajima, importante funcionário; Yanase, um excelente contabilista, e, ainda, com diversos colaboradores, bem como três ou quatro datilógrafas, vários motoristas e um esquadrão de vigilantes para trabalharem para aquele setor e diretoria. Não posso me esquecer de uma secretária, a Arineyde. Era mãe, nova, mas separada, muito bela, magra, calma e paciente. Trabalhou comigo por alguns anos. Sabia datilografar como ninguém. Quando tínhamos urgência, era só recorrer a ela. Tinha um modo extraordinário de nos atender. Ela gostava daquele trabalho. Depois que saí daquele setor, ela acabou deixando a empresa. Fiquei com muitas saudades daquela moça.

Naqueles tempos, em que deixei São Paulo para trabalhar no Rio de Janeiro, muitas coisas importantes aconteceram. Durante os primeiros anos, minha posição frente ao trabalho na Ishibrás foi, portanto, de intensa expectativa. Eu estava, evidentemente, entusiasmado com perspectivas com relação ao futuro, tinha muita disposição para trabalhar, pois estava com muita vontade de fazer as coisas de uma forma acertada.

Para mim, o mais importante naquele setor foi aprender a trabalhar em conjunto. Mas, por mais que me dedicasse a subir dentro da empresa, as coisas não funcionavam como esperava, não por falta de mérito de minha parte, que todos reconheciam amplamente, mas por questões de política daquela empresa.

Eu, na realidade, aspirava ser promovido, porém era muito jovem para os padrões japoneses, tendo então entre os meus vinte e quatro e vinte e cinco anos de idade. Nunca entendi bem aquilo, pois estava aqui no Brasil e não no Japão, e as regras eram diferentes nos dois países. Embora extremamente competente nos meus trabalhos, era, contudo, indispensável que a minha chefia me apoiasse. Do contrário, nunca subiria, por mais forças que eu demonstrasse. Foi o que entendi ao ver a lista com a relação de chefes, que passava de seis em seis meses, sem o meu nome.

No entanto, à medida que fui observando, vi que a política das empresas japonesas era bastante diferente da que nós, os brasileiros, conhecíamos. Eles não recompensavam aqueles que sabiam fazer as coisas; outros itens intervinham na avaliação dos funcionários, como idade, senso crítico e responsabilidade e, finalmente, o parecer favorável da sua chefia. A primeira obra de grande vulto iniciada naquele estaleiro foi a do dique seco, que era cavado no chão, com abertura para o mar.

Quando cheguei, havia muitos empreiteiros trabalhando na construção daquele dique terrestre, magistral em sua concepção. Aquela fortificação de aço, construída em grande estilo, com sua enorme porta cuja abertura para o mar permitiria que os navios dali saíssem ou ingressassem, impressionou-me deveras. Pude sentir, de repente, o quanto os japoneses eram grandes industriais, capazes de realizar obras gigantescas. Para construir aquele enorme dique seco, foram utilizados centenas de homens, uma parte estacando aquelas enormes chapas de metal, armadas, naquele chão, batendo de forma seca e perene, para, depois, ir retirando a terra existente dentro, e, posteriormente, colocando as enormes solidificações de cimento armado, construindo um dique seco dos mais modernos que existiam no Brasil, tendo, além disso, uma abertura admirável. Ao se abrirem as portas, ingressava a água do mar, à medida que a referida porta, enorme, se tornava naufragável, para retirada fácil, além da construção das laterais, bem como nos telhados, sempre com as enormes áreas para ingressos dos mecânicos pelas mesmas.

Além disso, quanto à parte anterior, onde os metais eram cortados e soldados, formando-se enormes blocos, com a existência, em toda a área, inclusive sobre o chamado dique seco, com as pontes rolantes, e muitos aparelhos de solda elétrica em toda a oficina, espalhando às centenas. Tendo, também, várias casas, onde os mecânicos e seus chefes se reuniam, para estudar os problemas ou para orientar os trabalhos.

Estar naquele estaleiro, naquele tempo, vendo aquele dique seco, enorme, na fase inicial, ou mais tarde, com sua ampliação, outro dique seco realmente gigantesco, para construção de navios enormes, era, na verdade, uma sensação admirável. Chegar ali e ver que, na verdade, naqueles diques secos, se edificavam verdadeiros navios, que depois eram lançados ao mar, sendo concluídos junto ao cais, enorme, era algo que encantava a todos nós. Imaginar um navio, tudo bem, é aceitável, mas saber que, diante de nós, está se construindo um navio, ou vários deles, com a ajuda de tantas pessoas, inclusive com a ajuda de tantos equipamentos especiais, como dos guindastes enormes, que lá foram colocados, para levantar várias toneladas, era, realmente, uma sensação mais do que entusiasmante, era algo de incrível.

Pudemos, destarte, participar das chamadas provas de mar dos navios construídos, no que levávamos um dia, ou mais, realizando todas as provas, inclusive a de velocidade, com muitos técnicos ao nosso lado, bem como de representantes das sociedades classificadoras, de importantes autoridades da Sunamam, bem como de representantes das empresas adquirentes daquelas enormes embarcações. Talvez daí a sensação de que todos estavam trabalhando demoradamente. Tudo indicava sucesso. Observando o pessoal daquele tempo, tentando aprender as técnicas de soldagem, usinagem, montagem das peças, manutenção dos itens importantes, tudo que os especialistas japoneses faziam, com muito apuro, eu pude concluir que os brasileiros eram bons trabalhadores, aprendiam rápido seu ofício.

Era, para nós, uma grande emoção, ver aqueles enormes navios, em sua construção desde o início. Primeiramente, preparavam-se projetos e desenhos, posteriormente, trabalhava-se na sala de riscos, depois, impulsionando-se jatos de areia, procedia-se a limpeza das chapas de aço, passando-se em seguida às pinturas competentes. Cortava-se depois, utilizando vários métodos, inclusive tecnologias avançadas, para depois começar a trabalhar na montagem das chapas de aço, criando os chamados blocos, os quais eram levados, por força das pontes-rolantes, para dentro do dique seco, onde eram montados. Dessa forma, aos poucos, os cascos dos navios iam se configurando, transformando-se, com o tempo, em verdadeiras embarcações.

Ver, de igual forma, que aquele estaleiro, que começou construindo navios de cerca de 6.000 toneladas deadweighte passou a construir de 1.000, de 30.000 toneladas deadweight… A construção de diques flutuantes, de plataformas continentais, para perfuração ou extração de petróleo do fundo do mar, ou ainda, mais tarde, navios gigantes de 300.000 toneladas deadweight, foram momentos marcantes, que presenciamos ao longo da história.

O estaleiro que então existia era relativamente grande, talvez algo em torno de 30% do atual. Depois, ficamos imaginando se todos teriam entendido o quanto custou construir um estaleiro moderno no estado do Rio de Janeiro. Por outro lado, trabalhar na Ishibrás desde o seu início, em 1959, não deixou de ser uma oportunidade excelente para a minha vida. Como aprendiz de uma grande empresa, pude ver como as pessoas podiam trabalhar de forma organizada, atendendo a mil e um propósitos diferentes.

Constatei, igualmente, que os setores de administração, de finanças e contabilidade, de política de pessoal, de compras e de vendas, além de importação e exportação, de atendimento médico e do setor jurídico, trabalhavam em conjunto para fazer aquele estaleiro funcionar como uma grande empresa.

O nosso trabalho, naquele início, foi o de tentar estabelecer as bases para os chamados serviços gerais, uma espécie de administrador de pequenos problemas que sempre surgiam dentro das grandes organizações. Cuidávamos, então, dos serviços de transporte de pessoal, dos meios de comunicação entre as diversas áreas internas, até mesmo com a Ishikawajima no Japão. Dávamos, ainda, toda assistência à diretoria.

Adquiríamos, para isso, várias kombis, que pintávamos com a marca Ishibrás, e estabelecíamos horários de correio, para os nossos motoristas cumprirem; compramos todos os móveis e utensílios que necessitávamos, os quais, depois, foram demarcados para serem arquivados e preservados como bens da empresa. Dávamos ampla assistência jurídica nos contratos que íamos firmando, bem como em todas as questões ligadas à formação e manutenção das sociedades anônimas, inclusive na incorporação de bens importados, sem cobertura cambial, para integrar o capital da sociedade.

Quanto às outras oficinas, existia uma que era de elaboração de equipamentos, cheios de tornos e outras máquinas; outra, para elaboração de máquinas e aparelhos, além de outra para a construção de motores a diesel de grande capacidade, que, após sua elaboração, transformava-se em uma construção de três a quatro andares, além de outra oficina, para cuidar dos equipamentos mais simples.

Vi as obras de construção civil, bem como os setores de equipamentos e máquinas, onde uma multiplicidade de máquinas, tornos e outros equipamentos estavam em pleno funcionamento, além dos setores de elaboração dos motores gigantes que visavam propulsionar os navios ali construídos.

As greves, que no início eram raras, aumentaram até 1964, quando ocorreu a revolução militar. Por alguma razão, que nunca entendi, os metalúrgicos que trabalhavam na área naval eram considerados uma classe especial. Os líderes se formaram, quase todos entre nós, além dos políticos que lá vinham para fazer os seus comícios. Dentre os muitos políticos e homens públicos que nos visitaram, lá esteve o Carlos Lacerda, que iniciava seu mandato de governador do Estado da Guanabara. Veio num jipe, dirigido por seu filho. Quase sem nos avisar, foi ingressando e festivamente recebido, apesar de termos, então, dúvidas sobre como seria o desempenho dele como governante. Posteriormente, descobrimos que ele exerceu admiravelmente a sua gestão. Tinha um dom especial para cativar a todos que encontrasse.

23. 

 

Naquele tempo, em setembro de 1959, foi definitivamente acertada a visita do argentino Carlos Bernardo González Pecotche, a quem os estudantes de Logosofia, denominados discípulos, ou melhor, estudantes, que com significado mais profundo, o consideravam como maestro. Chamavam-no de Maestro Raumsol. Todos diziam que ele era um homem excepcional.

González Pecotche era um homem enérgico, que não toleraria qualquer erro em seus discípulos, que seríamos nós, segundo se dizia. Vivia efetivamente aquilo que ensinava. Portanto, deveria ser mesmo um ser humano com condições excepcionais. Tinha nascido na Argentina, local da sede de então da Fundação Logosófica, instituição cultural criada por ele.

Para mim, que era novato, não podia fazer uma ideia clara de como ele era. Depois de ouvir muitas histórias a respeito dele, firmei o pensamento de que seria um ser exigente, mas acertado em suas colocações. Isto, segundo o meu conceito de então, restringia muito a minha liberdade. Eu, evidentemente, pouco entendia daquilo tudo; ficou-me apenas o receio de encontrá-lo, contudo. Fazia ideias variadas acerca de Carlos Bernardo González Pecotche.

– Poderia ele, também um ser humano, talvez mais preparado, criar uma nova ciência para outro ser humano e afirmar que tal estudo seria o único do mundo? – indagava-me.

Por outro lado, achávamos difícil admitir isso. No entanto, era, como disse, um novato, alheio, portanto, às questões importantes que a Logosofia viria depois a me ensinar.

– Como poderia um homem, por mais preparado que fosse, ensinar-nos como deveriam ser todos os indivíduos de acordo com um ponto de vista determinado? – eu continuava inquieto.

Aceitava o raciocínio de que todas as crenças são altamente negativas, pois levavam-nos a aceitar como verdadeiro aquilo que se pregava. Como consequência, criaram-se no mundo várias sociedades, onde a regra do pensamento comum era o conservadorismo arraigado, com atitudes radicais, fomentando muitas vezes os extremismos e os atos fanáticos, os quais levaram os povos a serem frios e cruéis. Por isso, perguntava-me:

– Se isso fosse verdade, será que não estaríamos transformando a Logosofia numa religião, por acreditarmos nas palavras de um homem só?

Dizer que a imaginação é fruto do trabalho de imagens dentro da mente, e que essas poderiam ter um grande poder destruidor era outro ponto que aceitava como verdadeiro. No entanto, distinguir a faculdade de imaginar da faculdade de pensar era outro aspecto que chamava muito a minha atenção naquela época. González Pecotche nos explicava que nossa ação era o resultado de um pensamento que ingressava em nossa mente. Os pensamentos se tornavam, muitas vezes, extremamente ruins, sob a influência das investidas instintivas, das quais somos inconscientes. Ou como os pensamentos de transformavam sob a influência dos poderes positivos com que todos nós podíamos atuar dentro da nossa vida, realizando coisas de valor elevado. Sabia o quanto o conhecimento superior era fundamental para todos nós progredirmos. Tudo era, em outras palavras, o resultado da aplicação do ensinamento logosófico em nossas vidas.

Quando falaram que González Pecotche viria ao Brasil para ficar alguns dias, a ideia que se formou dentro de mim era de que um ser humano muito energético viria para examinar como nós, seus discípulos, estaríamos indo. Quero dizer, nós tínhamos de estar preparados para que o nosso mestre nos inquirisse e verificasse se estávamos bem.

Tudo errado, a meu ver, segundo meu pensamento de hoje. Por pior que estivesse, meu mestre, ou algo que se denomina um grande professor, teria de vir com a alma aberta e não com a intenção de incriminar-nos, independentemente de nossa condição de discípulo.

– O que perguntar a González Pecotche?  Saberia o que perguntar?  Estava preparado para isso? – eram as minhas inquietudes.

– Não sei.

Não me recordo hoje exatamente o que então aconteceu. Por via das dúvidas, aquela visita ocorreria depois de alguns dias após transferir-me para o Rio de Janeiro, pois, até então, eu vivia em São Paulo.

Eu ingressara na Fundação Logosófica em 21 de maio de 1958. Tinha, portanto, pouco mais de um ano como estudante, sem maiores ideias sobre o criador da Logosofia.

No dia que ele chegou, eu havia trabalhado o dia inteiro na Ishibrás. No entanto, por alguma forte razão, de que só lamentei mais tarde, fiquei preso nas conversas com o meu assistente de chefia, o Tonomura, que insistiu em me segurar. Eu lhe dizendo que teria de sair e ele continuando a conversa. Saí faltando quinze minutos antes das dezenove horas, hora em que González Pecotche deveria chegar à Fundação Logosófica.

Saí correndo e cheguei ao local, próximo ao meu trabalho, cinco minutos antes das dezenove horas. Como ficava no quarto andar, subi de elevador e já ia entrar na sede, quando um estudante, depois de deixar entrar alguns outros, me impediu, olhando o seu relógio no pulso.

– Olha – disse-me – González Pecotche havia solicitado que às dezenove horas impedisse qualquer pessoa de ingressar naquele ambiente. Lamento, mas são já dezenove horas.

– Como? – perguntei.

– Foram as instruções de González Pecotche – disse-me aquele estudante, com radicalismo.

Levei um susto. Não, ele não iria me impedir de assistir ao próprio criador da Logosofia, que chegara da Argentina naquele dia! Havia esperado muito por isso, pensei. No entanto, se fosse uma ordem dele, teria de encontrar uma solução.

Naquele momento, ia passando pela Fundação, em frente ao portão de entrada, o Jurandir da Silveira, que era o reitor da subfilial da Fundação Logosófica de São Paulo, e que, muito solícito, vendo-me impedido de ingressar, disse-me para esperar, pois iria falar com o próprio González Pecotche.

– É lógico que ele conseguiria uma permissão para eu ingressar – pensei.

E esperei ansiosamente para que tudo desse certo. No entanto, depois de alguns momentos, Jurandir voltou dizendo, muito sem jeito, que lamentava, mas que ele realmente havia dado essa ordem.

– Ora, – disse González Pecotche, sorrindo – você não concorda comigo, que se havia dado uma ordem, a mesma terá de ser cumprida? O que você acha?

– É claro, Maestro – respondeu o Jurandir.

– Lamento muitíssimo – disse o Jurandir – em face de tal fato – olhando-me.

Fiquei petrificado. Tive a plena consciência de que González Pecotche estava dando um exemplo de como devem ser os seus estudantes.

– Não se preocupe, Jurandir, eu entendo.

Despedi-me dele e saí de lá.

– Por que será que isso terá me acontecido? – foi em que pensei naquele momento, enquanto descia.

– Por que seria eu o condenado naquela situação? Pensei ainda – Não conseguia entender.

Entendia que González Pecotche não me conhecia, e ele havia dado uma ordem para que cumprissem. Não havia, portanto, do que reclamar dele naquele momento. Contudo, não estava hostilizado com tudo aquilo.

Pensei, então, que poderia subir ao quarto andar, para vê-lo através dos vidros da janela da Reitoria, pois se não o fizesse agora, talvez não o visse mais, pois logo ele retornaria à Argentina. Não sabia sequer se conseguiria vê-lo, pois se ele não fosse à sala da Reitoria isso seria impossível. Mas, subiria, de qualquer modo.

Subi e fiquei esperando algum tempo, até que González Pecotche adentrou na sala da reitoria e pude vê-lo. Era um senhor sério, porém simpático e encantador, alto, forte. Tinha seus sessenta anos e era bastante atraente. Chegou ali, viu a mesa, fez alguns comentários alegres e sentou-se gostosamente. Era assim a pessoa a quem chamávamos de Maestro Raumsol, pensei eu. Sem dúvida, um digno senhor.

Desci, novamente, e fiquei algum tempo por lá, tentando entender aquilo que tinha acontecido. Não conseguia compreender por que havia sido impedido de ingressar. Talvez, fosse o trabalho daquele estudante, que, pouco tempo depois, haveria de deixar a obra logosófica. Com sua atitude radical, ele impediu-me de encontrar com González Pecotche, enquanto outros estudantes o fizeram.

Aguardando mais um pouco, chegou Décio Bracher, que tinha vindo de Juiz de Fora para aquela visita e chegado com algum atraso. Como ele estava lá, foi uma alegria encontrá-lo. Conversando com o mesmo, andamos por aquelas ruas em plena noite carioca, vendo os prédios antigos que eram as grandes atrações para aquele rapaz de Juiz de Fora, apreciador de arquitetura antiga.

Procurei não deixar, depois, que aquela situação influenciasse a minha conduta com relação à obra logosófica. Tinha sido uma questão momentânea. Por minha culpa, assim o entendia, eu possuía ainda pensamentos ruins em minha mente. Teria mudar tudo aquilo. Depois daquilo, com relação a controle de horários, passei a ser severo, para não me atrasar. Com a visita de González Pecotche, passei a ter uma atitude melhor no combate aos pensamentos reacionários e intolerantes. Penso que tudo aquilo me ajudou a ajeitar a minha vida, no sentido de levá-la ao lado superior, ao lado do transcendente.

Depois que González Pecotche foi embora, fiquei encantado com as gravações que o mesmo realizara. Eram palavras duras, mas ditas com muita sabedoria. Quanto às crenças religiosas, as restrições feitas tinham bastante conteúdo, pois ele foi mostrando, de forma cabal, os seus maleficios. Não sei se concordava com tudo aquilo no início, embora estivesse de acordo com os conceitos ensinados. De alguma forma, teríamos de superar, embora precisássemos de tempo. Foi o que aprendi, aos poucos.

Muitas coisas eu aprendi com a visita de González Pecotche. Dizer que aquele fato não tinha me afetado, seria uma inverdade; o fato de não ter sido recebido por González Pecotche, naquela ocasião, influenciou negativamente o meu ânimo. Em parte, por que fui estudar na Faculdade de Direito e isso me impediu de frequentar a obra logosófica como seria desejável. Porém, tudo aquilo foi importante para saber me colocar melhor diante de minhas condições de vida de então.

Mais tarde, compreendi que González Pecotche havia obtido a maior parte do seu conhecimento de si próprio, através de gerações vividas pelo mesmo, conforme nos ensinava em suas lições sobre o espírito humano e sobre a herança de si mesmo. Pude compreender, igualmente, que o objetivo principal da minha vida seria o de chegar cada vez mais próximo ao Criador, porém sempre através da conquista real da nossa consciência.

No ano seguinte, isto é, em 1960, o I Congresso Internacional de Logosofia foi realizado em Montevidéu, para o qual enviei um longo trabalho. Como sempre, González Pecotche lá esteve e deu aquela brilhante conferência, dedicando um tempo especial para recordar-se daqueles que não puderam participar por qualquer razão daquele importante evento.

Mais tarde, em 4 de abril de 1963, ele faleceu, por motivos de doença. Cheguei à Fundação Logosófica na noite seguinte e senti que alguma coisa não estava bem. Fiquei calado, pois não sabia de nada. Aguardei os acontecimentos. Logo nos reunimos e, então, foi dito que González Pecotche havia falecido no dia anterior.

Sentimos todos aquele falecimento, pois, afinal de contas, ele havia sido um ser humano com condições excepcionais para toda a humanidade. Todos falaram e eu também pude falar um pouco sobre tudo aquilo que a Logosofia representava para mim.

Procurei, contudo, nunca acreditar em González Pecotche. Foram os seus ensinamentos expressos nesse sentido. Precisávamos conhecê-los. Porém, sobre os seus ensinamentos, sobre suas experiências, poderia falar, na medida em que pudesse comprová-los.

A ideia que todos nós formávamos sobre González Pecotche tinha a sua validade, mas, para mim, a verdade era aquilo que poderíamos compreender na sua plenitude. Foi o que disse, então, sentidamente.

Mais tarde, pude compreender que González Pecotche, ou melhor, Raumsol, foi o grande mestre, que veio mostrar que enquanto não estudássemos o sistema mental, sensível e instintivo, as nossas importantes decisões seriam as comuns, representadas por atos como as bombas atômicas, a matança de milhões de judeus ou tantas outras barbaridades, que, lamentavelmente, ocorrem, com tanta frequência no mundo de hoje. Isso significava que as nossas decisões são voltadas para o material, sempre sob a influência das manifestações instintivas, e nunca elevadas, superiores, espirituais, como deveriam ser as atuações dos seres humanos.

Algo não seria verdade porque ele disse, mas na medida em que eu mesmo pudesse comprová-lo, não uma vez, mas várias vezes. Nisto tudo, havia uma grande verdade.

24.

 

Foi no Rio de Janeiro que tentei ingressar na faculdade. Porém, sem frequentar um curso preparatório, seria quase impossível ser admitido num curso universitário.

Em São Paulo, em fins de 1957, tentei ingressar, sem sucesso, numa universidade, com o fito de estudar Direito. Em fins de 1958, fui a Santos, para tentar ingressar num curso sobre jornalismo. Contudo, nem cheguei a saber se havia conseguido.

Depois de chegar ao Rio de Janeiro, fui prestar exame vestibular numa faculdade de Ciências Sociais, no bairro de Campo Grande. Passei. No entanto, nada fiz para matricular-me, pois a escola ficava muito longe de minha casa, em Ipanema. Isso foi em 1960.

Fui ingressar efetivamente numa Faculdade de Direito, no Rio de Janeiro, no início de 1962. Assim, em 1961, fui cursar o pré-vestibular da Hélio Alonso, que seria o melhor existente na cidade. Quem se inscrevia nesse curso tinha de estar preparado para estudar muitíssimo, sem o que não conseguiria entrar em uma Faculdade de Direito.

Realizar o curso de pré-vestibular Hélio Alonso não foi fácil, como esperava. Era um curso de verdade. A disciplina principal era o de latim, matéria essencial para tais exames. Tivemos de estudá-lo a fundo, como provavelmente estudam os padres. Aquele Hélio Alonso certamente poderia ser considerado um super professor. Ele queria que aprendêssemos não apenas para passar de ano, mas por considerar aquela matéria da maior importância para a nossa formação como seres humanos.

Aprendemos, portanto, a língua latina em todos os sentidos, isto é, nas traduções para a língua portuguesa, ou mesmo dando-se texto em português para vertê-lo em latim, até mesmo as conjugações perifrásticas em voz passiva. Enfim, tudo sobre a língua latina – os verbos, em todas as suas múltiplas características – aprendemos e tornamo-nos autênticos doutores da matéria. Passaríamos, mesmo que não quiséssemos, pois realmente entendíamos da questão – imaginávamos.

Recordo-me agora, que fomos, um pouco antes de se iniciarem os exames do vestibular, a um educandário pastoral na cidade de Valença, onde estudamos a valer todas as matérias. O prof. Hélio Alonso tinha um método especial de fazer-nos reviver todos aqueles ensinamentos. E repassava tudo, de uma forma ou de outra, até verificar que a maioria de nós já dominava o assunto.

Alguns não estavam prontos ainda, mas a grande maioria – mais de 200 alunos – ansiava para prestar qualquer tipo de exame vestibular. Na verdade, foi um acontecimento salutar, principalmente para os rapazes e moças, em sua maioria solteira, e que lá estavam profundamente empenhados em estudar a língua latina e as outras matérias.

Estávamos prontos para o vestibular. Na Faculdade Nacional de Direito, passei em vigésimo lugar e obtive boa classificação na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro.

Ingressei na Faculdade Nacional de Direito, que fazia parte da Universidade do Brasil, onde me senti em casa, pois estava, teoricamente, na mais importante instituição de Direito do Brasil. Era um prédio formoso, cujas tradições equiparavam a escola às melhores do país.

Havia três turmas: uma pela manhã, outra à tarde e, por fim, mais uma no turno da noite. Cursei o período da tarde, que começava às 16 horas. A turma tinha mais de duzentos alunos. Depois, passei para a turma da noite, que iniciava às 19 horas.

As aulas sempre foram interessantes, pois, com tantos alunos, os professores se prontificavam em ministrá-las da melhor forma possível. Naquele início de ano, em 1962, tudo aquilo me encantou. As salas, naquela faculdade, eram grandes e relativamente confortáveis. Em algumas delas, cabíamos todos nós e ainda sobravam lugares, tão grandes eram. Ficavam cheias as aulas de Wandick Londres da Nóbrega, que lecionava Direito Romano. Às vezes, ele faltava, quando então quem dava aulas, de forma magistral, era o seu assistente que, antes de ministrá-las, ia ao quadro negro, onde anotava tudo aquilo que seria explicado a seguir. Respeitávamos Wandick Londres da Nóbrega, porém, admirávamos o seu professor assistente pela classe com que ministrava as suas aulas.

Por sua tradição como escola de alto padrão nacional, enviava ao Governo Federal seus maiores catedráticos de então, para ocuparem importantes cargos políticos. Um desses professores, que nunca cheguei a ver pessoalmente, era o Hermes Lima, que estava chefiando a Casa Civil na Presidência da República. Outro importante nome, que chefiava o Ministério das Relações Exteriores, era Santiago Dantas, que sempre brilhou em todas as partes onde aparecia.

Com alguma dificuldade, mas com muita valentia, conseguimos vencer o primeiro ano. Estudando os livros e não havendo aquele rigor nas correções, tudo foi relativamente fácil. Foi lá, também, que descobrimos alguns dos professores, que se tornaram famosos, pelo menos para nós, como era o caso do prof. Oscar Stevenson, que nos dava Direito Penal, ou Amilcar de Araújo Falcão, que dava Direito Financeiro e Tributário. De alguma forma, a vida naquela faculdade não era um padrão de organização. Tinha-se de tudo lá, embora o que menos os alunos fizessem era estudar para se tornarem bons advogados. Havia um restaurante, onde serviam jantares a preços irrisórios. A faculdade possuía, além disso, salões para todos os tipos de atividades: salões de luxo, para as atividades mais solenes, outros, de menos luxo, para diferentes tipos de atividade. Havia, também, pelo que me lembro, uma biblioteca, para os estudos locais e lugares para as atividades acadêmicas. Eu não estava muito interessado na vida acadêmica, de modo que não participava daquelas confusões políticas que os alunos arrumavam, com alguma frequência, embora as observasse.

Algo que senti profundamente foi a morte do presidente Kennedy, dos Estados Unidos. Pressenti, quando falaram que ele havia sido assassinado, que alguma coisa de muito grave poderia acontecer. Nunca imaginava que aquele tipo de coisa poderia ocorrer com o presidente norte-americano. Senti um frio em minha espinha. Todos nós ficamos impressionados.

Fiquei sabendo posteriormente que ele seria substituído pelo vice-presidente, e que nada daquilo que temia viria a acontecer nos Estados Unidos. As coisas, não obstante a gravidade da situação, voltaram ao normal.

Lembro-me ainda de alguns fatos marcantes, no início de 1964, período que o país atravessava dificuldades, com as lutas políticas. Um dia, na Faculdade de Direito, vi que realizavam os denominados “comícios”. Pude ver, então, que aqueles que organizavam aqueles comícios não eram os nossos estudantes. Apareceram outros, estranhos, com outras roupas, que faziam tudo aquilo dar certo. Era estranhíssimo tudo aquilo. Custei a entender o que estava acontecendo. Vi a polícia ou mesmo o exército se organizarem para defender a assim chamada “ordem pública”.

Eu, por minhas razões de então, naquela escola, era meio da direita, meio da esquerda, melhor dizendo, era do centro, que era o mais adequado. Provavelmente seria mais do lado da direita, mas não daquela cheia de problemas, como a da época. Ser do lado da esquerda radical seria impossível, dado o extremismo das posições defendidas. Alguma coisa fazia tanto o lado da direita, quanto o da esquerda, a cheirarem mal.

Certa vez, vi o exército entrando na Faculdade, no período em que a revolução de 1964 se instalava. Todos nós estávamos lá fora, na rua, esperando o desenrolar dos fatos. Lembrei-me, então, de que esquecera algum documento importante no quarto andar, de forma que fui falar com o comandante. Ele me ouviu, chamou um dos soldados, instruiu-o para que me acompanhasse à minha sala, para apanhar o que propunha.

Assim, meio sem graça, fui à minha sala, no quarto andar, com um soldado com baioneta calada, às minhas costas, pronto a me atacar se eu realizasse qualquer coisa diferente do previsto. Tudo isso, falando hoje, pode parecer engraçado, mas não foi nada agradável, pelo risco que representava. Tudo naquela época era sério e importante. Nunca mais brinquei com aqueles soldados, depois daquilo.

Por que tudo aquilo acontecia? Não sei até que ponto os homens que mandavam no país estiveram por trás de tudo aquilo. Na verdade, pensava que quem determinava os riscos eram os homens da hierarquia média ou baixa. Contudo, homens da hierarquia superior podiam tomar consciência do que estava acontecendo. Quantas vezes, tantos seres foram torturados e muitos morreram, sem que quase ninguém da área superior ficasse sabendo. O pessoal da linha superior podia até saber de tudo aquilo, mas, na maioria das vezes, nem tomava conhecimento. Tudo aquilo era, a meu ver, extremamente lamentável.

Foi também naquela Faculdade que experimentei uma vez, num determinado ano, a oportunidade de ingressar no serviço público, como agente fiscal do imposto de consumo. Era difícil a matéria e, por isso, tínhamos de frequentar um curso especial, em outro lugar, para realizar os exames marcados.

Era bom ser agente fiscal do imposto de consumo? Sim, era um dos melhores concursos que existia então. Recebia, além do salário normal, que era grande, um percentual das multas cobradas nas vistorias que fazia nas empresas. Quero dizer, ganhava-se bem naquela função, independentemente de realizar ofícios difíceis.

No entanto, para os que ingressavam naquela carreira, a vida não era fácil, pois tais agentes-fiscais possuíam três categorias funcionais para fins de alocação no país, isto é, as das classes A, B e C. Aqueles recém-ingressados começavam nos estados mais distantes, como Amazonas, Mato Grosso, Espírito Santo e assim por diante. Até chegar aos grandes centros, levavam muitos anos.

Atualmente, o governo brasileiro reduziu a maioria dos benefícios que antes usufruía aquela categoria profissional. Hoje, o agente fiscal do imposto sobre produtos industrializados ainda é uma atividade importante, mas perdeu um pouco do status.

Fiquei cinco anos frequentando aquela Faculdade de Direito. No início, tivemos muitos colegas. Depois, a cada ano que passava, o número de alunos diminuía, por variadas razões. Foram, na verdade, anos importantes para a minha formação. Tive professores notáveis como Amilcar de Araújo Falcão, o João Maurício do Araújo Pinho e tantos outros do melhor nível.

No mais, no final de 1966, nos formamos em Direito, com cerimônia realizada no Teatro Municipal, com muitas festas e muitas solenidades. Dizer, no entanto, que aqueles anos da faculdade não foram úteis, não é verdade, pois, no meu caso, posso ter aprendido muita coisa importante que se passou conosco e com os outros. Sobretudo, como já dizia o meu pai, pude aprender a manejar os livros e a ter condições de advogar. Foram anos importantes, por todos esses motivos.

25.

 

A revolução militar, ocorrida no Brasil em dia 31 de março de 1964, nos deixou uma longa e penosa herança, não só pelas turbulências de então, mas pelos desdobramentos que geraram nos anos futuros. Muitos imaginavam que os militares pudessem realizar um bom governo. Na prática, no entanto, as coisas não saíram como previsto.

Não sei, em verdade, quando aquela revolução começou. Possivelmente por muito tempo antes aquilo já vinha sendo elaborado, muitas vezes de forma inconsciente. Refiro-me às lutas, que sempre existiram, primeiro contra o comunismo ou contra qualquer forma de ideologia do pensamento. Criou-se um terror, por exemplo, contra o comunismo, sem que ninguém, depois, pudesse entender mesmo o porquê. Afinal, como depois descobrimos, aqueles comunistas eram pessoas cheias de bons ideais, não empenhadas, necessariamente, em revolução internas. Elas queriam um Brasil melhor.

Além disso, havia a luta contra os americanos, representantes da área da direita. A política que eles adotaram para com o Brasil teria sido bastante ruim, segundo o entendimento de muitos seres.

– Eram patrões. – diziam – De forma que enriqueciam com o dinheiro que traziam, sendo os brasileiros os seus empregados, prodigamente submissos.

Afora isso, segundo se dizia, os americanos não queriam que as indústrias e outras áreas do conhecimento avançado fossem exploradas pelos brasileiros, o que visava transformar ainda mais o Brasil num país de terceira categoria.

Já com relação aos japoneses, por exemplo, isso não acontecia, porque muitos daqueles imigrantes que para cá vieram sofreram muito, durante anos, juntamente com os brasileiros. Eles subiram na vida em sua maioria, mas a custa de muito trabalho, razão por que eram respeitados.

Havia, além disso, o relacionamento com os portugueses, os italianos e os povos de outros países. Tudo, no final das contas, era uma luta para conseguir viver melhor. Para os brasileiros essa era sua maior questão. De qualquer forma, criaram-se ideologia, maneiras de ver as coisas, causas políticas, uma série infindável de coisas, que tivemos de enfrentar através dos tempos.

Em 1961, quando Jânio Quadros foi guindado ao Governo Federal, os problemas eram graves. Tão graves que, em final de agosto daquele ano, ele renunciou. Muitas razões foram invocadas para sua renúncia. Provavelmente, não era efetivamente sua intenção renunciar. Foi, sem dúvida, um golpe para angariar mais poder. Porém, foi um golpe que não deu certo. No entanto, a verdade era que, naquela situação, ele não poderia realizar um governo autêntico, como gostaria.

As lutas do povo por condições melhores eram antigas. E não só antigas, mas sérias e que não raro acabavam em conflitos gerando feridos ou, até mesmo, mortos. A legislação implantada desde o início da década de 1940, por obra de Getúlio Vargas, de certa forma, foi um passo concreto para melhorar as condições a todos os trabalhadores.

As greves contínuas que o povo realizava por qualquer motivo, impediam-nos de realizar coisas sérias por longo tempo. Era o que acontecia dentro da Ishibrás, onde eram deflagradas quase que diariamente, por qualquer razão. Não era possível, daquela forma, fazer as coisas avançarem no Brasil. No início de 1964 a situação no país era dramática, pois o povo se mostrava rebelde para tudo. Nada se conseguia então, em parte por culpa do governo, que apoiava o povo em suas manifestações. Nunca ninguém havia entendido muito bem as coisas que aconteciam.

Num daqueles dias que precederam a revolução, vi, no Centro do Rio de Janeiro, uma grande massa de seres humanos, não só de homens, mas principalmente de donas de casa, que caminhavam silenciosamente como se estivessem indo para a morte. Tão silenciosamente, que me assustei. Vendo aquela multidão caminhando sem nada dizer, em desfile silencioso, senti, de repente, que alguma coisa séria iria acontecer. Não sabia ainda o que, mas algo sucederia, evidentemente.

Numa noite, em 31 de março de 1964, de repente, todos sentiram que algo de extremamente grave havia acontecido. Era a revolução de 1964 que tinha implodido. Não se matou gente ou houve carnificina, dizia-se. No entanto, todos sabiam que algo de dramático tinha então ocorrido.

Corriam boatos de que havia várias tropas de soldados que estariam contrariados com tudo aquilo; que existia um general no sul do país e outro, próximo de Belo Horizonte, movimentando tropas. Enfim, depois de tudo, surgiram novos instrumentos legais, sobre os quais poucos entendiam o que poderiam significar. Suspenderam-se os poderes da Constituição e todos os direitos dos seres humanos. Estabeleceram-se novas regras para todos viverem, através de tantos novos atos. Tudo teria de ser feito de outra forma, para que as coisas andassem conforme os militares entendiam.

Depois, suspenderam-se os direitos civis de muitas pessoas por longo tempo, armando-se uma confusão tão grande que ninguém conseguia entender sobre o que estaria sucedendo. Como sempre, havia os que aprovavam, outros que reprovavam. Muitas das leis básicas foram mudadas. Criou-se, assim, o FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, para resolver o problema do pagamento de indenização, que antes impedia os patrões de manterem livremente seus empregados. Com o tempo, criou-se o sistema financeiro de habitação; inventou-se a correção monetária e outras fórmulas para corrigir a inflação, além de uma série infindável de dispositivos legais especiais para regulamentar todas as atividades importantes do país. Teoricamente tudo foi feito para acelerar o progresso do Brasil. Todas as suas mazelas deveriam ser extirpadas. Criaram-se fórmulas novas para tentar reorientar os rumos do país.

Depois da revolução então implantada, muito se realizou pelo progresso do Brasil. No primeiro e no segundo ano, o país sofreu uma recessão terrível, com vistas a corrigir as distorções que então existiram. No entanto, hoje, se perguntarem se tudo isso teria mesmo modificado o Brasil, muitas dúvidas no particular poderão ser apresentadas.

Todos os grandes homens, que então mandavam no Brasil, sobretudo os políticos, fugiram ou criaram condições novas para viverem dentro do país. Homens importantes, como Juscelino Kubitscheck de Oliveira, Carlos Lacerda, Jânio Quadros, João Goulart, Leonel Brizola e outros nomes de então, foram cassados.

Muitas outras coisas aconteceram depois disso, em parte em razão daquela revolução. Contudo, fico pensando até que ponto esse movimento teria sido rigorosamente necessário para salvar um país grande como o Brasil. Por outro lado, também é pacífico que o período de uma revolução não se deve prolongar muito, pois o governo que estiver no poder tentará, mesmo sem querer, distorcer as coisas boas que existiram, em razão das fraquezas dos seres humanos.

Não sei o que dizer daquele período. Não obstante as eventuais dificuldades que aquela revolução trouxe, sem dúvida, algumas coisas ela proporcionou. Acalentou-nos uma nova consciência do futuro do povo brasileiro, eliminando uma série de entraves do passado, para garantir nossos interesses mais legítimos. Contudo, promoveu tantos problemas para tantos seres, e distorceu tantos aspectos tão essenciais para o crescimento a longo prazo de nosso país.

26.  

 

Revendo as epopeias de então, muitas outras coisas aconteceram. Juscelino Kubitscheck de Oliveira tinha realizado um governo excelente, criando muitas esperanças quanto ao futuro do Brasil. Subiu Jânio Quadros, com muitas alegrias a todos nós, ao tentar encaminhar este país, ainda cheio de problemas, para soluções melhores e superiores. Renunciou logo depois, sem que pudéssemos entender o que teria acontecido.

Havia sido criado o Parlamentarismo, quando assumiu o presidente João Goulart, voltou o Presidencialismo. João Goulart acabou derrubado pela revolução militar de 1964. Surgiu, então, um novo Brasil, com resultados ansiosamente esperados.

– Conseguiremos consertar coisas erradas que existiam em grande quantidade?

Quanto a mim, técnico em laticínios e também em contabilidade, que em 1959 veio trabalhar na Ishibrás, estava confiante no poder da multinacional, na área naval, como um trabalho importante do Governo Federal. Estava certo de que o Brasil seria um grande país, cheio de futuro.

Trabalhei intensamente pela Ishibrás para torná-la um grande estaleiro naval, provavelmente o maior do país. Alguns anos mais tarde, eu fui trabalhar no setor jurídico da empresa, já como advogado, uma vez que havia me formado em fins de 1966.

Falando honestamente, havia me equivocado em minhas previsões, em 1959, quando fui trabalhar na Ishibrás. A empresa criara, de forma despretensiosa, um “estigma” de grande de organização, que deveria vir a ser venerado por todos os funcionários. No meu caso, tornei-me um dependente daquela instituição.

Descobri essa limitação, quando, anos depois, de 1969 a 1970, ao tentar deixar a Ishibrás, vi o quanto aquilo se tornada dificultoso. “Não era possível que estivesse tão dependente dela”, dizia a mim mesmo. No entanto, era a mais pura verdade: não podia deixá-la. Não podia deixar de contar com ela para a minha sobrevivência.

– Será que conseguiria viver sem contar com os rendimentos da Ishibrás? – perguntava a mim mesmo, sem encontrar resposta satisfatória.

O Zeniiti ria de mim, ao ver meu dilema. Ele, de certa forma, tinha conseguido deixar a empresa de aviação onde trabalhara por nove anos e meio, antes de alcançar o período de estabilidade, o que a organização não via com bons olhos. E ele não sofreu muito com esse dilema. Porém, no meu caso, ele não conseguia entender.

Eu sempre dizia que iria fazer aquilo, e que logo estaria livre da Ishibrás, mas isso nunca acontecia.

– Olha, se você realmente passar mal, quando se tornar independente, poderei arranjar outras coisas para você realizar. Não se preocupe muito com a sua sobrevivência econômica – era o que meu irmão me dizia, para que eu me liberasse da Ishibrás definitivamente.

Naqueles anos, durante a década de sessenta, cheguei até a pensar que tinha realizado algo de negativo, ao vir ao Rio de Janeiro e ingressar na Ishibrás. Nunca deveria ter feito isso, pois havia tirado toda a minha capacidade para realizar coisas importantes, ao meu modo.

Agora, estava fora de meu alcance tentar mudar. E tudo aquilo me entristecia muito. Mas, por outro lado, trabalhar na Ishibrás desde o seu início, em 1959, não deixou de ser uma oportunidade boa para a minha vida. Como aprendiz de uma grande empresa, pude ver como as pessoas podiam trabalhar de forma organizada, atendendo a mil e um objetivos diferentes: desde as obras de construção por empreiteiros, os desenhos, o risco, o corte, a solda de pequenas e de grandes peças; os equipamentos diversos para todos os fins; a inspeção, de materiais ou de máquinas, até a manutenção, sem falar na parte de administração, de política de pessoal, de compras, de vendas, a importação e exportação, o atendimento médico e o setor jurídico; conheci, então, todos os processos indispensáveis para um grande estaleiro funcionar.

Como tudo aquilo era algo de admirável para mim, como ser humano, nas condições comuns! Pude ver, então, que as coisas não podiam ser decididas, a não ser depois de analisadas sob todos os ângulos possíveis. De modo geral, dirigir um grande estaleiro como aquele possibilitava a qualquer um ter uma ideia sobre a gestão de uma grande organização, no seu todo.

Problemas de todas as ordens surgiam, a torto e a direito, nos mais variados lugares. Uma vez seria a questão do pessoal, com suas greves infindas e, por vezes, sem maiores razões, para o que tínhamos de contatar os líderes trabalhistas e atender, na medida do possível, as suas exigências, sem que isso se refletisse negativamente na situação da empresa.

Além disso, muitos dos japoneses que tinham vindo para trabalhar no Brasil, a pedido da Ishikawajima, precisavam voltar, porque problemas pessoais ainda ficavam pendentes, como o de casamento, de questões familiares, de estudo ou de ordem econômico-financeira. Porém, a Ishibrás não podia liberá-los, por suas fortes razões de trabalho de então.

Uma vez, recordo-me, havia um engenheiro, super capacitado para realizar trabalhos importantes naquele estaleiro. Após um ou dois anos aqui no Brasil, insistiu que tinha de voltar ao Japão, provisoriamente, porque deixara a noiva dele naquele país. No entanto, por força das necessidades vitais da época, e compreendidas por ela, a Ishibrás pediu-lhe para esperar um pouco mais. E, depois, um pouco mais. Até que, assim, os meses se juntaram e o tempo se prolongou tanto que aquela noiva não mais o esperou. Algum tempo depois, ele arranjou uma moça, aqui no Brasil, como resultado de sua longa estada. Moça problemática que causou diversos problemas graves, sempre tendo a Ishibrás de intervir para resolvê-los. Foi uma situação ruim, dentre muitas, que então se sucederam, provavelmente por culpa da gestão da empresa.

Casos assim, não foram um ou dois, mas vários, e a Ishibrás sempre teve de solucioná-los da melhor maneira possível. Lembro-me de uma vez em que a Ishibrás teve de apanhar um dos seus engenheiros e enviá-lo para o Japão, urgentemente, num avião, por força dos problemas por ele criados, ao necessitar ficar no Brasil por mais tempo do que seria o recomendável.

Giroku Mitsui era o nosso diretor vice-presidente executivo e, na verdade, o nosso homem mais forte naquela época. Realmente, ele assinava todos os documentos, juntamente com o almirante Ayres Pinto da Fonseca Costa, um grande e ilustre senhor, então considerado o diretor presidente. Para todos os fins, quem aparecia era o diretor presidente, um digno membro da Marinha Brasileira, para cujo papel havia sido eleito festivamente.

Aquele brilhante engenheiro japonês, formado na Universidade de Tóquio, a mais importante do Japão, era uma pessoa alta, com um belo rosto, com uma expressão complexa, mas tinha o seu jeito peculiar de gerir uma grande organização, quer no Brasil quer em qualquer lugar do mundo. Não era magro ou cheio de dobraduras, como seria normal se esperar dos japoneses, sorria um pouco, não falava muito, mas tudo aquilo que dizia era seriamente avaliado aqui no Brasil. Era, sem dúvida, efetivamente o nosso vice-presidente executivo.

Vestindo um uniforme de cor diferente, mas clara, ele ia quase todos os dias ao estaleiro e, silenciosamente, visitava todas as obras e observava as coisas que eram feitas. Depois, ia até a sala, e de lá chamava aqueles que eram responsáveis pelos diversos setores e lhes pedia explicações. Nunca o vi exaltar-se, qualquer que fosse o problema apresentado.

Ele ficou na Ishibrás, como diretor vice-presidente executivo, por vários anos. Posteriormente, depois que voltou ao Japão, foi conduzido para ser um dos mais importantes diretores da Ishikawajima daquele país. Lembro-me dele, pois, mais tarde, em 1971, lá estive para analisar um problema que ele teve no Brasil e precisava de uma palavra nossa, para acalmá-lo.

Orlando Barbosa foi outra grande figura, dentro da diretoria da Ishibrás. No início, era um simples diretor. Não queria aparecer, pois dizia que sempre que um diretor precisava aparecer era porque alguma coisa não estava bem.

Foi ele quem realmente tornou possível a concretização da Ishibrás no Brasil como grande organização naval. Quando vim ao Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1959, encontrei um grande livro, com textos de Orlando Barbosa, projetando a Ishibrás do futuro – um grande trabalho de planificação, que, partindo da história do Brasil e da indústria naval, enaltecia a importância daquela empresa no território brasileiro.

Ele não estava interessado em enriquecer por meio da Ishibrás. Nem me lembro porque acabou se incorporando à empresa, pois antes era um dos sócios de Tunkiss, um negociante americano, que conhecia a Ishikawajima do Japão, e que de lá trouxe vários navios para vender no Brasil. Pessoalmente, ficava com pena dele, pois, às sete horas da manhã, Orlando Barbosa já estava no escritório, dirigindo as reuniões mais importantes, exatamente para que todos chegassem sem atraso naquele horário.

Era uma pessoa muito inteligente, dono de um carisma insofismável. Homem sério, mas que sabia rir nas horas aprazíveis, e que sabia, como ninguém, interferir para fazer o que fosse indispensável. Lembro-me da questão dos honorários dos diretores. Nunca seus totais saiam nas atas das reuniões da diretoria ou das assembleias gerais, embora sempre aumentasse os honorários que existiam. Ninguém percebia, a não ser que fizesse um longo inventário.

Ele foi diretor presidente, por vários anos, da Ishibrás. Quer dizer, não podia mais ficar escondido. Muitas coisas lhe aconteceram depois que começou a trabalhar por lá. No início da década de sessenta, sua esposa ficou bastante doente. E nunca mais foi a mulher de antes. Ele tinha um filho, Jorge Orlando Barbosa, brilhante como o pai, engenheiro eletricista da Light S.A., da qual veio a ser diretor técnico.

Orlando Barbosa morreu com mais de setenta anos, de câncer, depois de ter lutado muito, para tornar a Ishibrás uma grande realidade. Recordo-me de que uma vez, no Estaleiro da Emaq, seu nome, “Orlando Barbosa”, havia sido escolhido para batizar um dos navios grandes lá construídos. Ele lá esteve e agradeceu, sentidamente, aquela homenagem tão expressiva.

Outras homenagens lhe foram feitas depois, inúmeras vezes, pela própria Ishibrás, após seu falecimento. Ele foi, certamente, uma das figuras mais importantes daquela empresa.

Taiji Ubukata, Giroku Fujii e Orlando Barbosa formavam o trio dos grandes nomes que a Ishibrás possuía. Talvez o Ubukata tivesse sido o mais brilhante de eles. Não só era inteligente, como tinha um carisma especial para com todos os seus funcionários. Tinha um dom especial para fazer todos trabalharem e muito para a empresa. Foi um dos grandes homens que conheci.

Logo depois de ingressar na Ishibrás, em 1959, ele me chamou um dia e disse que queria procurar um apartamento para alugar. Eu não sabia nem que tipo de apartamento procurar. No entanto, ele contatava os corretores e depois ia ver os imóveis. E lá ia eu junto, para servir de intermediário, pois sua fala de então da língua portuguesa era fraca. De qualquer forma, ele acabou alugando num lugar que, para mim, não parecia ser o melhor, e cujo dono queria adotar uma fórmula de reajuste que eu não recomendava.

Muitas outras pessoas foram importantes na Ishibrás daquele tempo. Por exemplo, o Higuchi, um engenheiro, pelo carisma que possuía para dirigir sua área. Ele possuía o dom de fazer tudo andar, como desejava, principalmente na área de produtos industriais, aumentando as vendas de forma assustadora. Sempre que a empresa ficava mal financeiramente, o buscavam, pois, além de ser um técnico de alto nível, tinha o dom de transmitir aos outros a ideia de que os seus produtos eram os melhores que existiam no Brasil. Posteriormente, veio a ser diretor da Ishibrás e de outras de suas empresas. Mais tarde, veio a ser presidente da Verolme – Estaleiros Reunidos do Brasil S.A.

Sobre as outras pessoas, poderia dizer mais coisas. Por exemplo, sobre o Oguri, vice-presidente da Ishibrás. Quando deixou a empresa, foi ser presidente da Emaq S.A. e, posteriormente, da Verolme. Era, igualmente, um homem com uma inteligência brilhante.

Depois que me formei em Direito, tive de enfrentar no Tribunal Marítimo um caso de retorno imprevisto de um navio, que havia sido reparado na Ishibrás. Como o Oguri era o chefe do setor de projetos sobre equipamentos fui procurá-lo e pedir explicações lógicas para poder defender a empresa. Ele olhou para a planta, estudou calmamente e entendeu que, na questão, existia uma saída, eis que existia ali uma saída paralela.

– Como? Poderia me explicar, por que não estou entendendo bem? – disse-lhe, ao que ele me respondeu:

– Olha aqui na planta. Tudo parece complicado, pois existem muitos tubos de todas as formas, mas, acompanhe o meu dedo. Verifica que isto passou por aqui, fez aquela curva, por trás destes tubos e, que, mais ali, existe uma saída, exatamente para resolver o problema que você está apresentando.

– Quer dizer, que a tripulação poderia ter resolvido o problema no mar, sem ter voltado com o navio até o estaleiro? – perguntei, então, para entender a questão. – Exatamente, não seria necessário isso, pois eles tinham tudo para resolver a questão ali mesmo, em alto mar. Apresentei a tese, demonstrada pelo Oguri e ganhei aquela causa na década de sessenta.

27.

 

Em março de 1966, fui até Trinidad, ao norte do continente sul-americano. Tínhamos construído na Ishibrás, um dique flutuante de grande porte para os ingleses e que se destinava àquela ilha. Mr. J.H. Thompson, o escocês que acompanhou a construção aqui no Brasil, lá estava, e era nossa incumbência levar tal dique flutuante para fazê-lo funcionar, atendendo às condições contratuais.

Construí-lo na Ishibrás, na verdade, tinha sido um grande desafio durante quase vinte meses. Havíamos aceitado a incumbência de construí-lo em razão das dificuldades que estariam começando então para a Ishibrás, em aceitar mais navios para serem construídos no Brasil. Como era sabido, o país não tinha muito dinheiro para investir em obras de grande vulto. Aquele tipo de trabalho representou uma alternativa para atender às necessidades do estaleiro.

– Mais tarde, o dinheiro voltaria e então retornaríamos à construção de navios de grande potência.

Entretanto, surgiu um pergunta:

– O que seria um dique flutuante? Todos sabiam?

– Evidentemente, não – era a resposta da maioria das pessoas.

A função de um dique flutuante, um equipamento gigante, que trabalhava dentro do mar, era a de levantar navios de determinado porte para proceder a limpeza e pintura do casco, ou realizar eventuais reparos convenientes. É um dique que, abertas suas válvulas, enche-se com a água do mar e afunda bastante, permitindo, assim, a colocação do navio que se quer fazer flutuar. Depois de devidamente amarrado, ligam-se os motores do dique, começando a retirar a água, que está em suas caixas, e tanto o dique flutuante quanto o navio colocado em seu interior levantam. Dessa forma, o dique flutuante torna-se um equipamento de maior valor para tais reparos ou pinturas de embarcações grandes.

Hoje em dia, utilizam-se diques secos, isto é, feitos na terra, com uma pequena porta para o ingresso das embarcações, para a realização de reparos navais. Quero dizer, abrem-se as válvulas da porta de ingresso, para permitir que a água do mar penetre para o interior, até que, em determinado ponto, tal estrutura de ingresso torna-se suspensa, podendo ser retirada para o ingresso das embarcações. Depois que a embarcação ingressa e é ajustada, ligam-se os motores conjugados à estrutura de ingresso ali recolocada e toda a água que entrou é retirada, para que os eventuais reparos ou pinturas possam vir a ser feitos.

Até ver funcionando um dique flutuante, não tinha ideia do quanto era útil para suspender os barcos gigantes e para fazê-los flutuar. Não entendo do assunto, por não ser técnico, porém, pareceu-me que o sistema do dique flutuante era mais barato para as operações do dia a dia do que com a utilização de dique seco.

A ideia de construir um dique flutuante não era coisa nova para os japoneses da Ishikawajima do Japão, pois experiências nesse campo eles já tinham. No entanto, como neste caso, muitos dos equipamentos que seriam utilizados viriam da Inglaterra, o que tornava tudo mais difícil. Além disso, o dique flutuante que estávamos construindo poderia apresentar uma margem de curvatura, que teria de ser aprovada pelos especialistas. Aquela margem era uma questão difícil, que queríamos evitar, segundo os técnicos que fabricaram aquele dique flutuante.

Não obstante ter sido construído dentro das regras corretas, o dique flutuante deveria levantar uma embarcação gigante, em determinado tempo, colocando todos os motores em funcionamento. E isso era outro aspecto que nos preocupava. Depois que foram realizadas, e atendidas tais exigências, tudo foi aprovado sem maiores problemas.

Conviver com o Mr. Thompson dentro do estaleiro, e mesmo fora dele, foi um trabalho dos mais agradáveis e importantes que tive a oportunidade de viver naqueles quase dois anos. Eu deveria dominar um pouco a língua inglesa, no qual não era dos melhores. Era um escocês de belíssima formação, um ser humano de alta categoria, em todos os sentidos. Conheci não só a ele, mas também a sua dedicadíssima esposa, que passou um ano e meio no Rio de Janeiro, em Copacabana, onde residiam em um apartamento.

Depois de pronto o dique flutuante, chegaram ao Rio de Janeiro dois rebocadores de grande potência, vindos da Europa: um para puxar o dique pela frente e o outro pela lateral. Iriam levá-lo até Trinidad. Partiram, depois de realizarem as amarrações adequadas. Tivemos de ir também até Trinidad, para atender às exigências restantes, pessoalmente.

Para mim, era uma aventura emocionante. Era a primeira vez que viajava ao exterior e, além disso, lá teria de resolver todos os problemas pendentes. Mas não sabia se daria conta das questões em suspenso. Foi assim que fui, de avião, a Trinidad.

Inicialmente, tive de ir até Caracas, na Venezuela, para lá aguardar um avião que me levaria a Trinidad. A Venezuela, que pude ver em um ou dois dias, era uma terra estranha para mim. É claro que não posso formar a ideia de um povo, com o que pude ver num dia ou dois. No entanto, existiam, naquela importante cidade de Caracas, muitos viadutos e ruas, todas de alto luxo, porque o país era rico. Também, com a produção de petróleo, que era uma das mais elevadas do mundo, tudo aquilo fazia sentir onde o capitalismo americano estava assentado, contudo, aquele povo era infeliz e descontente com isso. Ouvi, no dia seguinte, uma notícia sobre um guerrilheiro que havia sido preso, pelos policiais. Depois, segui para Trinidad & Tobago. Fiquei feliz ao chegar lá, pois o povo era diferente, moreno, alegre; havia muitos chineses residindo por lá, sem falar nos ingleses.

Gostei da cidade, pois me pareceu um lugar diferente. Tinha sido uma colônia inglesa. Falava-se inglês, embora de forma caribenha. No entanto, para mim, foi uma grande aventura ir àquela terra para conhecê-la. O povo era feliz, divertido. Todos usam camisas sociais com mangas curtas, mas com gravata, sem usar o paletó. Portanto, eram interessantes, pelo menos para mim.

No local, os carros tinham a direção contrária, isto é, ao invés de ficarem ao lado esquerdo, como no Brasil, ficavam do lado direito. E os carros corriam muito, sempre pelo lado contrário, dando a impressão de perigo, mas que não existia. As ruas eram boas, mas não largas e não havia acostamento, como no Brasil.

O objetivo maior da ida a Trinidad, por um lado, era concluir serviços que ficaram faltando, não muitos, mas essenciais, e, por outro, testar a capacidade do dique flutuante com relação às exigências contratuais. Fui ao estaleiro inglês que estava preparado para o dique flutuante. Era um lugar limpo, embora distante do centro de Port of Spain. Talvez tudo aquilo fizesse parte de um estaleiro maior, mas este era simples e ordeiro. Havia também um diretor, mais importante do que Mr. Thompson, com quem falávamos quando não havia outro jeito. Além disso, havia secretárias, que não eram bonitas, mas imprescindíveis. Todos lá trabalhavam.

No estaleiro, tudo me pareceu bom, embora não dispusesse de muitos recursos. Depois, fui à cidade para falar com o advogado da empresa. Achei estranho, pois ele trabalhava em um lugar pequeno e em condições péssimas. Ele, um advogado de alguma idade, ouviu todas as minhas questões, não quis entrar no mérito delas, mas disse que deveria ir até Londres, para resolver tais problemas. Assustei-me, na ocasião, pois nunca tinha pensado em ir até Londres. Não seria agora a hora para ir, pensei na ocasião.

Foi interessante conhecer não só Port of Spain, mas toda a llha de Trinidad. As árvores se pareciam com plantações do Japão, eram incomuns, porém, bonitas, todas empertigadas, com suas folhas belíssimas. Havia, no centro de Port of Spain, grandes jardins, cheios de lugares para se passear. Foi num lugar assim que vi um vendedor de gelo para chupar, com sabores variados.

O povo de Trinidad era estranho, mas divertido, jogavam um tipo de baseball em pequenos grupos. Nos finais de semana, um grande número de pessoas vestidas de branco saía para jogar tal jogo, de cujo nome não me recordo. À noite, funcionavam algumas casas noturnas, não muitas. Fui a essas casas acompanhando outros jovens que comigo estavam. Cantavam músicas bonitas, bem diferentes das nossas. E dançavam tão vibrantemente, que fiquei encantado com tudo aquilo.

Gostei muito de Port of Spain, embora tivesse ficado por muito mais tempo do que previa. O navio grande para os testes do dique teria que vir como o esperado. Mas estava demorando demais. Negociávamos tudo aquilo. De qualquer forma, ficamos de esperar alguns dias mais. Se o navio grande não viesse, tudo seria dado como certo, com os testes com navios pequenos, que lá estavam sendo realizados, e poderíamos retornar.

Um domingo, nós fomos visitar a Ilha de Tobago, que ficava no outro lado de Trinidad. Fomos até um lugar chamado Pick Lake, onde havia uma enorme massa de piches, tão grande que até as casas, que por lá existiam, estavam tortas. Aquele piche há muitos anos era retirado para variados fins.

Conhecer Tobago foi uma emoção ímpar. Tudo lá era diferente. Havia grandes áreas com casas bonitas, outras com casas feias. No entanto, não havia mendigos nas ruas. Muitas refinarias de petróleo, dos americanos e dos ingleses, funcionavam por lá. As praias que conhecemos por lá eram lindas, incomensuravelmente lindas.

Em Trinidad & Tobago, além dos caribenhos, como são chamados os morenos locais, e dos ingleses, havia um grande número de chineses. Esses faziam parte da sociedade local de nível alto e era bom tratar cordialmente com eles. Pareciam, por assim dizer, os japoneses do Brasil, de muito bom nível social.

Em Port of Spain existiam muitas coisas que não encontrávamos no Brasil de então, como os chamados “supermercados”. Lá, se vendia de tudo, sob condições especiais. Comprar coisas ali era uma atração para todos nós. Foi por isso que comprei uma maleta do tipo 007, tão falada nos filmes de James Bond. Era pesada, mas um antigo sonho meu. Custou-me cerca de US$30,00, mas senti que valeu a pena. No Brasil, esse modelo ainda não era vendido.

Lembro-me de que passamos por vários lugares, até mesmo dentro de uma espécie de fortaleza, guardada por soldados americanos, para chegar ao estaleiro onde o dique flutuante estava instalado. Haviam nos dito que tivéssemos cuidado com aqueles soldados americanos que, além de não serem cordiais, eram fechados e poucos amigos para qualquer um. Uma vez, chegamos, pedimos autorização, que nos foi negada. Insistimos e eles se colocaram em posição de atirar, assustando-nos tremendamente. Nunca mais insistimos com eles, em qualquer coisa, depois daquilo.

Quanto ao dique flutuante, fui lá para vê-lo. Já estava no local para funcionar e era lindo de se olhar. A água no local era límpida, coalhada de peixes. No final, o navio grande não veio, de forma que pudemos ir embora. Antes, porém, o Mr. Thompson chamou-nos para ir a casa dele, recentemente construída, onde tocou músicas de Roberto Carlos e outros sucessos do Brasil. Ficamos encantados com tal amabilidade.

Foi bom ter ido até lá, pelo menos para mim, pois era, como disse, a minha primeira viagem ao exterior. Vi uma Port of Spain diferente de tudo aquilo que imaginava. Pude ver uma igreja ortodoxa ou coisa assim, fui a um cinema de péssima qualidade, onde assisti a um filme sem entender nada, pois tudo era falado em língua estrangeira. Vi também muitos armamentos e peças de guerra, como minas, armazenados nos vários cantos das ruas de Port of Spain, provavelmente sucata da II Guerra Mundial. De qualquer forma, vi um povo bom, honesto, tranquilo.

28.

 

Takeo Ogino foi, sem dúvida, uma pessoa interessante que conheci dentro da Ishibrás. Ele ingressou no início de 1960, quando ainda estávamos lutando para estabelecer as condições mínimas de funcionamento daquela empresa. Tudo era confuso nessa época.

Um jovem, com cinco anos a mais do que eu, chamando atenção de todos por suas ideias, que ele entendia serem avançadas, porém, a nosso ver, pareciam quebradas. Na verdade, ele atuava como um bom advogado, mas sem qualquer experiência. Sabia apresentar seus argumentos com muita ênfase. Era um homem que convencia com suas ideias diferentes.

Na verdade, foi um homem alegre, sempre disposto àquilo que fosse considerado bom. Seria um advogado altamente conveniente. Achava sempre que um bom acordo era melhor do que qualquer solução judicial. Sabia, talvez por suas leituras ou por alguma razão, que um bom advogado tinha de ser valente. E isso ele o era. Dizer que ele respeitava os diretores da Ishibrás era positivo, mas quando havia razões para isso.

O advogado Ogino ingressou e assumiu a chefia do setor. Na realidade, ele pensou que cuidaria também de questões trabalhistas, ou mesmo das questões fiscais. Contudo, essas atribuições ficaram fora do seu comando, por conveniência da empresa. Não obstante, ele estava satisfeito com tudo aquilo. Afinal, todo o restante seria responsabilidade dele.

A empresa, por outro lado, poderia pagar a outros especialistas para tratar daqueles encargos. Foi o caso do Thomas Nabuco de Araújo e de todo o seu escritório de advocacia que, durante vários anos, prestou consultoria à Ishibrás. Um advogado cuidou da parte jurídica do imposto de renda durante anos. Outro famoso advogado cuidou das questões trabalhistas. Tínhamos também o Milton Augusto Walter, que cuidou das questões contábeis e fiscais com rara competência.

Nos primeiros dias, depois que ingressou, o Ogino não sabia sequer calcular o imposto de selo que existia. Era uma mistura tão complicada de coisas que ninguém conseguia entender. Eu, por razão, já dominava o cálculo de tal imposto do selo. Pude explicar-lhe, então. E ele ficou grato por isso. Na ocasião, isto é, em 1960, eu tinha um firme propósito: o de vir a ser um advogado. Estava me preparando para ingressar numa faculdade de Direito.

Durante os anos seguintes, ele incentivou-me a formar-me como advogado, para que eu pudesse transferir-me para o setor jurídico, fato que realmente aconteceu. Nesta ocasião, ele ficou tão feliz, que insistiu em ceder-me sua mesa de trabalho. Evidentemente, ingressar como advogado naquele setor era uma das minhas grandes vontades.

O Takeo Ogino era uma pessoa simples. Todavia, pensava muito e sabia efetivamente como conseguir as coisas boas para a Ishibrás, embora muitas vezes a solução nem sempre fosse jurídica. Ouvindo seus planos, me admirei e perguntei:

– Como você conseguiu alcançar esse objetivo, com tanta naturalidade?

Seus conhecimentos sobre a parte jurídica eram bons, de forma que atuava dentro desse esquema. Causava-me surpresa com suas soluções para resolver os problemas em que a Ishibrás se via muitas vezes envolvida.

Por outro lado, era uma pessoa que falava muito. Falava muito e sem sempre com a devida atenção. Quero dizer, na maioria das vezes, os diretores gostavam dele porque provavelmente era uma pessoa útil. Os diretores o ouviam, ponderavam sobre isso, muitas vezes aprovando-o, e outras desaprovando a solução apresentada.

A Ishibrás tinha o Elbe Hayao. Era um excelente advogado, filho de pai japonês e mãe francesa. Seu pai tinha sido muito importante na época da Segunda Guerra Mundial; foi quem decidiu sobre como os membros da colônia japonesa local deveriam fazer para sobreporem-se aos rigores da guerra, para se precaverem das dificuldades de então, eis que era o único cônsul japonês residente.

Hayao era um homem alto, geralmente fechado, talvez por ter sido, por longo tempo, autoridade policial de alto nível. Era o advogado do consulado japonês no Rio de Janeiro e, a convite da diretoria, passou a prestar serviços jurídicos à Ishibrás, em regime de meio-expediente. Problemas, ele sempre teve, com várias pessoas, mas logo depois se davam bem.

Logo no início do seu trabalho no setor jurídico, Hayao defendeu a Ishibrás com brilhantismo numa questão sobre a incidência de quotas de contribuição, ganhando até um parecer louvável por seu trabalho no Supremo Tribunal Federal. A diretoria ficou extremamente agradecida a ele na ocasião. Se tivesse perdido aquela causa, a empresa teria perdido muitos milhões de dólares. No particular, o Hayao foi um advogado brilhante da Ishibrás, tendo sido nomeado com condições especiais para figurar dentro do setor jurídico.

Aquele seu ingresso, em 1967, me fez lembrar que não estava mais interessado em subir dentro dos quadros funcionais da Ishibrás. Havia desistido de tal intento, porque nunca conseguiria subir, não obstante o fato de ser competente e rápido em minhas ações. Uma das razões, segundo os padrões japoneses, estaria no fato de eu ser ainda jovem demais. De forma que resolvi que queria ser advogado, ser um bom advogado, pois era mais importante do que ser chefe de alguma seção ou mais tarde de um departamento.

Por isso, quando resolvi me transferir para o setor jurídico, ganhava mais dinheiro mentalmente do que o Hayao e o Arthur. Para resolver o problema, propus ao Ogino que ficaria sem receber qualquer aumento por algum tempo. De qualquer forma, dentro de um ano ou um pouco mais, tudo se resolveu. Ora, isso só era possível para alguém como eu, decidido a acertar as coisas, dentro daquelas circunstâncias.

Fui, como se diz, um grande e bom amigo do Arthur. Até o dia em que ele brigou comigo por causa de uma brincadeira que aconteceu quando o Ogino estava no Japão, gozando do seu estágio, em 1972.

Eu era o encarregado da parte de sociedade anônima, cuidava de tudo naquela área. Num belo dia, o Arthur apareceu, como encarregado do setor jurídico, e perguntou-me alguma coisa. Não era importante a questão pendente. Mas, como éramos muito amigos e estava muito ocupado, disse-lhe que responderia depois. Pretendia fazê-lo, logo depois. No entanto, por alguma razão, que não entendi bem, ele levou a brincadeira a sério e, sem que eu soubesse, passou um telex ao Japão, para ouvir a opinião do Ogino.

Procurei o Arthur e disse-lhe qual deveria ser a resposta à questão por ele levantada, achando estranho o fato de ele ter enviado aquele telex ao Japão por coisa tão simples.

Voltando ao Ogino, lembro-me de que ele sofria muitas vezes, pelas dificuldades de resolver as questões dentro da Ishibrás. Depois de alguns anos, ele começou a ter dores no estômago, com úlceras. Todo dia, ele tomava o seu remédio. Ele gostava de alguns dos Diretores da Ishibrás, como o Taiji Ubukata e Orlando Barbosa, que eram as figuras máximas naquela empresa. Na realidade, os dois sabiam como os verdadeiros advogados deveriam atuar, numa empresa como a Ishibrás, para resolver os problemas daquela instituição. Com relação ao Ubukata, o Ogino tinha uma verdadeira admiração quer por sua cultura, quer por suas saídas inteligentes.

O Taiji Ubukata era um empresário autêntico, do melhor nível, cheio de ideias avançadas, sabendo negociar com mão larga, para atender não apenas aos interesses da empresa, como também de todos os seus empregados. Desde a época em que chegou ao Brasil, em 1959, ele foi sempre assim, para os que não sabiam apreciar suas atitudes de vanguarda. Quem deixou sua grande marca, no Brasil, foi, sem dúvida, o Ubukata.

Pelo que me contou, quando jovem, havia sido um comandante militar na Segunda Guerra Mundial. Certa ocasião, ele se encontrava comandando todos os seus subordinados em território inimigo, sem qualquer possibilidade de vitória. Não obstante ter recebido fortes instruções de que não deveria se render, não viu qualquer outra solução naquelas circunstâncias, pois se encontrava cercado, sem armas e principalmente sem munições. Sabia que se fosse por um lado, encontraria tropas inimigas fortemente armadas; se fosse por outro, também as encontraria.

Naquele momento, disse-me ele, seus homens estavam até mesmo sem alimentos, sofrendo barbaramente. Aqueles jovens, que tanto lutaram com ele nas batalhas anteriores, não poderiam ser condenados a morrer, para salvaguardar o nome do Japão. Ele entendia tudo aquilo, mas compreendeu que não estava certa aquela posição das autoridades militares. Depois de passar por muitos dias difíceis, resolveu aceitar aquela situação, de forma que acabou se rendendo. Disse que aquela foi uma decisão extremamente difícil, mas imprescindível, pois sabia que seria fuzilado. Logo depois, no entanto, a guerra terminou, e ele não sofreu consequências por tal decisão.

Ele provou que era homem até nas horas de derrota. Ubukata realizava operações comerciais no mundo inteiro. Tanto que, quando chegou ao Brasil, tinha operações financeiras nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, porque conhecia profundamente as legislações internacionais que regulavam as operações. Posteriormente, depois que saiu do Brasil, foi eleito para ser o presidente da Ishikawajima-Harima Heavy Industries, Co. Ltd, do Japão.

Naquela primeira época, quando veio ao Brasil, ele adotou uma prática que deu certo no controle dos serviços dos seus subordinados. Ele ouvia tudo o que nós poderíamos contar sobre determinado problema e o que esperávamos no futuro. Depois, dava um dia ou dois de folga, para que realizássemos tudo, e marcava no calendário. Posteriormente, como controlava para que tudo funcionasse. Normalmente, nos chamava e nos pedia informações. Checava assim para ver se tudo estava bem. Se estivessem, o processo continuava. Contudo, se por nossas falhas, aquelas previsões que nós mesmos fazíamos não dessem certo, ele demonstrava a sua insatisfação conosco por tais erros. Deveríamos avisá-lo antes de chegar o dia aprazado. Era uma forma que ele tinha encontrado para checar superiormente os nossos trabalhos.

Taiji Ubukata era uma pessoa íntegra, inteligente, a par de tudo o que por aqui acontecia. Pela manhã, quando acordava, naquela época, tinha uma rádio que dizia as horas, minuto a minuto. Ele, no início, não entendia nada da língua portuguesa. No entanto, à medida que o tempo passava, ele, de tanto ouvir, sabia, exatamente, aquele determinado horário. Era, afinal, um ser humano com condições extraordinárias que tivemos a oportunidade de conviver, aqui no Brasil, naquele tempo.

29.

 

Quem me apresentou ao dentista Terumitsu Sekito foi o Takeo Ogino. Fui com ele ao seu consultório dentário, provavelmente em 1967. Não era, como se esperava, um homem bonito ou algo de transcendente. Era um homem pequeno, de cor alaranjada, com pele bastante queimada pelo sol, esperto, que apreciava pescar. Gostei dele. Afinal, era amigo do Ogino por muitos anos, e se davam muito bem, principalmente na área da pescaria, era a ideia que todos nós fazíamos deles.

Um tempo depois, começamos a sair juntos para pescar – o Takeo Ogino, o seu pai, o velho Ogino, o Terumitsu Sekito, o Takeshi Endo e eu, que havia ingressado no Grupo de Pescaria. Íamos a Cabo Frio, ou melhor, até Arraial do Cabo, onde tomávamos um barco, que nos levava até a Ilha de Cabo Frio; lá pescávamos até o dia seguinte, quando, ao meio-dia, voltávamos.

Eu não sabia na ocasião se tudo aquilo estava bem, pois estava deixando a minha família aos sábados e domingos sem a minha assistência pessoal. Sofri muito com isso, embora achasse aquela pescaria algo importante para me “enturmar”. Queria entrar no Grupo, mas não sabia como fazer. Não eram todos os fins de semana; íamos uma vez a cada duas ou três semanas. Agradavam-me aquelas pescarias. No entanto, como disse, eu não sabia se estavam certas as minhas colocações, pois minhas filhas eram pequenas e queriam sair nos finais de semana. Minha esposa, igualmente, esperava que fizéssemos alguma coisa.

A Minako entendia as minhas explicações, e nunca se queixou do fato de eu deixá-la com as crianças aos sábados e domingos. Por quanto tempo aguentou aquela situação, nem sei dizer, mas foi provavelmente por mais de dois anos. Sinto que todas aquelas foram experiências positivas, que elas suportaram, para que eu pudesse evoluir profissionalmente. Fiquei, de qualquer forma, muito grato por aquela atitude, que sempre entendi como sendo inteligente nas mulheres de grande porte.

Nas primeiras vezes, eu parecia ser um condenado a não pescar. Era, de certa forma, um castigo para quem iria aprender a pescar. Por mil razões, todos me diziam que uma vara não poderia ser segurada daquela forma, a isca não deveria ser colocada daquele jeito. Pescar era uma atitude mística que tínhamos de conquistar com muito esforço, e mil outras razões, que eles davam ao bel prazer deles. E eu, só ouvindo. Nada a dizer, mesmo porque, realmente, não sabia pescar.

Numa daquelas pescarias, durante a ida, começou a ventar forte em uma determinada direção. O Ogino me olhou primeiro e disse, sorrindo para os outros, uma frase:

– Afinal, talvez a maioria pesque, mas o pobre aprendiz – referindo-se a mim – provavelmente não vai conseguir sequer chegar perto dos peixes.

Era, sem dúvida, o temperamento do Ogino, com seu jeito alegre e descontraído. Quem seria eu para duvidar dele naquela atividade em que eles eram espertalhões? Todos ali eram, sem dúvida, vorazes pescadores. Falar algo sobre a pescaria com seu pai, o velho Ogino, seria impossível, pois afinal ele tinha sido o grande mestre na arte de pescar, embora fosse muito educado. Que ninguém falasse sobre tal arte na presença dele. Quanto ao Sekito, ele era, igualmente, um grande perito na arte de pegar peixe.

E, com relação ao Endo, era também um especialista na pescaria, embora nada falasse, por sua elevada educação, de forma que eu ficava ali, esperando a vez, para ver como as coisas iriam sair. No entanto, numa daquelas pescarias, pesquei três peixes grandes, enquanto os outros não conseguiram nenhum peixe grande. O maior dos meus peixes pesava cerca de quatro quilogramas e os outros cerca de três quilogramas cada. Para mim, aquele dia foi de extrema felicidade, pois, embora não pudesse falar nada, todos os meus companheiros de pesca tiveram, como se diz na gíria, de engolir a saliva e levarem os peixes que eu havia modestamente pescado. De certa forma, foi quando me tornei um membro integral daquele “Grupo de Pescaria”.

Acordávamos muito cedo aos sábados, em torno das quatro horas da madrugada.  Íamos até as barcas de transferência dos carros do Rio de Janeiro para Niterói, por não existir ainda a Ponte Rio-Niterói. Aguardávamos cerca de uma hora, às vezes algo mais, para atravessar a Baía de Guanabara até Niterói, em razão do tráfego de carros. Comprávamos então um monte de iscas, sardinhas e camarões no mercado de peixes local, e guardávamos em três caixas de isopor, com bastante gelo. Depois, seguíamos em direção a Arraial do Cabo.

No meio do caminho, parávamos em Araruama, em uma padaria, onde tomávamos café com leite e comíamos pão com manteiga. Lá, comprávamos balas e cigarros para levar. Aquela pescaria representava para todos nós uma aventura. Comentávamos como as coisas iriam acontecer. Geralmente fazíamos a viagem a bordo de dois “fuscas”, que eram os melhores carros de então.

No barco, transportávamos tudo: uma barraca velhíssima, que o Sekito havia trazido dos Estados Unidos, muitos equipamentos para a pesca, comida para a nossa subsistência e outros materiais, sempre considerados importantes, em pescarias como aquelas. Íamos todos, sem nunca saber se conseguiríamos pescar algum peixe grande. E, assim, atravessávamos o mar, em barquinho aberto, a motor, e chegávamos a um determinado local da ilha de Cabo Frio, que chamávamos de “ponto vermelho”, onde ficávamos pescando.

O lugar, evidentemente, era lindíssimo. A água do mar era transparente e translúcida. Quem tinha sorte, pescava logo. Os outros demoravam. Chegávamos por volta das dez horas da manhã de sábado, e meia hora depois todos estavam com os seus caniços com linhas dentro do mar, esperando sinceramente que algum peixe grande mordesse os anzóis. Geralmente alguém conseguia pescar algum peixe numa hora. Todos então iam lá para vê-lo, expressar um “bravo!” e contar mil e uma coisas sobre aqueles que pescavam. Tudo então era alegria.

Como era uma pescaria naqueles tempos? Era tudo na base de caniço e anzol. Usávamos caniços grandes, linhas do número oitenta, e todos os anzóis amarrados em linhas de aço, com desenrolador e peso de chumbo. Os mesmos eram lançados com isca de meia sardinha ou mesmo com um peixe inteiro. Todos esperavam pescar algo. Às vezes, tudo dava certo, de forma que sentíamos momentos de extrema felicidade. Outras vezes, não obstante nossos esforços, pouco pescávamos.

Todos os momentos de uma pescaria são geralmente bons, nós compreendíamos. O objetivo era pegar os peixes, mas tínhamos de saber que muitas vezes não pegar peixe também fazia parte da pescaria. Pelo menos teríamos ficado ali, naquele lugar deslumbrante, vendo aquele mar lindíssimo, de águas cristalinas, naquela expectativa, falando tantas bobagens e fazendo tantas coisas que normalmente não faríamos. E tudo aquilo aliviava as nossas ansiedades naturais, principalmente profissionais. Pescar bem é felicidade, mas tínhamos de saber que não pescar é igualmente parte dessa felicidade.

O pai de Ogino, o velho Ogino, era um ser humano com condições excepcionais. Gostava de uma boa pescaria, algo que fazia parte se sua vida. Já idoso, então, deveria ter mais de setenta e cinco anos, era, no entanto, um grande pescador. Pescava peixes grandes, mas ele se concentrava em apanhar peixes pequenos. Nisso, ninguém conseguia superá-lo.

Era sempre uma pessoa alegre, sempre bem disposta. Já se dizia que era meio cego, pois não enxergava muito bem as coisas à sua frente. Para mim, o velho Ogino sempre foi uma pessoal excelente, das melhores que já pude conhecer.

Quanto à sua mãe, que sempre ficava em casa, foi uma das mais fenomenais senhoras que conheci em minha vida. Nunca pude, nem de longe, falar mal dela, pois, depois da pescaria, tínhamos, por costume, ir à casa do Ogino, lavar as mãos, tomar uma dose de uísque, ou outra bebida forte, que sempre estava disponível. Comíamos um almoço reforçado, com o peixe que levávamos. Eu estava sempre com pressa, queria ir para casa e encontrar minha esposa e minhas filhas, que ficavam me esperando, para passear. No entanto, aqueles momentos na casa do Ogino eram maravilhosos, sob todos os pontos de vista.

O Takeshi Endo era uma pessoa excelente, que ocupava um importante cargo dentro da Ishikawajima do Japão e aqui estava para nos ajudar com seu método de trabalho. Após alguns anos no Brasil, ele foi devolvido ao Japão para continuar seus trabalhos naquele país. O Endo estava sempre pronto para tomar todas as providências necessárias. Tinha uma técnica especial para pescar, coisa que ele realmente gostava. Uma vez, lembro-me, foi ao Japão e, na volta, trouxe uma série de equipamentos para a pesca. Gostei dele, imensamente, por todas essas razões.

Já o Sekito era uma pessoa alegre, sempre cheia de ideias, às vezes avançadas. Porém, ele se considerava, provavelmente com boas razões para isso, um dos melhores dentistas do Brasil. E toda vez que eu o apresentava a alguém, dizia-lhe que era, sem dúvida, o melhor dentista do Brasil. Eu o considerava um grande amigo.

No início, seu consultório dentário ficava num prédio perto do escritório, até que comprou uma sala nova e mandou decorar como sempre quis, no melhor estilo. Havia uma sala com um ambiente dos mais agradáveis, com um quadro de peixe de papel, feito na parede, tudo dentro da mais fina decoração. Com equipamentos sofisticados, era um consultório dentário dos mais bem aparelhados. Era lá que ele trabalhava, naquela época.

30.

 

A obra logosófica tinha passado por fases importantes naquela década de sessenta. Em 1960, o I Congresso Internacional de Logosofia, em Montevidéu, difundiu amplamente os seus conhecimentos de grande significado para o futuro da humanidade. Em 1963, González Pecotche faleceria.

Nesse meio tempo, criávamos a nossa escola primária, primeiro em Belo Horizonte, e, depois, no Rio de Janeiro. Independentemente disso, nós, aqui no Rio de Janeiro, adquirimos nossa sede, mudando-nos do centro da cidade para o bairro de Botafogo. Tivemos muitos outros trabalhos, realizando reuniões nacionais e internacionais, criando o Conselho de Administração e vivendo estágios complexos dentro da obra logosófica.

De certa forma, foi o período em que todos nós tomamos consciência de que teríamos de viver sem a presença física de seu criador, González Pecotche. Era uma tomada de consciência com a verdade, com as lutas do dia-a-dia, não obstante nossas esperanças.

Depois disso, participei, como ouvinte, da II Reunião Internacional de Docência Logosófica, realizada no Rio de Janeiro, em 1969, com a presença de muitos estudantes da Argentina e do Uruguai. Pude ter uma ideia de como as coisas caminharam, não obstante as reações personalistas, que todos nós, estudantes de Logosofia, manifestávamos em diversas ocasiões.

Naquela reunião, pude desfazer a imagem negativa de que a obra logosófica era feita de seres perfeitos, de seres integrais em todos os sentidos, incapazes de errar. Pude ver, por isso, que todos nós éramos seres comuns, com todos os nossos defeitos, apesar da luta em que estávamos empenhados.

Na fase seguinte, estudamos o papel do homem e da mulher, preparando-nos para o II Congresso Internacional de Logosofia, que teria lugar em Buenos Aires.

No início, fomos buscar, dentro da obra logosófica, aspectos em que Raumsol nos falava sobre o papel do homem e da mulher, para entender algo a respeito de tão importante tema. Achamos muitos ensinamentos, mas entendê-los não foi fácil dentro do mundo onde habitávamos. Porém, em 1970, vieram vários estudantes de Buenos Aires para uma reunião preparatória, trazendo-nos utilíssimos elementos para compreender melhor o verdadeiro papel do homem e a suma importância da mulher e, sobretudo, o papel transcendente de ambos dentro da história da humanidade.

Efetivamente, foi em 1971 que aconteceu o II Congresso Internacional de Logosofia em Buenos Aires, na Argentina, do qual, ao contrário do outro, realizado em 1960, em Montevidéu, no Uruguai, pude participar diretamente.

Preparei-me muito para ir, embora sozinho, sem a presença da Minako que ainda estava com a Káthia, um bebê então. Valeu a pena ter ido. Aliás, tínhamos a Thais, com nove anos, e a Denise, com seis anos, todas bem quanto à saúde e à disposição para viver.

Tudo, na realidade, foi objeto de amplo preparo. Raumsol já havia falecido, mas sua senhora, Paulina Puntel de González Pecotche, lá estava para exercer um papel importante. O tema básico seria a democracia e o papel do conhecimento para o aperfeiçoamento do homem e do próprio mundo superior.

Eu, por acaso, tinha escolhido um dos subtemas importantes – o papel do homem e da mulher. As diferenças entre o homem e a mulher evidentemente existiam, mas eram colocadas de forma radical, como se comparassem duas maçãs. Posteriormente, descobrimos que as diferenças, se existissem, seriam totalmente incompatíveis, como se comparássemos uma maçã com um pêssego.

– Essa diferença do homem e da mulher existiria? – perguntava eu.

Sim, é claro. O homem foi feito com grande liberdade, está sempre pronto para avançar, para alcançar maior espaço no caminho da transcendência, tanto assim que seu corpo físico não está preso a nada. Está pronto para o que der e vier. Livremente, poderá ir a qualquer lugar em qualquer parte do mundo, ingressar em qualquer floresta, realizar qualquer tipo de missão espacial, sem qualquer problema. Porém, como voará muito alto, poderá ultrapassar o mundo real e cair no mundo da imaginação, no mundo quimérico, de forma que poderá equivocar-se, gravemente. Consequentemente, ele terá que avançar de forma consciente, ouvindo as opiniões das mulheres. Terá que ouvir, para refletir e adequá-las, não permitindo que as mesmas venham a tolher totalmente suas ações, pois, ocorrendo isto, poderá levá-lo a perder a sua liberdade plena, o que pode ser altamente prejudicial.

Cabe ao homem muitos papéis fundamentais, sobretudo o de traçar as diretrizes por onde sua família irá caminhar. De igual forma, caber-lhe-á o papel transcendente de ser o pai, de ser o guia daquela família, em todos os termos.

Já quanto à mulher, é diferente. Tem, em outros contornos, igual liberdade, não obstante a menstruação periódica, é amplo o seu conceito de transcendência e tem um grande papel, o de ser a rainha do lar, pois cabe-lhe a essência de ser mãe. Estará sempre preocupada com as necessidades do dia a dia, visando salvaguardar a vida de sua família. Tem o papel de conciliar e de consolidar todas as conquistas que consegue com a ajuda do homem. Um trabalho da maior envergadura – foi como pude responder, mais tarde.

Ao homem, mais livre, cabe o trabalho de abrir novos horizontes para a vida do ser humano. No entanto, terá que ser de forma consciente, de forma aberta, com lealdade, com honestidade, com probidade.

– Será que ambos estão prontos para tais funções? – duvidávamos.

– É claro que estão – foi à conclusão a que chegamos.

Outra, dentre as muitas conclusões a que chegamos, foi a ideia de que o homem e a mulher iniciavam seus processos ao mesmo tempo, nunca podendo alguém dizer que um é melhor do que o outro. Raumsol, com sua sabedoria, comparou o papel dos dois a uma moeda, em que, numa face, teríamos o retrato do homem, na outra, o retrato da mulher, mas, ao se rolar a moeda, os dois correriam paralelamente.

Fui então compreender que ao homem cabia buscar, sem limites e sem qualquer trava, os caminhos para a evolução transcendente, e que cabia à mulher a consolidação das conquistas do homem na busca do seu lado transcendente. Os dois, segundo entendi, exerciam papéis fundamentais para a evolução do ser humano.

– A mulher, afinal de contas, é tão importante quanto o homem – conclusão a que cheguei.

Para ir à Argentina foi alugado um avião, que levou o grupo brasileiro para aquele importante congresso. A viagem foi boa, sobretudo estimulante, embora ninguém viesse servir-nos café, bolos ou salgadinhos. De qualquer forma, chegamos a Buenos Aires, à noite, no Aeroporto de Ezeiza. Somente acabamos de nos acomodar no hotel bastante tarde, cerca de meia-noite. Estávamos com fome e saímos para saciá-la, quando descobrimos que não havia lugar decente para se comer àquela hora. Foi algo de estranho que descobrimos então na capital argentina.

De qualquer forma, ficamos bem em Buenos Aires. O número de estudantes de Logosofia era muito grande então. No dia seguinte, fomos cedo para o lugar da abertura, quando o José Alberto da Silveira foi formalizado como presidente do referido Congresso e os demais membros também tomaram posse dos seus postos. Para a abertura dos trabalhos, tomou a palavra Paulina Puntel Gonzalez, que fez um lindo discurso, falando sobre aquele importante encontro.

Depois, formaram-se grupos. Eu, evidentemente, de acordo com a minha escolha, caí no que estudaria o papel do homem e da mulher.

O Congresso se realizou se realizou no Conselho Deliberativo, algo como a Câmara dos Vereadores da cidade de Buenos Aires, um lindo e amplo espaço para aquele tipo de atividade. Posteriormente, entendemos que reuniões importantes de Logosofia, realizadas fora do seu ambiente normal, não davam certo por variadas razões, dentre as quais a provável ausência dos pensamentos superiores, que deveriam estar impregnados no local.

Meu grupo era bom, com cerca de 30 pessoas, todos muito compenetrados. E lá estudamos toda a matéria de acordo com os ensinamentos de González Pecotche. Depois, pudemos ver que com conhecimentos superiores tanto o homem quanto a mulher se formariam para ser melhores do que são e ajudariam a criar um mundo mais elevado. Isto não só teoricamente, mas realmente poderia acontecer.

Tanto no hotel, quanto no Conselho, o ambiente era bom. Cada grupo teria uma plenária geral, onde apresentaria seus resultados. Assim, além de participar do Grupo, fomos assistir às plenárias dos demais grupos. Havia um grande entusiasmo.

Formavam-se grupos a redor de estudantes antigos e que haviam convivido longamente com González Pecotche. Todos eles convidados para falar sobre seus encontros com o criador da Logosofia em épocas passadas e dos episódios ocorridos então. Na verdade, queríamos, por nossa vontade, ser melhores.

Estávamos num hotel perto do Conselho. Fiquei no meu quarto com vários estudantes de Logosofia. Um deles, de Belo Horizonte, muitos anos depois, veio a se separar da obra logosófica, tendo criado então outra instituição, com outro nome, no qual lhe seria permitido subir em sua escala interna. Entendi que tal atitude não foi correta, embora conveniente para ele, em Belo Horizonte, onde os dirigentes eram muito rigorosos na permissão que davam para todos participarem das demais atividades direcionais.

– O que quero dizer é que ninguém iria sair de uma fundação, como a logosófica, para fundar oura, se aquela onde se encontrava lhe oferecia todas as condições para realizar o seu trabalho, com a devida liberdade.

Naquele hotel, no dia em que teria de falar em meio à plenária do Conselho, acordei de madrugada e fui aperfeiçoar o me discurso. Não ficou como queria, algo de formidável, mas alguns viram que eu estudava, e que estava fazendo um esforço muito grande nesse sentido. Daí que o colega de Belo Horizonte, supracitado, saiu dizendo que toda manhã, ainda escuro, eu tinha por costume acordar cedo para estudar de forma intensa. Quero dizer, criou-se uma “lenda” de que eu era mais do que realmente eu parecia. E isso era um mal, pois não era a verdade pura e simples.

Durante o dia, as atividades na cidade de Buenos Aires eram intensas. O grande drama que eu e meus colegas encontrávamos na cidade foi o denominado “veda”, que era a proibição para que durante aquela semana ninguém comesse carne bovina. Tal carne era produto de exportação, razão porque era imprescindível guardá-la. Ficamos frustrados com tudo aquilo. Ir a Buenos Aires e não pode comer a carne bovina argentina, era um drama, pelo menos para mim. No entanto, nada se podia fazer, de forma que tivemos de comer outros tipos de carnes.

Andamos de metrô, que no Brasil ainda não existia naquela época. Fomos às compras na Rua Florida, famosa no lugar. Além de termos andado por todas aquelas ruas e praças, para conhecer Buenos Aires. Seguimos também até “Boca” e participamos de um jantar festivo, com música alegre, onde se cantou muito.

Porém, houve uma surpresa, que muito apreciamos, que era o direito de estudantes de Logosofia tomarem um cálice de champanhe lá no salão de festas do Conselho Deliberativo. Foi uma festa bonita de que pudemos participar. Todos muito alegres, sempre com conversas de coisas agradáveis, tudo com o maior estímulo.

Conhecer Buenos Aires foi um acontecimento para mim. O Conselho ficava próximo do Palácio do Governo Federal, de forma que, pela manhã, acordávamos um pouco mais cedo e por lá andávamos. Tudo muito bonito, tudo muito agradável. Dessa forma, pude entender melhor tantos conceitos que a Logosofia vinha me ensinar, como sobre a liberdade. Quando estive em Buenos Aires, não entendia que essa liberdade era coisa tão importante assim. Em parte, levados pelos pensamentos da maioria, muitos achavam que o González Pecotche não errava nunca. Eu não aceitei essa tese porque contrariava toda a minha compreensão de até então.

Que tanto o homem como a mulher eram iguais, embora diferentes, foi a final conclusão que levei daquele Congresso. E isso, como entendo, foi importante para mim como pai de três filhas, pensando no futuro delas. Ou melhor, entender tudo aquilo sobre o homem e mulher foi uma alegria muito grande.

Capítulo V

 

Pelas vigílias do Japão

 

31

 

 Não pretendia ir ao Japão em 1971. No entanto, quando fui levar a minha cunhada Rosa ao aeroporto para seguir ao Japão, no mês de abril, ficou-me aquela ideia, de que, afinal, nada seria melhor para mim do que ir também. Difícil, tudo era. De qualquer forma, a ideia tinha ficado.

A Rosa iria ao Japão e por lá ficaria por cerca de dez meses, realizando um estágio na Yakult. Foi o resultado de um belo trabalho que nós realizamos, pois ela ganhara uma bolsa de estudos. Contudo, por questões da associação japonesa de São Paulo, que teria se equivocado, ela deixaria de ir. Avisaram-nos dessa decisão com muito atraso.

Ela não se conformou com isso, razão pela qual escrevi uma longa e bonita carta dizendo que deveria ir, pois, do contrário, teríamos de discutir a questão, até judicialmente, se fosse indispensável. O assunto foi levado à diretoria daquela associação, quando, após uma reunião, decidiu-se que poderia ir pela Yakult. Ela foi e retornou muito feliz com tudo aquilo. Voltou de lá entusiata da cultura japonesa.

Quanto a mim, depois de resolvida a viagem da Rosa, eu mesmo me esqueci da minha própria ida ao Japão. Quem viu a questão foi minha mãe que, em São Paulo, onde ela morava, descobriu que o Gaimusho (Ministério dos Negócios Estrangeiros) do Japão teria uma bolsa para três candidatos. Avisou-me e pediu-me para que me esclarecesse a respeito, perante as autoridades consulares.

Fui então ao consulado-geral do Japão no Rio de Janeiro, onde me deram um longo documento, onde se especificava que a intenção era levar cerca de 10 pessoas da América Latina, com grau universitário, que tivessem cerca de 5 a 10 anos de experiência profissional, para ver e conhecer o Japão. Era, sem dúvida, um curso de pós-graduação diferente dos estágios normais.

Exigia-se então que todos falassem bem a língua japonesa. Eles não pretendiam ensinar nada, mas apenas mostrar como o Japão se encontrava no momento. Por isso, fizeram questão de que as pessoas convidadas tivessem alguns anos de experiência profissional para compreender melhor tudo isso.

Gostei muito do programa. Preenchi todas as exigências solicitadas e esperei a resposta, que, de certa forma, não demorou, dizendo-nos que iríamos ao Japão. O prazo para permanência era de cerca de dois meses. Pagaríamos apenas a metade da passagem de volta do Japão. No mais, eles pagariam quase tudo, dentro das condições estabelecidas.

Na ocasião, como trabalhava na Ishibrás, levei o assunto ao Fukumoto, nosso diretor financeiro, embora sabendo que um outro diretor, o Yamamoto, do setor de pessoal, iria decidir sobre a matéria. Depois, mesmo entendendo que o Yamamoto poderia negar minha ida ao Japão, por atuação do Fukumoto, acabei podendo ir até aquele importante país.

O tempo de espera, que no nosso caso era pequeno, afligiu-me, pois tínhamos de resolver muitas coisas para poder viajar. Ficar dois meses longe do país com a família aqui, com muitos itens pendentes na área do trabalho, era coisa em que tínhamos de pensar e equacionar. Estranhamente, até no dia em que fui viajar ao Japão, tive de trabalhar, tal o número de itens existentes.

De qualquer forma, tinha estado em contato com os dois outros candidatos aprovados no Brasil, o Masaru Uyeda, de São Paulo, que era promotor, e como o Toshihiko Tan, de Londrina, professor universitário e dentista. Traçamos então um plano, por iniciativa de Uyeda, para ficarmos o mais longo tempo durante a nossa viagem de ida, nos Estados Unidos e no Havaí, por conta da empresa de aviação. Razão pela qual iríamos até Nova York, onde ficaríamos uns dois dias, iríamos depois a São Francisco e, no dia seguinte, iríamos ao Havaí, onde permaneceríamos por dois dias, antes de chegar a Tóquio.

Cabe esclarecer ainda que eu, como advogado, tinha liberdade de realizar muitas coisas em caráter extraoficial, embora fosse funcionário da Ishibrás. E todas eram questões que tinha de resolver da melhor maneira possível. Além disso, deixar minha família no Brasil por cerca de dois meses não seria fácil, embora todos em casa estivessem em bom estado de saúde, tendo coisas importantes para realizarem no período. Teria, igualmente, de deixar dinheiro para os gastos delas durante a minha ausência. Não era, de qualquer forma, algo simples delegar a outros, sobretudo na parte de atividades extra profissionais.

Finalmente, minha família me acompanhou até o embarque, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Minha mãe viera de São Paulo para isso, bem como o diretor Fukumoto, que para lá se deslocou muito gentilmente. Demorou um pouco, mas pudemos nos despedir de todos e de lá fomos ao Japão, passando antes em Nova York, depois São Francisco, e, posteriormente, no Havaí. Eu estava muito feliz com tudo aquilo, embora bastante cansado.

Viajamos em um avião da Pan-American, uma belíssima aeronave, muito grande, a qual não saiu com todos os lugares tomados. A aeromoça serviu-nos um excelente jantar. Apareceu depois e perguntou-me se não gostaria de dormir.

– Bastará levantar as braçadeiras das cadeiras ao lado que estão vazias, e poderá dormir tranquilamente – disse atenciosamente.

Entendi que tudo aquilo seria ótimo. A aeromoça apareceu trazendo-me travesseiros e um cobertor, com o qual me cobri. Pude descansar um bocado. Fiquei grato ao trabalho daquelas aeromoças americanas, sempre tão lindas e tão esforçadas.

– O importante é chegar aos Estados Unidos – imaginava. – Tudo a partir de então será maravilhoso. Conhecer Nova York será emocionante e sensacional.

O aeroporto ficava distante da cidade, de forma que tomei um ônibus que me levou até o centro, isto é ao hotel onde eu havia feito uma reserva.

Toda a cidade me encantou. Tudo muito limpo. Estava no mês de agosto. Seria uma época quente, pois estava o verão no ponto máximo. Descobri que havia uma defasagem de horários entre o Brasil e a cidade. Parecia-me que seria mais tarde, cerca das 11 horas da manhã, mas, tudo indicava que o dia tinha acabado de amanhecer naquela cidade de Nova York.

Chegando ao hotel, liguei a televisão e, maravilhado, vi que a transmissão era colorida. As imagens não eram nítidas, mas, sem dúvida, eram coloridas. No Brasil eram ainda em branco e preto. Fiquei assistindo à programação e gostei demais de tudo aquilo.

Tomei banho, troquei de roupa, dispondo-me a sair, para conhecer a cidade de Nova York.

– Sem dúvida, uma grande cidade. Inegavelmente a maior do mundo – pensei.

Encontrei logo depois com os outros dois bolsistas que estavam realizando a mesma viagem. Eles haviam tomado outro avião em São Paulo e chegado àquela cidade no mesmo dia. Foi uma emoção muito grande encontrá-los.

Em Nova York, andamos por vários lugares. Fomos levar uma carta que o Fukumoto havia escrito para o gerente de Ishikawajima de Nova York, cujos escritórios ficavam no The World Trade Center, aqueles dois prédios, que em 11 de setembro de 2001 viriam a ser destruídos em ataque terrorista, me pareceram então os mais altos do mundo. Subimos naquele prédio, ainda em final de construção, chegando àqueles escritórios, onde fomos bem recebidos. E tudo estava saindo melhor do que esperava.

Tomamos, após isso, um ônibus de uma empresa de excursão e fomos correr por Nova York. Fomos ouvindo as explicações que um agente de turismo ia fazendo dos lugares por onde passávamos, até que chegamos a uma praça onde terminava aquele passeio. De lá, vimos uma estátua, ao longe, ao que tudo indicava, numa ilha. Era a Estátua da Liberdade. Ficamos vendo-a de binóculos, alugados no lugar, embevecidos.

Posteriormente, fomos ao “Wall Street”, lugar que servia de centro para as grandes operações financeiras do mundo inteiro. Prédios grandes, sem muito a ver por dentro, contudo. Andamos mais um pouco, sempre conversando, compramos pêssegos lindíssimos, que levamos para o hotel.

À noite, fomos visitar o “The Empire State Building”, até recentemente considerado o prédio mais alto do mundo. Havia vários elevadores, para nos conduzir até a parte superior. Subimos com muita emoção, pensando em como seria Nova York vista de noite lá de cima.

– Pudemos ver a cidade de Nova York em todo o seu esplendor. Ficamos embevecidos e por lá permanecemos por longo tempo.

Pensávamos então que não voltaríamos tão cedo àquela belíssima cidade. Nem eu, nem meus familiares. Eu tinha de ver melhor, para não formar uma ideia diferente do que estava ocorrendo.

Descobrimos, de igual forma, que a cidade de Nova York era estranha e diferente, pois toda a sua parte central, basicamente a imagem daquela megalópole, era dividida em quarteirões seguidos, cada qual com nomes levando números cardinais seguidos. Fomos, depois, ver outros prédios famosos, como teatros, cinemas e, de noite, lugares de diversão, onde se podia ver de tudo por alguns trocados. De alguma forma, pudemos conhecer aquela esplêndida cidade de Nova York.

Outra coisa importante a conhecer foi o metrô. Sabíamos de antemão que não seria bonito, mas o lugar por onde ingressamos para tomá-lo era bem feito. Os trens eram rápidos e permitiam, de qualquer forma, ter uma ideia de como funcionavam. Gostamos muito.

No dia seguinte, iríamos tomar um avião da Japan Air Lines, que nos levaria até São Francisco. Por volta das 11 horas, fomos ao Aeroporto e lá seguimos em nosso voo, que seguia quase vazio. As aeromoças vieram conversar conosco, pois eram jovens, muito distintas e discretas. Haveria talvez algo como cinco pessoas para aquele avião que comportaria cerca de 120 lugares.

– Por que vocês estão viajando aqui nos Estados Unidos? – perguntamos, querendo conversar com aquelas moças tão bonitas, tão elegantes, todas elas japonesas.

Elas nos olharam, sorriram e, depois, com calma, uma delas tentou dizer:

– Na verdade, este avião, como vários outros, está sendo implantado em áreas onde o tráfego com o tempo irá aumentar.

– No entanto, para todos nós, para a Japan Air Lines, é imprescindível que estejamos prontas para o que for necessário – foi como completou outra daquele grupo de aeromoças.

Pensei um pouco e interroguei:

– Os japoneses viriam como passageiros?

– Para nós os passageiros não têm que ser necessariamente japoneses, embora esperemos que eles surjam. Daí a importância de estarmos trabalhando nesta área – respondeu a outra.

Passamos a conversar sobre outras coisas após isso. Além disso, serviram-nos vários pratos, muito refinados, coisas deliciosas, além de bebidas finíssimas.

Em São Francisco fomos inicialmente a um hotel de alto luxo, fornecido pela empresa de aviação, pois teríamos de dormir uma noite. Era um bom hotel, tanto que, à noite, durante o jantar, eles fizeram aqueceram as carnes nas mesas, em réchauds, cheio de outros requintes que não caberia relatar agora.

Queríamos conhecer aquela cidade de São Francisco, pois era um lugar famoso. Fomos os três a um lugar onde havia uma fila de automóveis, com a placa “táxi”, para tentar alugar um só para o nosso turismo. A ideia era conhecer toda a cidade. Começamos a discutir amigavelmente com um deles que queria mais dinheiro. E nós dizendo, do outro lado, que não tínhamos. Contudo, gostamos do rapaz que parecia ser um bom motorista de táxi.

Mostrou-nos a cidade de São Francisco. Primeiramente, vimos a ponte Golden Gate, que ultrapassamos e tiramos fotografias, depois, o grande jardim ali existente e, posteriormente, fomos conhecer outras áreas. Não me lembro por onde andamos, pois foram por muitos lugares. O motorista fez questão de mostrar um lugar, com grande descida, cheio de curvas, cheio de flores, que ficara famoso no mundo inteiro porque um ator de cinema, o Steve McQueen, havia feito aquela curva pessoalmente de carro, quase caindo, devido à forte inclinação. Lembrei-me do filme, “Bullet”, de forma que fui lá interessado em apreciar aquele lugar.

Depois de nos mostrar o lugar, o referido motorista fez uma proposta:

– Descerei ali em alta velocidade, mas teremos de estar dentro do carro, não obstante o perigo de cair.

– Iríamos ou não iríamos? – perguntamo-nos.

Por fim, aceitamos alegremente, não obstante o perigo que existia, subimos no carro e esperamos sinceramente que nada acontecesse. Decididamente, ele ligou o carro, aprontou-se e desceu dando grande velocidade naquele labiríntico lugar. Ficamos temerosos, mas, no fundo, sabíamos que nada de errado aconteceria

Penso que aquele rapaz gostou da gente, tanto que depois de ter feito aquilo que combinou, continuou fazendo outras coisas, mas por conta própria, pois o táxi era dele. Ficamos com pena, no final, de forma que, na hora de pagar, acabamos dando um pouco além do que estava previsto.

No dia seguinte, seguimos, igualmente pela Japan Air Lines, o primeiro trecho do Oceano Pacífico, rumo ao Havaí. No meio do Oceano Pacífico, um lugar muito bonito. Lá escolhemos um hotel e depois fomos ver a cidade. Como disse, era um belo lugar, embora uma cidade estranha, pois havia muitos americanos, mas também muitos japoneses, ou pelo menos pessoas com rostos orientais. Gostamos do lugar, embora tenhamos ficado por apenas dois dias.

Perto do hotel onde ficamos, havia uma espécie de abertura de vulcão, isto é, tudo aberto, no chão, porém grande. Fomos até lá para ver tudo. O mar, lindíssimo, lá estava perto para nos alegrar. E havia também muitas pedras por todos os lados, para mostrar que a velejada, por aqueles lugares, não seria tão fácil como se mostrava nos papéis turísticos.

Foi lá no Havaí que resolvemos alugar um carro durante um dia. Era um bom automóvel, de cor amarela, pequeno. E o objetivo era subir a serra, dar uma volta pelo outro lado ilha, para vermos como era. Foi algo bonito tudo aquilo que vimos. Lá em cima, sentimos uma grande ventania, tão forte, que parecia que poderia nos levar. Muitas casas de luxo, provavelmente de americanos, por todas as partes. Muitos orientais e gente de toda espécie, mas sempre pessoas limpas e ordeiras.

Estivemos ainda em Pearl Harbour, local que foi objeto de bombardeiro pelos japoneses no inicio da II Guerra Mundial. Fomos, também, realizar compras para levar algo para o Japão. Vimos até alguns abacaxis, que eram enormes, mas cuja cor branca não nos agradou, pois não pareciam doces. No Brasil, abacaxis de cor banca são verdes. No entanto, aqueles abacaxis eram bons, como descobrimos mais tarde. Conhecer o Havaí não estava nos meus planos. No entanto, pensando no caso, lembrei-me que talvez fosse a maior ilha da região, no meio do Pacífico. Era uma pena pensar, então, que não poderíamos conhecer outras ilhas daquele arquipélago. De qualquer forma, ter ido ao Havaí foi algo bom, que nos ajudou a ter ideias do lugar. Quero dizer, foi algo que me ajudou a liberar de ir conhecê-la no futuro. Dentro de mim, isso foi importante.

Tomamos o avião novamente, atravessando o segundo período do Oceano Pacífico, rumo a Tóquio, Japão. Tanto em São Francisco, como agora no Havaí, tomamos o avião tipo “jumbo” da Boeing, que de tão grande parecia até um auditório. Era tão grande, que, apesar de até exibir filmes em seu interior, não nos causava boa impressão. Na prática, preferimos aviões menores. O voo foi maravilhoso, embora tivesse ficado um pouco temeroso com o que poderia ocorrer. Como seria possível voar com aviões tão grandes? Era o que pensávamos. No entanto, não havia ainda notícias de queda de tais aviões, o que, de certa forma, nos aliviava.

32.

 

Chegamos dessa forma, no início da noite, ao Aeroporto de Haneda, em Tóquio, no Japão. Eu não estava bem, pois o fuso horário era de aproximadamente 12 horas. Lá estavam a Rosa com o meu tio Kawamura e a respectiva família, além do pessoal da Ishikawajima, bem como os representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para nos buscar.

Desembarcamos e após passar pela alfândega local, cumprimentei a Rosa e alguns amigos festivamente. Quanto ao meu tio Buhei Kawamura e familiares, fui lá cumprimentá-los, amigavelmente, com muita emoção.

– É um prazer enorme conhecê-los. Em razão da minha situação como bolsista, eu não poderei, contudo, lhes dar atenção agora. Depois, conversaremos – disse, então.

Cumprimentei as outras pessoas que lá estavam, e saí logo depois com o pessoal do Ministério dos Negócios Estrangeiros que nos levou, em seu carro, ao Asia Hotel Kaikan.

A Rosa, depois, foi para lá, de forma que então pudemos conversar bastante. Eu, no entanto, em razão da viagem e das defasagens de horário continuava não me sentindo bem naquele momento. Não sabia o que queria fazer para programar as minhas atividades de então. Foi o que aconteceu naquele dia no Japão, terra de meus pais, onde estive pela primeira vez em minha vida.

No dia seguinte, vieram alguns dos membros do Gaimusho, para dar início às formalidades referentes à bolsa de estudos. Deram boas-vindas e explicaram que nas duas primeiras semanas dariam um curso na parte da manhã sobre o Japão, lá mesmo, no Asia Kaikan, e que, à tarde, sairíamos para realizar excursões a diversas fábricas ou a locais escolhidos. Quanto à parte da noite, estaríamos livres para realizarmos aquilo que quiséssemos.

De fato, assim eles iniciaram um bom curso, sempre com um professor universitário, primeiro para dar uma ideia de como o Japão se encontrava. Tivemos aulas sobre a história japonesa, sobre a ampla industrialização existente, o bem-estar social, artes, transportes, energia, enfim, sobre diversos aspectos, para que tivéssemos uma ideia do que aquele país representava, quer em seus aspectos positivos, quer em seus aspectos negativos. Apesar das dificuldades em se entender totalmente o teor daquelas aulas, gostamos muito delas, sobretudo quando se relacionavam com aspectos da economia mundial, pois o Japão era considerado um “milagre econômico”.

Tomamos contato, gradativamente, com a vida daquele importante país. Fomos visitar uma variedade de fábricas, como a Cannon, a NEC e outras, além de irmos a lugares especiais, como museus, escolas, etc. O Japão era, sem dúvida, uma maravilha, como pregavam meus amigos ou a propaganda turística.

Numa tarde, resolvemos, toda a turma, ir conhecer o teatro de Kabuki, uma tradição no Japão. Fomos até o teatro, elegante, um pouco antigo, mas, de qualquer forma, ousado, no meio da cidade de Tóquio, para assistir a um decantado espetáculo de Kabuki.

Assistimos a uma peça, cuja história era conhecida por todos nós. Referia-se a uma velha história de algumas centenas de anos, em que uma família, muito pobre, localizada em regiões muito frias, onde existiam muitas montanhas e muita neve, não conseguia, no meio daquelas dificuldades naturais, o arroz necessário para a subsistência de todos. Então, os mais antigos membros da família, que não mais trabalhavam, iam para o meio das montanhas, distantes de suas casas, para morrer, para não gastarem mais comida, já que não havia o suficiente para todos.

Tudo aquilo era terrível e mesmo inaceitável, embora compreensível, pois aquele povo não tinha como sobreviver com pessoas idosas que não trabalhavam, comendo aquela pouca comida que eles tinham. O que se contava na peça era o drama terrível, aceito por todos. Os velhos sabiam daquilo e, de certa forma, era uma situação criada por eles mesmos. Mostrava-nos toda a dramaticidade terrível daquela situação, em pleno inverno.

A peça demorava mais de quatro horas, na metade do espetáculo, eles interrompiam a sessão para que pudéssemos descansar. Levantamos então e seguimos um guia para a parte da frente do teatro, no segundo andar, onde existia um restaurante, no qual comemos um lanche em caixas que eles denominam de “bentô”. Depois, regressamos aos nossos assentos e tudo recomeçou. Era um grande drama.

O lado mais engraçado da peça, também por exigência do teatro japonês, é que eram todos artistas homens. Todos eram homens, mesmo aqueles que faziam o papel das moças, com roupas bonitas e gestos de mulheres.

– Por que são todos homens? E as mulheres, não trabalham? – perguntamos.

– Porque o denominado Kabuki foi um teatro criado pelo exército, onde não havia mulheres. Como, realmente, realizar o teatro sem a presença de mulheres? Foi daí que surgiu a necessidade de os homens realizarem o papel de mulheres. – respondiam-nos.

Depois, com o tempo, isso se tornou uma criação artística, hoje, devidamente engalanada no Japão. É inteligível, de qualquer forma. Quanto aos artistas, são aqueles que dedicam a vida inteira ao Kabuki. De forma que não é mais um teatro qualquer, em que algumas pessoas se reúnem para apresentar alguma peça. Ele representa, na verdade, um teatro de elite. Daí porque nos levaram para vê-lo.

Visitamos ainda um museu e um asilo para pessoas de idade. Embora o Japão de então fosse um país de primeiro mundo, eles tinham pessoas idosas que mereciam um pouco de calor humano. Fomos e vimos tudo, voltamos de lá penalizados com tudo aquilo que nos foi permitido apreciar.

Com relação às fábricas, ficou-nos a impressão de que eram excelentes, onde se produziam os melhores produtos que existiam nas respectivas áreas. Conhecer a Ishikawajima no Japão proporcionou uma grande emoção. Fui ao escritório da sede central e vi que ocupava vários andares. Não se tratava apenas de mais uma empresa, mas sim de uma empresa de grande vulto. Falei com o pessoal que já conhecia e com outras pessoas, com as quais deveria falar. Muita gente trabalhando, o que me pareceu algo estranho. No entanto, isso era, de certa forma, algo esperado. Contudo, naquela época, ninguém, numa empresa como a Ishikawajima, estaria esperando que alguém viesse do Brasil!

Participei de refeições com várias pessoas, até que fui um dia convidado para jantar com o diretor superintendente, Taiji Ubukata, por quem tínhamos uma grande admiração. Fiquei contente, ou melhor, fiquei emocionado com aquele convite. Lá estive, portanto, na hora marcada para o jantar.

O diretor Ubukata me levou para jantar num restaurante especial, o Sunny Ton-Ton, onde nos serviram um prato saboroso, algo como um fruto do mar, frito, conhecido no Japão com o nome de “owasi”, com vários pés de “matsutake”. Uma delícia que ficou na minha memória. Ubukata me contou as novidades, perguntando-me muito sobre o Brasil. Ele ficou contente, e eu também, e, ao final, ele me levou, em seu carro, até o Asia Kaikan. Fiquei feliz com esse encontro.

Visitando-o, anteriormente, ele me deu uma ideia porque era sempre um homem ideal para dirigir um grande estaleiro como o Ishikawajima. Tinha tudo em seus lugares e nada deixava ao acaso. Tudo era resolvido na hora. No seu trabalho no Brasil brilhara imensamente. Todas as ideias que dele tínhamos obtido continuavam ali, com todo o seu brilho.

– Por que um homem, como o diretor-superintendente Taiji Ubukata, tão ocupado com suas funções, inclusive porque tinha a responsabilidade de assinar tudo em nome da empresa, tiraria uma noite para jantar com um advogado brasileiro?

Pude constatar porque a Ishikawajima era uma grande empresa, não só pelos seus estaleiros, que eram muitos, mas também por suas fábricas de produtos industriais, que também eram grandes. De quase tudo se fabricava na Ishikawajima do Japão. Naquela empresa, encontrei com o Watanabe, que no Brasil havia sido gerente de finanças, com o seu assistente, o Kato, com o Orihara, que foi chefe do departamento de serviços gerais, além do pessoal das indústrias, como o Kannoh, que foi diretor-superintendente na Ishibrás do Brasil.

Por fim, falei longamente com o Matsuo, que ocupava a função de advocacia e que me fez longas explanações sobre o funcionamento da Ishikawajima como sociedade por ações. Por tudo aquilo, achei muito produtivo ter ido até a Ishikawajima para conhecê-la e, inclusive, para trabalhar um pouco.

***

Nós nem sabíamos se seríamos recebidos por sua Alteza Imperial, o príncipe Akihito, pois ele estava assumindo os papéis do seu pai, o imperador do Japão, o qual se encontrava viajando pelo mundo. Convidados que fomos, estivemos em sua casa, em Akasaka, num bairro de luxo de Tóquio, em setembro de 1971. Fomos os dez bolsistas, além do pessoal da Sociedade Latino-Americana e o pessoal do Gaimusho.

Sabíamos da importância daquela visita. Levei comigo um exemplar da revista Manchete, edição especial sobre o Brasil daquela época, para estrangeiros. Toda a revista foi feita com fotos bonitas e escrita em português e também em língua inglesa. Chegando ali, passamos por um enorme jardim. Perguntei então se poderia mostrá-la ao Príncipe Akihito.

– Teoricamente não poderia. No entanto, já que a trouxe ‑ disse-me um dos assessores, examinando a revista ‑ poderá ingressar.

Na verdade, aquele impedimento residia no eventual risco que poderia representar para o Príncipe Akihito, o ingresso de objetos que poderiam feri-lo.

Lá mesmo, os orientadores nos instruíram sobre como deveríamos tratar o príncipe. Nunca iniciaríamos qualquer conversa, a não ser que houvesse iniciativa por parte do príncipe. Para chamá-lo, se fosse o caso, teríamos de usar uma nomenclatura especial. Nunca deveríamos virar-lhe as costas, além de outros itens considerados essenciais.

– Por quanto tempo ficaríamos ali dentro? – eu perguntei, ansioso por aquela entrevista.

– Por cerca de meia hora – respondeu o instrutor.

Entramos na sala e lá ficamos todos de pé, quando o príncipe Akihito ingressou. Parecia algo cansado. Olhou-nos fixamente, sorriu e convidou-nos a sentar. Fiquei depois refletindo, como um homem como ele poderia ser considerado um príncipe, com tantos sacrifícios. Como disse, parecia cansado, e, pelo que me constava, levava uma vida difícil. Não era, honestamente falando, uma vida digna de ser vivida, pelo menos por mim.

Ele iniciou conversando sobre a nossa visita ao Japão. Perguntou sobre diversas coisas em todos aqueles países da América Latina. Gostei dele, pois pensava como um ser humano normal. Aliás, ele disse uma coisa que compreendi como das mais importantes:

– O papel de vocês não é defender o Japão, mas sim defender os seus respectivos países. Assim fazendo, ajudarão não só o Japão, mas de igual forma os países de vocês.

Depois, falamos sobre o Brasil e das relações que ele conhecia, pois algum tempo antes havia até o país. Mostrei-lhe a revista e ele se apegou a ela com gosto e folheou-a de forma muito agradável.

Lembrou-se de várias pessoas no Brasil que haviam lhe feito favores, aos quais solicitou que enviássemos suas melhores lembranças, sempre com agradecimentos. Saímos de lá com uma imagem maior do império japonês. Aquela casa era bonita, embora não houvesse luxo. Era simples, talvez até demais. Em parte, pensei comigo, era para dar a impressão ao povo japonês, bem como aos outros, de que o príncipe não vivia no meio de luxo.

Entretanto, enquanto estávamos reunidos, os fotógrafos da casa registraram nossas imagens, perguntando, depois que terminaram, quantas fotos gostaríamos de pedir. De igual forma, lá existia um cigarro com marcas do principado, que poderíamos levar, em certa quantidade, para lembranças daquela visita. Senti, mais uma vez, que o império japonês era algo real, algo de bom, algo útil. Sei hoje que a monarquia tem sido de muita utilidade para a comunidade japonesa, bem como também para os estrangeiros. Eles representam, de certa forma, o poder moderador, a unidade de todo o sistema do estado japonês, independentemente de qualquer partido.

– Que vivam bastante – desejei intensamente.

***

Procuramos, de alguma forma, conhecer melhor o Japão. Assim, eu e a Rosa resolvemos, num domingo, ir conhecer a região de Hakone. Tínhamos de subir, numa excursão, dentro de um ônibus, para ir acima das montanhas, ouvindo várias histórias sobre as coisas que estavam sendo mostradas pelo guia. Vimos, assim, lugares lindos, belíssimos, com muito verde por todos os lugares, muitas montanhas.

Almoçamos num restaurante, por conta da empresa turística, e lá pudemos ter uma ideia de como o turismo era bem organizado, e como as coisas corriam. Até que, em determinado momento, chegamos a um lago enorme, o Hakone, o que nos fascinou.

– Como poderia haver um lago tão grande ali, em cima das montanhas? – era a pergunta que fazíamos, então.

Resolvemos tomar o barco grande ali existente, e dar uma longa volta até lugares que a nossa vista não alcançava. A visão era esfuziante. Água limpa, àquela altura, perto das montanhas! Tudo ali parecia um sonho.

– Por que será que tanta beleza existia?

Sentei-me na parte aberta do barco, imaginado como a Rosa estaria vivendo no Japão, com tanta beleza à sua disposição. Provavelmente, ela estaria feliz com tudo aquilo. No entanto, não sabia se ela já tinha tido aquele tipo de oportunidade, de sair, de ir ver, com seus próprios olhos. Tudo aquilo, sem dúvida, encantava-nos. Depois de correr algum tempo, descemos num outro ponto, onde descobrimos que havia um elevador, que nos levava para cima das montanhas. Tudo muito frio, cheio de nuvens e brisas, dando-nos uma visão belíssima do lugar.

As pedras das montanhas naquele lugar pareciam fantasmagóricas. Inclusive havia fumaça de cores estranhas, que surgiam de dentro de tais pedras, tornando o lugar algo de inédito dentro das nossas visões das coisas bonitas, que existiam no Japão. Em razão daquele frio que lá reinava, quando paramos, comemos uma tigela de macarrão, preparado com carinho e de forma muito higiênica. Sentimos a delícia daquele prato. Observamos tudo que por ali acontecia. O nosso ônibus lá se encontrava, o tomamos de volta a Tóquio.

Por tantos lugares passamos, tanto na ida, quanto na volta. Havia até uma estátua enorme do Buda num desses locais, e, em outro, encontramos vários lagos e até mesmo uma caverna, onde águas límpidas brotavam. Ingressamos ali, onde nos contaram que no passado aquela água se congelava, e permanecia assim grande parte do ano.

Deixamos de ver, no entanto, talvez em razão das nuvens que existiam, o Monte Fuji e outras montanhas que existiam naquele lugar. Voltamos felizes a Tóquio. Outras viagens faríamos depois.

33.

 

Uma semana depois de nosso passeio, se não me engano, o meu tio Buhei Kawamura, que morava em Tóquio, entrou em contato comigo, pedindo que fosse passar um fim de semana na casa deles. Eram extremamente amistosos, e eu queria ir, pois pretendia demonstrar; também, todo o meu carinho e a minha disposição de ajudá-lo, se fosse o caso.

No dia marcado, eles vieram buscar-me no Asia Kaikan. Penso que foi numa sexta-feira. O tio Kawamura e seu filho, o Shogo, apareceram com seu carro lá. Eles eram funcionários de elevado nível; meu tio chegou a ser chefe de departamento de uma grande empresa de laticínios.

Meu tio estava entusiasmado. Queria, de toda forma, agradar-me. Contou-me muitas histórias, várias delas engraçadas. Eu, evidentemente, estava feliz, e a tudo ouvia, querendo agradá-lo, inclusive fazendo comentários para reforçar suas impressões. Hoje, me arrependo por não ter agradecido tudo o que fizeram por mim, no Japão. Sobretudo, depois que fui, em 1990, ao cemitério onde meu tio Kawamura foi enterrado, no meio de Tóquio, pois fiquei perguntando a mim mesmo porque deixei essas coisas acontecerem.

Levaram-me a uma belíssima mansão, onde eles viviam. Era um pouco afastada do centro de Tóquio, uma construção aprazível, que me impressionou muito.

– Aqui – ele disse – nós moramos, de alguma forma.

Deixou-me olhar a casa, com o devido cuidado. Depois, pediu para que entrássemos. Lá, encontrei com sua senhora, distinta, bem vestida, mas à vontade; com sua filha Yoriko, uma jovem muito limpa, pelo que pude ver; e com outra jovem muito bonita, a Fukuko, esposa do Shogo; havia também uma linda senhora, de alguma idade, que me foi apresentada como tia, que morava em Osaka, e que tinha ido até lá para me conhecer. Todos, a partir desse momento, fizeram de tudo para me agradar.

Lembrei-me que tinha levado um litro de uísque da marca JB, de selo escuro, o qual lhe ofereci. Ele agradeceu muito aquele presente e disse que o tomaria em cálices especiais, como se fossem brindes do seu sobrinho brasileiro.

A casa dele era de madeira, mas toda trabalhada. Era nova e grande, com uma ampla sala de estar e, no fundo, uma cozinha. De um lado, havia um quarto, em que pude penetrar, e vi que era para visitantes, tudo de palhas, no chão, uma beleza, para quem não conhece. Tudo novo, algo de assombrar. E, quanto aos móveis, tudo da melhor qualidade.

Hoje, pensando em como era aquela casa, fico pensando que ainda não sabia como eram as casas do demais japoneses. Acreditava que muitos tinham aquele tipo de casa. No entanto, havia pouquíssimas daquele tamanho. E, sem saber disso, nem pude agradecê-los pela excelente acolhida que me deram.

Depois, ali havia também o furô (banho quente), em que ingressei, a pedido deles. Era uma maravilha. Gostei demais. Fomos, após isso, à mesa da cozinha, onde fizemos aquele jantar, com carne bovina, ao som alegre das vozes de todos. Foi uma conversa agradável, com meu tio, minhas duas tias, o Shogo, sua esposa Fukuko, e a Yoriko; lá estavam, todos para me agradarem. Falamos sobre minha mãe, que lá estivera antes, e como ela estava no momento, e lembramos coisas que aconteceram antes e agora, e tudo aquilo que fazia parte entre as famílias de tradição, como a nossa.

Meu tio era mais velho do que minha mãe, cerca de quatro anos. E era a bondade em pessoa. Ele e seu filho Shogo eram perfeitos cavalheiros, para todos os fins. Ele se formou em Agronomia em Hokkaido, para onde eu acabaria indo depois. Quando ele se casou, pelo regime japonês em vigor,  teve de trocar o nome, pois sua esposa tornara-se filha única, e seu nome precisava continuar. Havia trocado seu nome, Kawasaki, pelo da esposa, Kawamura. Durante o jantar, ele me propôs levar-me, no dia seguinte, para ver o Monte Fuji, inclusive para pousar num hotel especial existente naquelas montanhas. Insistiu que o lugar era belíssimo, principalmente para a visão dos estrangeiros. Disse-lhe, então, que a Rosa, minha cunhada, que vivia conosco, se encontrava naquele momento em Tóquio, e que ela gostaria imensamente de ir também. Não sei se fiz algo de bom, pois senti que a notícia atrapalhou a vida deles. No entanto, na mesma hora, ele disse que poderia ir. A Rosa poderia, assim, ir comigo ver o Monte Fuji, com muita alegria para todos nós.

Pude, assim, dormir naquele quarto, destinado aos convidados. Senti-me muito bem no lugar, e aproveitei-o ao máximo. De noite, inclusive, acordei para ver tudo aquilo que lá existia. Não eram muitas coisas, mas eram coisas belas. Coisas simples, porém lindas e fundamentais. No dia seguinte, minha ideia era arranjar um carro para levar-nos, pois a Rosa iria com a gente. Ela lá estava. Não conhecia muito o aspecto turístico, de forma que veio contente. E eles puderam ver que ela era uma moça de 25 anos de idade, muito alegre e pronta para o que viesse de bom. Todos, de alguma forma, gostaram muito dela. Quanto ao carro, fui arranjar, mas a Yoriko foi junto e acertou tudo, sem depender de mim, apesar das minhas reclamações.

Havia chovido naquela noite. Seguimos pela estrada em direção ao Monte Fuji, com as ruas todas molhadas, o sol nem aparecendo, em dois carros – um dirigido pelo Shogo, e o outro dirigido pela Yuriko. A presença do meu tio Buhei, da minha tia, do Shogo, da Yoriko, da tia de Osaka, que me foi extremamente agradável, além da Rosa, tornou aqueles dois dias gloriosos.

Conversamos muito sobre o Brasil e o Japão, todos animados, alegres. Nós os convidamos para virem ao Brasil, para conhecerem os aspectos úteis das coisas que aqui existiam, e eles retornaram o convite, também para falar sobre tantas coisas que existiam no Japão e sobre as quais nada, ou pouco, sabíamos. Para eles, no entanto, vir ao Brasil não era tão simples, pois eles teriam de deixar de trabalhar, além de que, precisariam de dinheiro para tanto. Falamos de todos, sobretudo sobre minha mãe e sobre o Zeniiti, os quais já haviam estado com eles antes.

Não sei se foi nesse dia, mas fomos a um lugar onde havia uma grande cachoeira, e do qual gostamos muito, pois era belíssimo. Muita gente por lá, todos vendo e experimentando aquela água, tão refrescante. Posteriormente, fomos a um lugar onde havia vários lagos grandes, um belíssimo lugar, era como se pertencessem a um sonho. “Que beleza de lugar!”, era o que repetíamos, sem parar.

Lembro-me, como se fosse hoje, que meu tio, ao olhar-me, perguntou-me se teria visto o Monte Fuji e, ao saber que não, disse-me, de forma didática:

– Meu filho, existe uma máxima que diz que somente verá o Monte Fuji quem tiver uma boa predisposição de alma.

Ter uma boa predisposição de alma, em japonês, tem um significado especial. Somente aqueles que alcançam esse nível sensível e mental podem fazer coisas positivas, e realizar outras coisas no mesmo sentido. Com o mesmo tom de voz, disse-lhe:

– Meu tio, espero ter essa boa predisposição de alma, pois não posso retornar ao Brasil sem ver o Monte Fuji.

Falávamos disso frente a um lugar onde o Monte Fuji estava próximo. Todo o céu se encontrava coberto pelas nuvens, sem dar qualquer chance de ver a fantástica montanha. Olhávamos para o alto, enquanto falávamos, quando, de repente, o céu se abriu, e, por alguns segundos, pudemos ver toda a imagem fantástica do Monte Fuji. Senti calafrios, pois nunca imaginava que o Monte Fuji fosse tão majestoso. Talvez tivesse sido apenas a emoção, mas senti-a de forma violenta. Não havia nada para falar. Nós dois nos entreolhamos, ficamos de boca aberta, e ninguém precisou falar mais nada. Meu tio, também, estava profundamente emocionado.

Hoje, ao falar do Monte Fuji, digo, por exemplo, que todos conhecem o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, o qual fica a cerca de 800 metros do nível do mar. Pois o Monte Fuji é mais ou menos quase quatro vezes mais alto e, além disso, parece, pelo menos me deu essa impressão, que ele é um monte isolado, de forma que causa um grande impacto. Se ver o Cristo Redentor dá para se emocionar, ver outro monte, quatro vezes mais alto, é extremamente emocionante. Falo isso com a maior sinceridade do mundo.

Depois, tio Kawamura tomou isto como exemplo, para dizer que eu era uma pessoa cheia de boas predisposições de alma, para brincar com os outros. Brincávamos de todas as formas, sempre para tornar a vida algo mais alegre, mais amena, mais aceitável. No caso dele, ele tinha uma grande decepção com determinados homens, pois, trabalhara a vida inteira numa empresa e, afinal, chegara o tempo em que ele se aposentou; ficara, desde então, sem os seus benefícios. Não adiantava explicar-lhe que tudo isso era parte da vida no Japão. No entanto, como era uma pessoa excelente, para todos os fins, nada daquilo parecia afetá-lo.

Subimos depois o Monte Fuji até a denominada Quinta Estação, em meio às chuvas e ao frio que lá fazia. Muitas vezes, parava ele o carro, e mostrava-me como as folhas estavam ficando vermelhas. Era o “koyôh”, um fenômeno que ocorria lá no Japão, em que, na mudança das estações, as folhas, de uma só vez, quase por completo, mudam de cor, ficando todas vermelhas. Podia ter ouvido falar sobre isso, mas tínhamos de ir ver. Após a Quinta Estação, para subir, teríamos de andar a pé.

Tentei depois, em Tóquio, pagar as despesas de locação do carro, que seria feito pela Rosa, mas não aceitaram tal proposição. Contudo, no dia seguinte, lembro-me que fui a uma loja, no centro da cidade, onde escolhi um belo cinzeiro de cristal, e o enviei como lembrança de nossa parte.

Atribuo a amizade que nos dedicavam, em parte, às recordações que tinham do Zeniiti, que viera ao Japão, anteriormente, como funcionário de uma empresa de aviação, bem como da minha mãe, que tinha vindo alguns anos antes, e tinha ficado com eles. Por tudo isso, nosso relacionamento foi dos melhores.

34.

 

Depois de ter ficado por volta de 15 dias em Tóquio, resolvemos viajar para o monte do Japão. Iniciamos nossa viagem de avião, de forma que descemos em Sapporo, capital da grande ilha de Hokkaido. Tínhamos ouvido falar daquela importante cidade, nova, com jeito de cidade brasileira. No local, fazia muito frio, pois estávamos no inverno.

Gostei do lugar, pois tudo ali aparecia ser mais alegre. No caso, cobri-me com uma capa que havia comprado, para proteger-me do frio, e assim fiquei por lá, para visitar no dia seguinte o Sapporo Beer, uma empresa fabricante de cervejas em todo o Japão, além de comer um churrasco muito especial, feito com carne de carneiro. Não é muito boa tal carne, se compararmos com a carne bovina, mas é possível comê-la, embora deixe alguma gordura na boca. Experimentamos a tal carne numa noite, em uma churrascaria, para onde a Associação Latino-Americana nos levou.

No dia seguinte, fomos correr o interior de Hokkaido. Fomos a vários lugares: a uma enorme fábrica de papel, noutra, visitamos povos antigos, originários, provavelmente, do outro lado do oceano. Na prática, dizendo honestamente, nada achei de estranho neles. Vi, no entanto, que produziam enormes quantidades de bichos de madeira, todos pintados em diversas cores, sobretudo cinza, quase escuro.

Fomos, depois, a um vilarejo, onde existia um lago, com um pequeno Monte Fuji no outro lado. Como chovia muito na ocasião, tudo aquilo nos pareceu algo de fantástico. Foi uma noite agradável, pois pudemos tomar ali, pela primeira vez, um banho com água quente natural, que surgia por dentre as pedras no interior daquele hotel, onde ficamos. Na manhã seguinte, navegamos naquele imenso lago em barcos pequenos, que transportava algumas pessoas que tiravam muitas fotografias, tudo no meio do nevoeiro. Havia pássaros, parecendo um lugar fantástico.

Posteriormente, fomos visitar outras cidades, até que chegamos a Hakodate, onde encontramos uma siderúrgica. Após isso, aguardamos algum tempo para tomarmos então um barco, que nos transportaria para a terra principal, ou seja, para o “Honshu”. A distância era longa, nem podíamos ver, mas o mar lá estava, esperando-nos. Talvez algo em torno de 90 milhas de distância.

De qualquer forma, ao subir ao barco, pudemos ver como os japoneses viviam, então. Por alguma razão, os japoneses gostavam de ficar no chão, isto é, de sentarem no chão. Vimos aquilo e estranhamos. No entanto, nós estávamos naquilo que se chamava de classe “verde”, que era a melhor, geralmente reservada para os turistas ricos. Contudo, tive a consciência de que lá existiam diversas classes sociais, pelo menos economicamente. Quem podia, escolhia os melhores lugares, em primeiro os da classe verde, depois, os da 1ª Classe, e depois os da 2ª ou da 3ª classe. Achar, no entanto, que a vida deles era suja, é inverdade, pois tudo ali era limpo. Os estrangeiros, que não conhecem a cultura dos antigos japoneses, achariam tudo aquilo estranho, ou pelo menos fenomenal. São alguns aspectos da vida naquele país.

Não lembro quanto tempo levamos para atravessar o mar. Chegamos à cidade de Aomori. Resolvemos ficar até certa hora, para tomarmos o trem que sairia direto para a cidade de Sendai, no caminho dali para Tóquio. Saímos um pouco e pudemos conversar com algumas moças que por lá viviam. Eram moças excelentes, querendo saber coisas sobre o Brasil. Elas, inclusive, falavam de forma diferente a língua japonesa, eram pessoas ótimas, que devíamos conhecer mais.

Tomamos o trem, viajamos a noite inteira, e chegamos pela manhã à cidade de Sendai, onde descemos e tomamos outro trem que nos levou para a belíssima cidade de Matsushima. Um pontal, mergulhado no mar, onde as coisas aconteceram para melhorar o aspecto do local. Nunca entendi o que teria acontecido. Parecia que o mar tinha reduzido suas águas a vários metros, deixando à mostra muitas plantas, além de pedras, com aspectos tão lindos para se ver. Para dizer a verdade, nunca havia visto nada igual a tudo aquilo.

Encantou-me por todos os sentidos. Tanto as plantas, como as pedras, eram diferentes das outras das demais regiões do mundo inteiro. Todas eram lindíssimas, por alguma razão. Tempos depois, ouvindo as palavras do professor Narita, ali deveria ter existido vulcões que elevaram os terrenos, colocando-os naquela situação tão particular. De qualquer forma, tudo aquilo nos agradou bastante. Depois, regressamos a Tóquio, para realizarmos aquilo a que nos propomos.

Estar no Japão foi um longo sonho que estava se realizando. O contato com pessoas conhecidas, quer pelo lado profissional, quer por relações patrióticas, eis que havia muitos bolsistas lá estudando, quer com relação à nossa vida, era desafiante.

No dia 7 de setembro, fomos convidados a comparecer ao Hotel Okura, um enorme edifício, recentemente construído, para comemorarmos a Independência do Brasil. Muitas pessoas, profissionais de toda índole e, sobretudo, estudantes, puderam participar de uma bela cerimônia dirigida pela Embaixada Brasileira. Num outro dia, estivemos em outro hotel, de igual luxo, para participar de um casamento de um nissei que trabalhava lá em Tóquio, onde pude ver pedaços de salmão, o que no Brasil era extremamente difícil.

De igual forma, nossas relações com o pessoal da Associação Latino-Americana, que cuidava de nós a pedido do Gaimucho do Japão, eram, na maioria das vezes, úteis. Posso, na verdade, dizer que a Associação Latino-Americana, depois que lá chegamos, reuniu-nos e nos deu até o dinheiro para pagarmos as nossas despesas. Por todos esses anos, ficamos sendo muito amigos de todos eles.

Lembro-me agora do Yasushi Nagai, que foi a pessoa que nos encaminhou por todo o Japão nas nossas viagens. Com o mesmo, brincamos muito, apesar da sua serenidade em nos levar, quer para o norte, na primeira fase da viagem, quer para o sul do Japão, na fase final, dando-nos sempre elementos de muito valor, para compreendermos melhor o próprio Japão. Ficamos amigos dele e de muitas das outras pessoas que nos acompanhavam, por tais relações.

Somente para relatar, ficamos amigos do pessoal do Brasil que trabalhava em Tóquio, quer por conta própria, quer por conta das empresas brasileiras, como o IBC, o Banco do Brasil, as empresas de turismo etc., e que nos davam tantos elementos de ajuda, por todos os lados. Isto sem falar na grande ajuda que o pessoal da Ishikawajima nos dava, em nossas múltiplas relações, em tudo, no Japão.

Ficamos, de igual forma, conhecendo os denominados “kisatens”, onde eram servidos chás ou outras bebidas, geralmente finas, possibilitando em ambiente limpo e bem tranquilo, um bom papo, para conversar com os amigos japoneses. Havia muitos “kisatens” no Japão. Os sons musicais eram característicos, tocavam bem baixo, de forma límpida, dentro dos “kisatens”.

Uma vez, de fato, fui assistir a uma peça, de caráter reservado, onde controlavam a idade daqueles que ingressavam. Era composta por lindas canções, interpretadas por moças que dançavam extremamente bem. Talvez tenha surgido aí o meu gosto pela música popular japonesa. Foram espetáculos belíssimos aos quais assisti, para a minha alegria, e que me proporcionaram guardar aspectos diferentes do Japão.

Lembro-me de uma moça que havia conhecido na festa de 7 de setembro, e que procurou-me por telefone, para sairmos mais tarde. Na realidade, em razão da chuva forte, eu a havia levado num táxi para a sua pensão-escolar, onde as moças bolsistas podiam sair, desde que voltassem até determinada hora. Era noite, tudo estava algo animado, porque a festa havia sido boa. Ela, em razão disso, entendera mal a meu respeito. Sem dúvida, ela era uma moça de família e suas intenções eram boas.

No entanto, sendo casado, não poderia fazer aquilo que ela pretendia, pois, afinal, ela era solteira e estava atrás de um homem de boas intenções. Não poderia dizer isso, de forma, que fiquei sem saber o que fazer. Não fui ao encontro, pois fiquei, como disse, sem saber o que dizer.

Depois, lamentei muitíssimo. Não sei o que aconteceu. Foi talvez uma das poucas coisas dramáticas que fiz em minha vida. Por longo tempo, pensei profundamente porque aquele tipo de coisa teria acontecido comigo. O assunto morreu assim, sem qualquer resultado prático para cada um de nós. Fiquei, no entanto, muito aborrecido, pois poderia tê-lo resolvido de modo mais satisfatório.

Compreendi, então, que um homem, ao ir para o exterior, fica com a falsa ideia de que está livre e desembaraçado para tudo, quando não está. Depois, nunca mais fiz qualquer coisa em que este tipo de pensamento pudesse transparecer. Ninguém está livre dos seus encargos, independentemente do lugar onde estiver, mesmo que no exterior. Foi uma das lições que aprendi, então.

Mudando de assunto, vi também no Japão, naquela época, um grande número de turistas, inclusive de japoneses. Em todos os lugares aonde ia, havia um grande número, na sua maioria estudantes, de todas as idades. Não entendia aquilo, Mas talvez fosse algo peculiar dos próprios japoneses, pensava.

35.

 

Finalmente, resolvemos ir até o sul do Japão, fomos conhecer o trem-bala, ou seja, o trem relâmpago, com velocidade acima de200 kmpor hora. Era um trem de luxo, grande, tinha cinco lugares em cada fila, com um bom atendimento quanto às mordomias. Saímos de Tóquio em direção a Kyoto, para conhecer tudo o que havia naquela histórica cidade do Japão. O trem-bala é rápido, efetivamente. Quando começamos a correr, as imagens externas mudavam com muita rapidez. Em pouco tempo, chegamos ao nosso objetivo.

No entanto, gostaria de contar uma pequena história de uma visita que fiz a um dos meus tios, que morava em outra cidade, perto de Kyoto. Era esse tio o irmão mais velho, ainda vivo, na família do meu pai. Já tinha idade avançada, algo como 85 anos de idade. Fui lá, a pedido de minha mãe, que com ele se correspondia. Ele morava numa casa simples, pois estava aposentado como funcionário do correio local. Lá encontrei uma senhora, que não sabia se era sua esposa, além também de uma moça, algo em torno de vinte e poucos anos de idade. Fui carinhosamente recebido. Jantei e conversamos muito até altas horas da noite, relatando tudo aquilo que estava acontecendo. A moça, de outro lado, era alegre, bonita e fluente, tendo falado sobre muitas coisas que estavam acontecendo. Se não me engano, era noiva de alguém. Gostei demais da visita, voltando de lá penalizado com aquele lugar onde eles moravam. Contudo, eles prepararam não apenas uma simples refeição, mas um jantar muito rico, havendo também uma longa lista de doces. Fiquei feliz com tudo aquilo.

De alguma forma, viver ali como aposentado do correio, talvez tivesse sido algo de positivo para aquele senhor, que tanto se parecia com o meu avô. Era extremamente agradável e muito afetuoso.

Posteriormente, fui ao cemitério, que ficava a cerca de uma hora, visitar o túmulo do meu avô, Hidesada. Foi emocionante. Voltei de lá algo feliz, satisfeito comigo mesmo.

Em Kyoto e em Nara, visitamos muitos daqueles monumentos. São dezenas de templos e igrejas e outros tipos de construções, alguns muito antigos, com vários séculos, outros mais novos. Fui ver o Kinkakuji, um lugar belíssimo, onde se pode ver o que a mão artística do ser humano é capaz.

Tomamos um ônibus e fomos até a cidade de Isu, onde havia um lindíssimo jardim, com muitas árvores e belíssimos monumentos, por onde andamos para ver e sentir toda aquela beleza de lugar. Ficamos tão impressionados que ficamos, sem dúvida, com vontade de voltar para vê-los, em dias mais calmos. Havia um rio no lugar com vários peixes, do tipo domiciliar, alguns bastante grandes, tendo, muitos deles, mais de 50 cm de comprimento, em variadas cores, alguns em vermelho, outros amarelos, outros azuis, outros brancos, a maioria deles com cores alternadas.

Foi lá também que subi uma escada antiga, que me pareceu estar por lá há muitos séculos, para a entrada de um templo também esquecido.

– Será que tudo aquilo foi um símbolo de uma época?

Ficamos, de qualquer forma, entusiasmados com tudo o que por lá vimos. Não há o que dizer sobre a beleza de coisas antigas, não por serem belas em si, mas pela história que elas representam.

Após isso, fomos àquela cidade portuária, onde dormimos. No dia seguinte, fomos ao Centro Mikimoto, onde se cultivavam verdadeiras pérolas, mostrando-nos como as moças, preparadas, mergulhavam no mar e apanhavam as ostras, onde tais pérolas se encontravam. Tudo isso feito de forma harmônica sob um som musical. Inclusive porque, depois disso, pudemos ver todas as fases da fábrica de pérolas, além do setor de vendas. Ficamos encantados com tudo aquilo.

A história daquelas pérolas cultivadas no interior das ostras é algo de fenomenal, que os japoneses criaram através dos tempos e representa um aspecto de sua cultura. Sem dúvida, é algo emocionante. A seguir, fomos para Osaka, onde pudemos ver uma grande cidade do Japão, possivelmente, a segunda maior depois de Tóquio. Foi lá em Osaka que aconteceu de sermos abordados, isto é, cercados pelo pessoal da Perfeita Liberdade, algo parecido com uma religião, onde o próprio patriarca lá estava. Ele queria, por razões deles, que nós fossemos visitá-lo, quando então nos mostraria tudo aquilo que a Perfeita Liberdade tinha realizado não só no Japão, mas também no Brasil.

Cercado pelo Eduardo, um nissei que tinha ido ao Japão para ajudar o chefe da religião, resolvemos ir. Tomamos o carro dele, nós três, e fomos. Chegamos depois de cerca de 30 minutos ou algo mais, e ficamos encantados de ver tanta coisa bonita. Existia no lugar até uma torre, de formato estranho, construída para se orar em seu interior. Havia um elevador, dentro da torre, que nos conduziu até lá em cima, de onde pudemos ver com o luxo com que todos por lá conviviam. Vimos, assim, toda a cidade de Osaka, ouvindo sempre histórias sobre os trabalhos da Perfeita Liberdade.

Todos cercavam o poderoso chefe, que era quem conduzia toda a conversa. Serviram-nos um jantar super especial, com cerca de 20 pratos importantes, que eram servidos de prato em prato. Tinha tudo aquilo de especial que queríamos no Japão. Depois de conversar muito com eles, apesar das nossas dificuldades em falar a língua japonesa, voltamos felizes.

Durante anos, enviei cartões de fim de ano àquele pessoal, até que o chefe morreu, recebendo, de igual forma, seus outros cartões.

***

Outra vez, em Osaka, fomos a um bom restaurante, onde descobrimos que eles forneciam sashimi de baiacu, um peixe que havia muito no Brasil, mas que é altamente venenoso. Por alguma razão que desconheço, no Japão, sabiam preparar esse peixe, para comê-lo como sashimi. Naquela ocasião, um de nós perguntou se deveríamos comer aquele peixe.

– Sim…, não…, sim…, não… – foram as respostas.

Ninguém podia decidir a respeito. Até que decidimos comê-lo. Se o estavam fornecendo, seria com bom grau de responsabilidade. O restaurante era de alto luxo, de forma que não deveria representar nenhum perigo.

Depois de pouco tempo, chegou o sashimi de baiacu. Todos nós o olhamos, com muito cuidado. Era tudo em cor branca, quase de forma transparente. Veio com pedaço de limão cortado, de forma que todos nós resolvemos comê-lo.

Peguei o meu pedaço de sashimi, com muito cuidado, joguei um pouco de suco de limão nele, e, com muita apreensão, por mim e por todos, comi-o. O gosto daquele pedaço era diferente, como se amortecesse a minha língua. No entanto, era possível, e até gostoso, comê-lo.

– Comi o sashimi de baiacu. É engraçado – afirmei – porém, continuo vivo. O pedaço é algo delicioso, embora me parecesse algo estranho – disse-lhes.

Os outros riram, mas também comeram. Depois, aquilo foi objeto de muitas comemorações, naquele restaurante rico em Osaka.

Posteriormente, fomos a Hiroshima, uma cidade que queríamos conhecer, pois tinha sido alvo da bomba atômica durante a II Guerra Mundial. Era uma cidade moderna, com muitas coisas novas. Gostamos dela, embora não fosse aquilo que nos atraísse. Vimos aquela construção, parecendo uma igreja, semidestruída pela bomba de 1945, preservada ainda, como dramática recordação.

– O que acontecia com aqueles seres humanos quando resolveram jogar a bomba atômica em Hiroshima? E, mais ainda, porque jogaram outra bomba atômica na cidade de Nagasaki, alguns dias depois? Quem se responsabilizaria pela matança, sem qualquer sentido, de mais de um milhão de seres humanos, sem qualquer razão aparente? Será que qualquer guerra justificaria tal massacre de tantos seres humanos?

Sobre o Japão, muitas coisas poderiam ser ditas. Por exemplo, fui um dia visitar uma escola, onde se formavam advogados, juízes e promotores, onde era extremamente difícil ingressar. Lá, pude ver como eram rigorosos no tratamento com os alunos, durante dois anos. Depois, pude ir aos tribunais, para ver tanto o Supremo Tribunal, assim como o Tribunal da Família, e conversei muito com os juízes locais, sempre muito atentos.

De qualquer forma, a ida ao Japão me ajudou a formar uma ideia melhor do que era aquele país, seu povo, suas diversões, seu trabalho, seus pontos positivos, outros negativos, suas dúvidas, suas certezas, enfim, todos os aspectos que nos tocaram. Em Tóquio, por exemplo, andei muito de metrô, coisa inexistente no Brasil naquela época. Tudo diferente do que conhecia a respeito. Tudo era rápido e tudo era possível. Fazer compras, de igual forma, era fácil.

Fomos visitar, a pedido da Associação Latino-Americana, a televisão japonesa, enorme, onde tudo se fazia, e onde a mesma era colorida, diferente do Brasil, onde a transmissão ainda era em branco e preto. Finalmente, fomos a um jardim enorme que existia dentro da cidade de Tóquio, e, no meio dele, ficamos a pensar que havia outra cidade, ao redor daquele regato perdido, dentro do mato, longe e afastado dos grandes centros, com águas do carvalho, caindo lentamente, a matutar com o tempo. Naquele lugar, nada se ouvia dos ruídos de uma grande cidade como Tóquio, parecia que estávamos distantes, apesar de o jardim estar dentro daquela metrópole.

Posteriormente, me despedi dos meus parentes e amigos, passei por Los Angeles e retornei ao Brasil, feliz com tudo aquilo. O mais importante que consegui foi ter perdido o medo dos japoneses. Por isso, minha ida ao Japão foi algo positivo, sobretudo uma grande lição sobre a própria vida.

Escrevi, depois, vários artigos sobre os problemas existentes entre os dois países, alguns dos quais foram publicados no Jornal Paulista, de São Paulo, no qual sustentava a ideia de que os nisseis de hoje deveriam ter maior ação dentro das empresas de capital japonês, falando sobre a indústria e comércio do Japão, sobre a energia consistente no petróleo importado por aquele importante país, etc. Fui, igualmente, chamado até para participar num programa de televisão, em São Paulo, no qual pude agradecer a minha bolsa e dizer o que fui realizar naquele país.

De certa forma, senti que aquela viagem ao Japão foi fundamental para que me tornasse um homem independente, quer frente ao meu trabalho, quer frente aos japoneses, quer frente a meus familiares, quer como advogado profissional.

Capítulo VI

 

Pelo limiar dos novos tempos

 

36.

  

Em 1972, fui chamado para atender à Ishikawajima, que lideraria um grupo de empresas, para construir e entregar aquilo que se denominou de “Corredor de exportação”. A compradora seria o DNPVN, ou seja, o Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, órgão do então Ministério da Viação e Obras Públicas.

O Brasil era um país voltado para a exportação. Naquele período, isso estava se tornando uma grande realidade. Desenvolvera-se lentamente essa ideia, mas o país estava se tornando efetivamente um grande exportador. Do contrário, diziam, não seria possível controlar a inflação e, consequentemente, não viria a ser um país mais desenvolvido.

Para ser um bom exportador, muitos itens se tornaram indispensáveis. O primeiro deles era a necessidade de escoar a produção por meio de uma frota composta por muitos navios. Para isso, o Brasil havia já instalado três grandes estaleiros, alem de outros três, de nível menor, quanto às dimensões.

Outro item importante era a quantidade de estradas no país, que permitissem transportar as mercadorias exportáveis para portos nacionais. Se não tínhamos uma boa malha ferroviária, tínhamos caminhões para cumprir esse objetivo.

Finalmente, dentre outros itens, ficaram as faltas de equipamentos adequados para transferir rapidamente todas as cargas trazidas do interior. Para isso, eram necessários portos melhores e, sobretudo, de equipamentos que permitissem tal retirada dos caminhões e o carregamento nos navios. Resolveu-se inicialmente realizar esse trabalho em três localidades: Santos, em São Paulo, Paranaguá, no Paraná, e Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

Veio do Japão um grupo de técnicos-engenheiros pra comandar todo esse trabalho. Eu fui promovido, quase sem saber, a advogado-chefe da equipe, fui ao DNPVN para negociar todas as questões que sobrevieram.

A Ishikawajima do Japão já havia trazido uma minuta dos contratos principais, que deveria servir de base para as negociações. De forma que iniciamos os negócios, acertando todos os passos. Honestamente falando, havia me formado em Direito há pouco tempo. Teorias, eu conhecia em linhas gerais. Não tinha, no entanto, a sabedoria, a experiência que se fazia necessária nesses momentos. Tive, contudo, a assistência imprescindível de um advogado, não oficializado no Japão, que deu todo o suporte ao trabalho desenvolvido aqui no Brasil, juntamente com o advogado auxiliar, igualmente importante, pertencente à C.Itoh. No entanto, quando começamos toda a discussão, ficou acertado que a redação seria em língua portuguesa e que eu seria o responsável jurídico pelo contrato. Nesse caso, a minha responsabilidade havia aumentado de forma substancial.

Não levamos apenas alguns dias negociando com eles. Penso que ficamos por mais de dois meses nesse trabalho. A parte da fabricação de máquinas e equipamentos foi de US$ 65.000.000,00 e a construção civil, com todos os demais custos, ficou em cerca de US$ 360.000.000,00. Não me lembro quantas empresas participaram dos contratos, quer para o descarregamento de caminhões ou de trens, de carga e descarga de mercadorias em navios etc., mas penso que não mais do que 30 empresas de grande vulto, dentro desse esquema.

De certa forma, sofrendo diariamente nas negociações com o pessoal do DNPVN e, posteriormente, em caráter interno, com o nosso pessoal, aprendi, pela primeira vez, como realizar um contrato de caráter internacional. Não foram um ou dois contratos, mas uma série de contratos, pois, além da parte de fabricação e entrega de máquinas e equipamentos, éramos parte importante na construção civil, de forma tínhamos de intervir em todas as operações. Toda aquela operação era de grande importância, pois o governo brasileiro queria aqueles equipamentos, com financiamento do exterior, ligados e funcionando nos locais previstos até o final do mandato do presidente da República. Tínhamos pressa de realizar tudo aquilo, e que tudo funcionasse bem, segundo o planejado.

Aprendi muito sobre os contratos internacionais e sobre o alcance da lei. O alcance de certas expressões contratuais, de quando e em que condições e propriedade daqueles bens passavam a ser dos adquirentes, das garantias diversas, etc. De certa forma, tive um grande curso sobre aulas de garantia pelos eventuais defeitos, sobre seguros, sobre tantos outros aspectos importantes tratados então. Quantas vezes, trabalhando naqueles contratos, eu cheguei a minha casa às três horas ou mesmo às quatro horas da manhã, com esforço para encerrar as questões pendentes em tempo útil. Uma vez, relembrando, às três da manhã, minha esposa telefonou-me, para saber se eu estava bem. Nós estávamos no escritório da C.Itoh. Quem atendeu ao telefone foi um daqueles advogados, que ficou profundamente chocado com o tom desconsolado e preocupado da minha esposa.

Tantos problemas surgiram durante a elaboração daqueles contratos, que o referido advogado mandou vir do Japão um tecido especial. Depois, ele o presenteou, não a mim, mas a minha esposa, quando tudo aquilo terminou. Aquela operação foi uma das coisas mais interessantes de que pude participar.

Em março de 1975, fui convidado a ir a Porto Alegre, para dali ir a Rio Grande, no estado do Rio Grande do Sul, para inaugurar uma daquelas unidades já entregues pelo então presidente da República. Viajei com os diretores e principais técnicos da empresa àquele local, e pude ver, maravilhado, tudo aquilo devidamente pronto, já funcionando. Fiquei emocionado, pois demonstrava a nossa capacidade de realizar aquilo que prometemos em toda a sua expressão.

Trabalhei depois em várias obras de grande vulto, para fornecer equipamentos importantes para várias siderúrgicas, para hidroelétricas e para outros tipos de trabalho.

Tínhamos, então, de resolver muitos dos problemas que surgiam, sobretudo dos incentivos fiscais, dos pagamentos de moeda nacional às empresas estrangeiras etc. Posteriormente, após muitas dificuldades, resolvemos questões sobre a denominada equiparação de produto nacional ao produto exportado, não só para os grandes compradores, mas também para várias empresas subjacentes. Várias e várias vezes fomos a Brasília, isto é, ao Ministério da Fazenda, para resolver os múltiplos problemas ligados à questão. Foram, de qualquer forma, momentos importantes para o desenvolvimento do meu trabalho como advogado empresarial.

***

Estava em reunião na Ishibrás, em fins de 1972, quando alguém me avisou que deveria atender com especial deferência a um dos diretores da NEC, por recomendação da diretoria. Resolvi as questões pendentes naquela reunião em curso, e saí de lá pronto para tal missão.

O diretor Hongo, que seria o responsável pela área financeira da NEC do Brasil, ali estava para tratar de uma questão pessoal. Era um senhor calmo, profundamente pacato. Cumprimentei-o e sentamo-nos à mesa. Depois, ouvi toda a sua história. Disse-me que era o diretor financeiro da NEC, com sede no Rio de Janeiro. Estava feliz com as coisas que lhe aconteciam aqui no Brasil. Foi quando recebeu, do Japão, a visita de uma moça, sua sobrinha. Depois de um almoço agradável, numa tarde de domingo, ele resolveu ir até aos cumes das montanhas, onde estão instaladas as antenas da NEC, para mostrá-las à sobrinha e a alguns convidados, quando aconteceu um acidente gravíssimo, no qual o engenheiro Hasegawa, ao seu lado, morreu subitamente na ocasião.

– Não entendi a questão. Quem morreu? – perguntei-lhe.

– Quem morreu foi o engenheiro Hasegawa, que estava comigo – respondeu-me ele.

– Conte-me melhor, como tudo aconteceu. Quem bateu no seu carro, o que aconteceu? – perguntei.

O diretor Hongo olhou-me, pensou um pouco, e disse calmamente:

– Estávamos subindo aquela montanha lentamente, em direção ao Cristo Redentor, quando, em determinado momento, apareceu um carro desgovernado, em nossa frente, descendo em grande velocidade. Ao invés de ele se desviar, e seguir o seu caminho, veio em cima de nós, batendo violentamente. Com o choque, o engenheiro Hasegawa, que estava ao meu lado, morreu quase instantaneamente. Foi algo de terrível! – disse-me angustiado.

Contou-me depois outros dados sobre aquele acidente, respondendo às minhas perguntas. Quem teria provocado o acidente seria um dos filhos de um importante empresário.

– Não sei o que poderá acontecer comigo, pois, afinal, fui envolvido em um acidente gravíssimo, no qual um dos engenheiros da NEC veio a falecer. Meu medo, agora, é saber como as coisas caminharão e o que teremos de fazer, para defender os nossos eventuais direitos.

Abri, novamente, toda a questão, para explicar-lhe os problemas jurídicos que teríamos de atender. Não poderíamos evitar a questão policial, pois existia uma morte. Continuando com toda aquela conversa, insinuei-lhe que teríamos de conversar com a outra parte, porque não tínhamos nada contra eles, desde que eles assumissem o risco, já que eles tinham criado tal situação. Se isso não acontecesse, não sei como as coisas se processariam.

– Em sua opinião, acha que será possível uma reunião com a parte contrária ou apenas com o advogado deles?

– Não sei. Teremos de ver isso. Com relação à questão, no entanto, poderei saber imediatamente, pois tomarei todas as providências necessárias – foi como me respondeu o diretor Hongo.

No final daquela manhã, marcamos outra reunião, na própria NEC, onde iríamos ver outros detalhes, importantes ao processo. Efetivamente, lá, não encontrei o diretor Hongo, de maneira que fui encaminhado a uma sala, onde me deixaram. Não havia ninguém, de forma que fiquei esperando. Logo depois, chegou uma pessoa, de alguma idade. Que me pareceu ser alguém importante.

Cumprimentei-o e lá fiquei esperando, enquanto ele arrumava as coisas, pois aquele, certamente, era o seu lugar de trabalho. Pouco após, chegaram então as pessoas com quem deveria entrar em contato, os quais me apresentaram àquele senhor idoso, que tinha ingressado enquanto eu os esperava. Era o diretor presidente da NEC do Brasil – Eletrônica e Comunicações Ltda. Foi excelente tê-lo conhecido, pois este se tornou solícito e, mais tarde, muito importante para mim, em outros aspectos. Depois daquilo, realizamos várias reuniões, inclusive fomos ao local do acidente e discutimos com o advogado da parte contrária, de forma que adiantamos toda a questão.

Após muitas gestões, a questão foi resolvida, de modo favorável ao diretor Hongo, sobre quem não recaiu nenhuma responsabilidade com relação ao acidente. Após terminar aquela questão, eles me convidaram para trabalhar na NEC do Brasil, no Rio de Janeiro, onde ficava a sede. Evidentemente, era benquisto por todos aqueles diretores. Redigi, então, atendendo a um pedido deles, uma carta, colocando os meus serviços à disposição daquela empresa, durante o turno da tarde. E foi assim que passei a trabalhar naquela empresa, onde fiquei por muitos anos. Meu trabalho, a partir de então, não foi fácil, pois as dúvidas sobre as questões industriais eram diárias, exigindo muito estudo de minha parte. De certa forma, não poderia fugir às minhas responsabilidades, pois advogados eles tinham, mas ninguém disponível para responder à diretoria local.

Além disso, afora o Hongo, o diretor de finanças, havia um contador local, o Yamashita, o responsável pela área fiscal, que diariamente me requisitava. E não bastava resolver os problemas; tínhamos de prestar, efetivamente, toda a forma concreta de defesa que se fizesse necessária.

Participei de inúmeras reuniões com membros de fiscalizações estaduais, municipais, federais, e de instituições estatais. Estudei de tudo, desde imposto de renda, ICM, IPI, e todos aqueles impostos, taxas e contribuições de variadas espécies diferentes para atender às necessidades da empresa. Fiz muitas defesas fiscais e recursos, os mais variados, para defender a NEC nas suas autuações. Reunia-me assiduamente com o João Maurício do Araújo Pinto, advogado fiscal contratado; tive outras tantas sobre questões trabalhistas com o Hirocê Pimpão; e, em muitas reuniões, tive de resolver problemas que surgiam, sem qualquer ajuda de outro especialista. Pude ser muito útil, em todos aqueles anos, à NEC do Brasil – Eletrônica e Comunicações Ltda.

Finalmente, eles resolveram mudar a sede para São Paulo, cuidando eu de toda a papelada jurídica para tal transferência. Tudo se deu bem. Antes, porém, quando o coronel Hervê Berlandez Pedrosa voltou do Ministério das Comunicações, onde foi secretário-geral, juntamente com o coronel Higino Corsetti, que tinha sido o ministro – tive de acertar tudo para que eles trabalhassem para a NEC. Tudo deu certo, dentro de todas as dificuldades de então.

A NEC era uma boa empresa, embora algo atrapalhada em sua maneira de realizar as coisas. Tive de ir até Guarulhos várias vezes para defendê-la, em todas as áreas. Fiquei, assim, conhecendo todo o pessoal que trabalhava naquela organização, em diversos setores.

Em realidade, posso dizer que fiz de tudo. Uma vez, atuei na compra de uma área grande de terreno, de cerca de 240.000 metros quadrados, perto de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Verificações jurídicas de toda espécie, recursos legais os mais variados. Fizemos de tudo para salvar e proteger aquela empresa no Brasil. Na NEC fui um bom advogado por vários anos. Mais tarde, com o ingresso no grupo Brasilinvest, transformaram-na em sociedade anônima. Em São Paulo, eles continuaram contando com a minha ajuda, primeiro na Av. Paulista, e, depois, em Pinheiros, até que tive de sair da empresa, em 1982.

Pensando hoje em todos aqueles trabalhos realizados para a NEC, fico imaginando quanto pude me desenvolver como advogado. De qualquer forma, foi uma empresa importante, que pude ajudar de mil maneiras diferentes, em parte, possibilitou o meu treinamento como advogado empresarial.

Em razão das atividades que exercia para a NEC, fui chamado para prestar assistência à NEC, à Anritsu, e a várias outras empresas. Recordo-me que tanto no caso da NEC, quanto da Anritsu, pude transformá-las de sociedades por quotas de responsabilidade limitada em sociedades anônimas, e, em ambos os casos, depois tive de refazer os documentos para retransformá-las em sociedades por quotas, em razão das necessidades das mesmas.

37.

 

O Brasil estava naquela fase a que denominamos de “milagre brasileiro”, em que tudo aquilo em que ele se metia parecia dar certo. Depois da revolução de 1964, houve um regime de austeridade, porém, nos anos posteriores, estávamos melhorando de forma evidente. Não só o Brasil estava bem, mas outros países, como os Estados Unidos e, principalmente, o Japão, os quais estavam querendo investir mais e mais em países em desenvolvimento.

O ano de 1971 foi formidável para mim, pelas inúmeras novidades que se apresentavam. Efetivamente, já atuava há cinco anos como advogado da Ishibrás, demonstrando certa segurança nos meus trabalhos advocatícios. Tinha participado ativamente do Congresso de Logosofia em Buenos Aires no primeiro semestre daquele ano. No segundo semestre, tinha realizado uma importante visita de mais de dois meses ao Japão, onde vi um país muito mais desenvolvido que o Brasil. De certa forma, aquele foi um ano de grandes transformações para mim, pois tive noção de que poderia realizar muito mais coisas no futuro.

No ano seguinte, 1972, foi um ano em que se constituiu a Associação Nikkei do Rio de Janeiro, com a qual, por influência de terceiros, acabei tendo alguns desentendimentos, depois superados. No primeiro ano da Nikkei, havia sido eleito membro do Conselho Deliberativo, importante naquela instituição, que deveria representar toda a colônia japonesa na área do estado do Rio de Janeiro. Posteriormente, em 1973, eles me elegeram como vice-presidente da mesma, inclusive para que colaborasse nos aspectos jurídicos para as atividades então previstas.

Ao ser eleito para aquele cargo, não me importei muito, pois pensava que era uma função sem maiores consequências para mim. Grande engano, pois as empresas japonesas locais, bem como a Câmara de Comércio e Indústria Japonesa do Rio de Janeiro, além do Consulado do Japão local, dando prestígio à Nikkei, convidavam-me para todas as atividades festivas, juntamente com o presidente da mesma, razão porque tinha muitas vezes de levar a Minako para tais atos. E, como disse antes, as atividades eram intensas. Tive de participar de inúmeras programações sociais por alguns anos, quando cheguei a conhecer a maioria dos que por ali apareciam naquelas festividades, inclusive, conheci, igualmente, os melhores lugares dentro da cidade do Rio de Janeiro, onde os eventos eram realizados.

Dentre os diretores da Ishibrás, além do Orlando Barbosa, diretor presidente executivo, que comparecia com alguma regularidade a tais atividades, uma presença que marcou muito os meus contatos, foi a do Yoshinobu Ohori, então diretor vice-presidente executivo da mesma. Eu conhecia o Ohori desde o inicio do meu trabalho na Ishibrás, em 1959, onde ele foi diretor iniciante, tornando-se depois um diretor poderoso, com a ausência do Taiji Ubukata. Na verdade, o Ohori era um canadense, mas que estudara engenharia no Japão, tendo sido enviado ao Brasil pela Ishikawajima. Ele era casado com a Atsuko, uma brilhante mulher, sem filhos. Sua intenção era a de permanecer no Brasil por tempo indeterminado, embora a maioria daquelas pessoas tivesse que passar alguns anos no país, devendo regressar após esse período. Entretanto, antes de se tornar diretor vice-presidente executivo, Ohori havia sido o responsável pelo setor jurídico, de forma que nos conhecíamos também por essa razão. Falando a língua portuguesa, sobretudo na pronúncia das palavras, demonstrava que era diferente dos demais diretores japoneses.

Numa dessas reuniões, num auditório, num dia no mês de setembro de 1973, promovida pela Associação Nikkei do Rio de Janeiro e pela Câmara do Comércio e Indústria Japonesa no Rio de Janeiro, todos nós estávamos concentrados para uma determinada atividade, preparando-nos para o almoço com vários discursos de diversas pessoas, quando alguém veio me chamar, dizendo que Ohori, que lá se encontrava, estava passando mal. Imediatamente levantei-me e segui o acompanhante, indo a uma sala ao lado, fechada, onde ele estava se contorcendo. Na mesma hora, após ver o que sentia, uma pessoa telefonou para o estaleiro e pediu ao médico local, Norman, para que viesse imediatamente dar a assistência médica necessária, no que levaria cerca de 10 a 15 minutos. Constatei que uma ambulância de pronto socorro já tinha sido chamada.

Reunidos ali, cinco ou seis pessoas, nos perguntamos o que deveríamos realizar para atender àquela situação emergencial. Ono, um dos mais experientes e conscientes naquela colaboração, afrouxou-lhe a gravata, retirou seu paletó, e deixou-o bem solto e, após ponderar um pouco, disse:

– Isso me parece que foi uma pressão alta. Já lhe demos um remédio para que se acalmasse. Não devemos mexer nele, sem a presença do médico, pois a situação poderá se complicar.

Entendi, então, que uma das formas de ajudar a um doente naquelas circunstâncias é não movimentá-lo, isto é, deixá-lo calmo, respirando livremente, até a chegada do médico.

Logo depois, o Norman chegou. Examinou Ohori com o devido cuidado, compreendendo, logo no início, a gravidade daquela situação. Ohori tentava responder às suas perguntas. Viu seus olhos, mediu sua pressão, tudo dentro da maior calma. Depois, até utilizou algumas palavras em língua japonesa, para que Ohori lhe confirmasse, quanto às suas perguntas. Posteriormente, explicou-me que a situação de Yoshinobu Ohori era gravíssima. Ele poderia até não ter ideia de como estava, pois tinha sofrido um início de comoção cerebral. Poderia estar com dificuldade de falar em língua estrangeira. Era para atenuar as suas explicações que ele perguntava, em língua japonesa, onde Ohori sentia dor.

Deu-lhe uma injeção de algum remédio. Nesse momento, chegou a ambulância do pronto socorro, com cujos médico e enfermeiro ele trocou algumas ideias, concordando que o levassem com o maior cuidado. Junto, seguiu o Norman, para o hospital, acompanhando-o.

A reunião na Nikkei continuava naquele momento, porém, nós saímos para ir ao hospital. Tudo faríamos para ajudá-lo a superar aquela dificuldade que estava enfrentando. Chegamos, dentro do pouco tempo, a um pequeno hospital, mas bem aparelhado, o Pró-Cardíaco, no bairro de Botafogo, onde Ohori foi internado. Foi imediatamente atendido por um grupo de médicos e enfermeiros e colocado sob a ação daqueles instrumentos que lá asseguravam a vida daqueles doentes. No entanto, ele não estava bem, de forma que logo depois começou a tossir. Tossiu não uma vez, mas dezenas de vezes. Sofreu todos os tratamentos possíveis naquela circunstância até que, em determinado momento, foi dito que ele estava morto. Logo depois, chegou sua esposa, Atsuko Ohori, e depois vieram o Orlando Barbosa, o almirante Ayres Pinto da Fonseca Costa, o almirante Aniceto Cruz Santos, além de todos os diretores japoneses da Ishibrás.

Aquele falecimento foi uma coisa dramática para todos nós na cidade do Rio de Janeiro, pois a Ishibrás já era, então, uma indústria importante. Recentemente, tinha feito investimentos de grande porte para aumentar o próprio estaleiro naval, inclusive com a abertura do novo dique seco, que comportaria navios pelo menos várias dezenas de vezes maiores do que os então fabricados. Além disso, a construção de novas oficinas aumentou enormemente a capacidade daquele estaleiro para grandes obras no futuro. Igualmente, a abertura de uma grande indústria de base em local próximo a Campo Grande, ainda dentro do estado do Rio de Janeiro, aumentava consideravelmente toda a capacidade daquela Ishibrás.

No dia seguinte, tivemos aquele cerimonial, em grande estilo, para enterrar o Yoshinobu Ohori. Foi o Orlando Barbosa quem orientou, calma, porém sentidamente, todas as ações. Foram enviadas flores em grande quantidade naquele memorável evento.

Posteriormente, fui nomeado advogado da viúva, Atsuko Ohori, para cuidar do inventário de Yoshinobu Ohori. Efetivamente, o mesmo tinha bens no Brasil e no Japão, embora mantivesse seus familiares no Canadá. Depois de estudar tudo, resolvemos que, com relação aos bens que possuía no Brasil, faríamos inventário judicial, propondo que a mãe dele, que vivia no Canadá, desse à sua esposa a meação que lhe competia, apenas para facilitar o inventário judicial. Quanto aos bens do Japão, ficou acertado que tudo seria resolvido posteriormente, de acordo com a vontade da Atsuko Ohori.

Após aquele falecimento do diretor vice-presidente executivo, Yoshinobu Ohori, muitas outras coisas aconteceram na Ishibrás. Veio lá do Japão, dentre outros, o próprio Taiji Ubukata, não para preencher um cargo de diretor, pois ele era pessoa importante na sede central, mas sim para efetuar grandes trabalhos aqui no Brasil. De fato, talvez fosse uma sina de Taiji Ubukata, mas sempre que ele se deslocava para uma determinada área, tudo lá se tornava um exemplo de como as coisas deveriam vir a ser. Aqui no Brasil, com a vinda dele, a Ishibrás tornou-se realmente o ponto alto dos investimentos japoneses na indústria de construção naval.

A Ishibrás desenvolvia muitos trabalhos, então, em todas as áreas, e possuía muitos dividendos em todos os setores. De certa forma, a Ishibrás tornou-se um exemplo para todas as demais indústrias existentes. Tão feliz ele foi em sua gestão que foi eleito ao cargo de presidente da Câmara do Comércio e Indústria Japonesa do Rio de Janeiro, a qual se tornou o centro da comunicação japonesa na área do Rio de Janeiro, até que, em 1979, ele retornou ao Japão, não por regresso comum, mas para ser o próprio presidente da Ishikawajima japonesa, em razão das múltiplas dificuldades que aquela empresa estava enfrentando.

Com sua luta insana para soerguer aquela importante indústria no Japão, Taiji Ubukata teve de tomar múltiplas atitudes para tanto. Conseguiu reerguê-la, após o que, já em meados da década de 1980, ele sofreu uma grave doença, atacado posteriormente por um câncer, que acabou matando-o. Com relação ao Yoshinobu Ohori, tive que trabalhar muito para realizar seu inventário, composto por vários apartamentos e de um terreno no Espírito Santo, além de outros bens. Posteriormente, durante muitos anos prestei assistência jurídica a Atsuko Ohori, quanto aos seus bens e à locação dos mesmos.

***

Fiz de tudo, então, desde a compra e venda de imóveis, inclusive de incorporações de grande vulto, todas as atividades relativas às empresas ou negócios, até as hipotecas, penhoras, quase todos os tipos de ações, inclusive inventários, execuções, consignatárias, trabalhos com associações diversas etc.

Como empresa, a Ishibrás tinha necessidades muito amplas, mas tudo era dividido, de forma que a mim cabia cuidar da parte de sociedades anônimas, ao Arthur, cuidar dos contratos especiais em geral, ao Hayao, determinados contratos, ao Kassae, seguros da sociedade, cabendo ao Ogino cuidar de tudo, chefe que era daquele setor jurídico. Quanto às questões trabalhistas, por causa da sua natureza, eram confiadas a escritórios particulares, especializados na matéria. De igual forma, quanto às questões fiscais, de acordo com vários ramos, eram entregues a escritórios independentes. De certa forma, era assim que funcionava o setor jurídico da Ishibrás naquela época.

Outros advogados ingressaram depois de mim, para auxiliar nessa tarefa de manter a Ishibrás sempre rigorosamente limpa, na parte legal. Pensando bem agora, não bastava a Ishibrás estar limpa, mas tinha de estar limpa documental e oficialmente, em todos os sentidos. Não sei se havia sido ideia do Ogino, provavelmente teria sido gerada pelo trabalho do Taiji Ubukata, conjuntamente com o Orlando Barbosa, influindo nesse sentido, pois foram os sustentadores de todo o trabalho jurídico durante a fase do Estaleiro Inhaúma.

O setor jurídico, entretanto, tinha o seu lado alegre ou que se poderia dizer, o lado sentimental, na pessoa da Kishida, bem como das secretárias que lá trabalharam por algum tempo. Quanto à Kishida, por exemplo, formou-se em Direito comigo, na Universidade do Brasil, começando a trabalhar naquele ambiente.

Não sei por quanto tempo a Kishida por lá ficou. Provavelmente, depois de dois ou três anos, disse que iria se casar e pouco tempo depois, desapareceu. Foi, no entanto, uma figura de proa dentro daquele setor. Seu marido era um arquiteto, que tinha uma casa de luxo, aberta, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas. Fui convidado para o casamento, mas, perdi os dados da Kishida, desde então.

Outra figura importante, dentre outras, foi a de uma secretária, que era alegre e bem disposta, muito dada com todos naquele setor jurídico. Em todas as marchas e contramarchas que por lá apareciam, ela estava sempre com sua alegria esfuziante. Dava-se extremamente bem com o Arthur, nos braços de quem saía para almoçar ou para ir embora, sem qualquer maldade, apenas na qualidade de grandes amigos, sempre rindo de tudo. Contudo, dava-se bem com o Ogino, bem como com o Hayao e Kassae, ao que me lembro agora. Não sei por que, no entanto, alguns anos depois, ela saiu, deixando-nos com uma sensação de que alguma coisa importante ficou faltando em nosso meio.

Na primeira fase do meu trabalho, custei a aprender as questões ligadas às sociedades anônimas. Aprendi-as com o tempo. Depois, no entanto, não podia mexer nelas por conveniência da empresa, de forma que, com os anos, a minha capacidade de ser um advogado completo, diminuía. Eu lamentava tudo aquilo por sua natureza.

Não foram uma nem duas, as vezes que pensei em sair da Ishibrás, para iniciar os meus trabalhos de advogado independente. No entanto, as dificuldades impediam-me de tomar as decisões. Não bastava querer uma coisa tão importante, teria mesmo de ir falar na diretoria, para ver se conseguiria aquilo. Contudo, faltavam-me decisão e força de vontade, nesse sentido.

– Eu poderia viver só com os meus rendimentos, se me tornasse um advogado independente? – me indagava.

– Poderia… Talvez não pudesse… – eram as minhas respostas. – Ficar na Ishibrás, por outro lado, garantiria esses recursos que eram tão fundamentais para a minha sobrevivência. Não poderia, por outro lado, jogá-los ao espaço, para contar como algo seguro, eis que poderia ser insuficiente. Tantas vezes, vi colegas deixarem a Ishibrás e depois constatarem que sua atividade independente não dava certo, sofrendo muito em consequência.

Queria ser um advogado independente. Não sabia, no entanto, se poderia fazê-lo, pois não possuía, então, a experiência necessária para isso, e assim tudo se complicava. Passei desse modo não apenas meses, mas anos de indecisão, a respeito de como me libertar da Ishibrás, para me tornar um advogado por conta própria. Realizava, então, além dos trabalhos jurídicos da Ishibrás, nas denominadas “horas vagas”, muitas ações judiciais e cuidava de outros assuntos jurídicos que surgiam. Não eram causas grandes, mas fazia inventários, execuções, consignatárias, dava assistência na compra e venda de imóveis, regularização e constituição de empresas, fazendo um pouco de tudo. Eram questões importantes, porém insuficientes para que me capacitassem para trabalhar por conta própria.

Nessa época, surgiu a oportunidade de ir ao Japão. Talvez tivesse isso aberto à possibilidade para começar a pensar nessa importante questão.

Depois que retornei da viagem, em 1971, comecei a trabalhar para a Okura do Brasil, um pequeno trading, que surgia no Rio de Janeiro. Uma das primeiras questões, que a referida empresa me incumbiu foi verificar o sentido da denominada cláusula “red clause”. Fiquei sem poder responder na hora, simplesmente porque não me lembrava do que se tratava. Eu disse, então, que precisava de tempo, para rever o seu conceito, pois a questão tinha sido objeto de meu estudo muito antes, não podendo dar o meu parecer.

Na verdade, nada existia de errado naquele estudo, pois hoje responderia que não me recordava bem de que se tratava, e que por isso precisaria de tempo para rever tal questão. Entretanto, tinha outro conceito de como um advogado independente deveria ser, equivocadamente.

Pelas circunstâncias daquela época, pensou-se em abrir uma nova empresa, independente da Ishibrás, para realizar grandes projetos no Brasil, com a participação principal da Ishikawajima do Japão, voltado principalmente para a fabricação de produtos industriais. Representaria a criação da Ishikawajuma-Harima do Brasil Ltda., e que contaria com quase toda a parte técnica chefiada por especialistas japoneses. Estaleiros navais era a parte essencial da Ishikawajima, mesmo no Japão, mas os grandes lucros vinham da parte de fabricação de peças industriais.

De forma que a questão avançou de tal modo que a antiga Ishikawajima do Brasil Indústria e Comércio S.A. foi transformadaem sociedade limitada, com muitos sócios, pessoas físicas, representados pelos chefes especializados, inclusive para que eles pudessem vir ao Brasil, não obstante a legislação nacionalista que existia. E assim formou-se a IHB, uma empresa que teria que vencer no Brasil.

Aquela IHB tinha condições de fornecer trabalhos especializados a cerca de 20 áreas importantes, como, por exemplo, projetar, mandar construir e entregar altos-fornos para siderúrgicas, comportas e outros itens importantes, para hidroelétricas, pontes, locomotivas e montagens de pequenas e grandes indústrias. Tal empresa realmente realizaria trabalhos de grande vulto no Brasil daquela época. Não trabalhava sozinha a IHB, pois teria ajuda essencial da Ishikawajima do Japão, além de imprescindível auxílio da Ishibrás.

Dentro desse esquema, realizamos os trabalhos com o DNPVN – Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, sobre algo importante que falaremos separadamente, iniciando uma série de outros trabalhos na época, para fornecer equipamentos tecnológicos para a Companhia Siderúrgica Nacional, para a Usina Siderúrgica de Minas Gerais – Usiminas, bem como para a Companhia Siderúrgica Paulista – Cosipa, além de outras indústrias, daquela época, como Tubarão, e outras obras em todos os lugares.

Eu era o advogado da Ishibrás envolvido em todos esses projetos. Em parte, devido ao fato de falar a língua japonesa, com certa familiaridade, e ser um advogado ágil, eles gostaram de mim, de forma que vieram perguntar se não concordaria em mudar-me da Ishibrás para ingressar na IHB.

Foi quando pude, pela primeira vez, criando muita coragem, falar àqueles diretores: – Não pretendia ficar na ishibrás como empregado por muito tempo… – comecei dizendo. – Não entendi – contou-me o diretor, todo sorridente. – Poderia explicar-me melhor?

– Concordaria com minha transferência para IHB, desde que fosse para trabalhar por meio expediente. A parte restante ficaria para atender a outros clientes, pois minha intenção, como estava dizendo, era sair para abrir um escritório independente de advocacia.

Falei todas essas coisas com muito cuidado, com muita afeição, para não criar mais problemas, além do que já previa.

– Acho isso difícil – disse e o diretor, algo preocupado.

– Eu sei disso, por isso estou lhe propondo – expliquei-lhe. – Gostaria, portanto, que a diretoria considerasse todo o meu passado para conceder-me tal benfeitoria.

Saí de lá sem saber em que pensar. Contudo, matutava:

– Eles precisavam de mim. No entanto, achava que eles não aceitariam a minha proposição. De qualquer forma, estava satisfeito por ter tomado a decisão importantíssima de falar com um membro da diretoria sobre tudo aquilo, como sempre havia sido objeto do meu pensar, por longo tempo.

Se eu já havia ficado contente com isso tudo, qual não foi a minha surpresa, quando alguns dias depois, o tal diretor em questão chamou-me:

– Normalmente, jamais aceitaríamos esse tipo de proposta – disse-me. No entanto, no seu caso, em particular, a diretoria resolveu aceitar, porque já existia um precedente, que era o caso do Elbe Hayao, que, efetivamente, só trabalhava meio expediente, desde que ingressou, pois, na outra parte do dia, trabalhava no consulado japonês.

– Sei – disse. – Quer dizer que trabalharei apenas meio expediente? – Foi como conclui aquela conversa, espantado e maravilhado ao mesmo tempo.

Na época, fiquei contentíssimo com tudo aquilo, pois tudo estava saindo melhor do que eu poderia esperar.

38.

 

Custei, depois que me tornei livre profissionalmente, a ajeitar as coisas relativas ao meu trabalho. Queria aquela liberdade para trabalhar com independência; no entanto, estava desacostumado.

Tinha arranjado um trabalho junto à Okura do Brasil. Katsuragawa, gerente-geral daquela empresa lá estava, pedindo a minha ajuda. Foi bom o trabalho que realizei naquela empresa, por cerca de 14 anos, por todas as razões.

Além disso, algum tempo depois, iniciei meu trabalho na NEC do Brasil, com sede ali perto da Praça Mauá. Era uma grande empresa, com capital japonês nos seus primórdios, procurando se fixar aqui no Brasil na fabricação de aparelhos de telefonia e outros equipamentos relacionados.

Um dia, em meados de 1973, reuni-me com o Wantuil de Paula Coelho, advogado brilhante, que conhecia desde a década de cinquenta, e com o Chagas Freitas Filho, para, juntos, abrirmos um escritório de advocacia. Este último, um advogado formidável, possuía uma sala na Av. Rio Branco, que foi um belíssimo escritório.

Muito animados, fomos, nós três, comprar móveis usados para aquela sala, depois de acertada sua localização. Quero dizer, o escritório ficou pronto. Tínhamos até um telefone, de forma que tudo deveria caminhar. No entanto, por alguma razão que desconhecíamos, não andou como gostaríamos. Creio que ficamos por cerca de seis a oito meses nesse passo. Admiti, no início, um rapaz, para funcionar como “boy”, para me atender no escritório. Depois, contratei uma moça bonita, a Tereza, uma advogada pernambucana, que fugiu do Recife, deixando seu noivo, por questões sentimentais sérias, além de ter deixado seu pai, que lá morava, correndo para a casa da mãe, que vivia separada dele, aqui no Rio de Janeiro. Digo que ela fugiu, porque tinha brigado com seu noivo, depois que descobriu que ele tinha outras amizades femininas. Veio de lá profundamente sentida, disposta a esquecer tudo, daquela importante cidade pernambucana. Posteriormente, por influência de sua mãe, conhecida do meu amigo, o comandante Lauro Monteiro de Barros, me foi sugerido se não gostaria de utilizá-la como advogada iniciante.

Nessa época, havia chegado à conclusão, de que aquele lugar não funcionava para mim, em razões de ser um lugar relativamente simples. Por isso, resolvi conversar com meus dois colegas para dar uma solução à situação existente. No final, eles também resolveram dar um fim naquela sociedade de fato, eis que cada qual, por suas qualidades, continuaria atuando como advogado independente.

Procurei, então, um escritório de nível melhor, num edifício mais novo. Não precisava ser grande, pois se destinava a mim. E o decoraria adequadamente, de forma que os empresários pudessem visitá-lo.

Descobri uma sala na Av. Almirante Barroso nº 63. Era pequeno o lugar, embora fosse muito bonito, pois tinha uma grande janela que dava uma visão de vários navios entrando e saindo, além da imagem de Niterói do outro lado da baía, sem falar no belíssimo mar ali perto.

Coloquei um tapete bonito, de cor verde-musgo, além de decorar a parte superior, com um bonito painel, escondendo o aparelho de ar condicionado na janela. Além disso, adquiri uma mesa grande, nova, de quase dois metros de comprimento, outra, de tamanho menor, poltronas de luxo, para mim e para os clientes e outras menos luxuosas. Adquiri, além disso, uma estante grande, de quase três metros de comprimento por cerca de dois de altura, feita em mogno lustrado. Instalei também uma mesa de secretária, com cadeira de luxo, máquina de escrever e telefone, para o funcionamento daquele escritório. Com os vidros em cima das mesas e da placa, no lado de fora do escritório, além dos quadros nas paredes, o lugar se tornou de elevado padrão segundo nosso ponto de vista naquela ocasião. Agora, estava em condições de trabalhar.

Imprimi meus papéis timbrados, de maneira que, em dois meses, mais ou menos, estava com tudo pronto para funcionar, em alto estilo. Tinha ideia, no início, de inaugurar aquele escritório, chamando os meus clientes, reais ou potenciais. No entanto, por outras razões daquela época, tal inauguração acabou não acontecendo.

Meu relacionamento com o Wantuil e com o Chagas Filho continuou, como antes, dentro do melhor espírito. Wantuil aparecia, com alguma frequência, naquele escritório, para dar-me instruções sobre como deveria atuar nesta ou em outra instância.

Tereza, como dito antes, foi a advogada que trabalhou naquele escritório por cerca de oito meses. Era uma moça branca, de gestos bonitos, linda, de verdade. Falava de forma engraçada, como todos os nordestinos.

– Alô, diga… – ingressava ela, ao atender ao telefone que tocava.

De vez em quando, ela recebia seus colegas, lá de Recife, e que eram do mesmo nível de classe, superior. Até que, num determinado dia, ela surgiu, dizendo que teria de ir a Recife para uma atividade importante.

Ela foi com todo o meu carinho. Foi, mas não podia voltar, pois, chegando lá se encontrou com seu ex-noivo, que lhe dedicou todas as atenções e propôs até que se casaria com ela, de imediato, se fosse a pretensão dela. Assim, colocado em novas condições, ela telefonou, dizendo o que tinha acontecido.

– Dr. Okada, gostaria de dizer-lhe que lamento muito a minha saída do seu escritório. Chegando aqui em Recife, encontrei com meu ex-noivo, que vem me cercando de todas as formas. Tantas foram as suas ofertas que acabei resolvendo casar-me com o mesmo nesses próximos dias. De forma que terá que me dispensar do seu escritório de advocacia.

– De minha parte, – respondi-lhe – não lamentaria a sua sorte, pois era de certa forma, o seu futuro que está se esboçando, como você queria. De forma que te desejo felicidades.

Entretanto, se ela deixou o meu escritório, não se desligou de mim, de forma que, uma vez por ano, passou a vir a Rio, ocasião em que sempre me visitava. Seu marido seria depois deputado estadual e, posteriormente, deputado federal, de forma que foi viver em Brasília durante algum tempo.

Foi também naquele escritório que contratei a Atsuko Odawara, uma secretária formidável, que trabalhou comigo por aproximadamente 15 anos, sempre de forma eficiente. Uma boa datilógrafa, cuidou da parte contábil do meu escritório por todo esse tempo.

A Atsuko era uma garota diferente de todas que eu conheci. Era uma bela garota, mas que mantinha um grande silêncio, com todo mundo. Era extremamente honesta, em todos os sentidos. Morou com seus pais, em Nova Friburgo onde eles tinham um terreno, mas depois, o pai faleceu, tendo deixado um irmão e uma irmã, além de sua dedicada mãe, parecida com aquela filha. Depois disso, passou a viver com a mãe.

Naquele escritório, tive várias pessoas que trabalharam comigo através dos tempos. Vieram, não sabiam, na maioria das vezes, o que fazer, ou como fazer. Aprendiam, tornavam-se bons profissionais e depois saiam, por variadas razões.

Lembro-me, principalmente, da Maria de Lourdes, que trabalhou por alguns anos. Era uma advogada brilhante, por seus méritos. Posteriormente, surgiu a Sheila Primo de Mendonça, uma excelente advogada, que ficou até se casar.

Fiz de tudo no meu trabalho. Fui aprendendo, aos poucos, na medida em que as coisas iam acontecendo. Melhor dizendo, no início, tinha medo de não atender aos nossos clientes como deveria. À medida que aprendia, fui avançando em meus trabalhos em todas aquelas áreas.

***

Depois de ter atuado cerca de dois anos como advogado autônomo, fui chamado para atender a Construtora São Conrado, num contrato excelente, que seria elaborado com várias empresas de grande porte de então, como o Sérgio Dourado e a Carvalho Hosken, para construção de edifícios residenciais.

Como já trabalhava no mesmo edifício onde a São Conrado tinha a sua sede, tudo foi facilitado. No entanto, o que se buscava era realizar um grande contrato, por meio do qual a São Conrado trocaria o terreno no bairro de São Conrado, de sua propriedade, por centenas de apartamentos de elevado estilo, com a construção, pelo outro grupo, de nove prédios de alto luxo, de 25 andares cada. Seria a construção do denominado Village São Conrado.

Para tanto, havia chegado do Japão ao Brasil um grupo de técnicos da Toyo Menka Corporation, além de técnicos da Fujita Construction, donas da São Conrado brasileira. Era um trabalho dos mais importantes, pois a ideia inicial era de a própria empresa construir os prédios aqui no Brasil. Como as circunstâncias não favoreciam essa prerrogativa, decidiram entregar as obras a outras empresas que, no Brasil, se destacavam no setor de construção e vendas.

Todos nós conhecíamos aquele terreno excelente, localizado no ponto nobre de São Conrado. E, quanto aos apartamentos que lá seriam construídos, na sua maioria de quatro ou cinco quartos, com salas grandes, alguns com pequenas piscinas dentro de cada unidade; representariam, na verdade, verdadeiras mansões, tamanho o luxo que esses apartamentos teriam.

Para negociar tais questões, ampliou-se a área onde a São Conrado tinha o seu escritório. Fui lá encontrar cerca de vinte pessoas incumbidas daquela transação. Na realidade, a São Conrado tinha o seu próprio advogado, porém tratava-se de um causídico que há longa data atendia aos concorrentes, de forma que pairava sempre a dúvida se ele não se inclinaria para o lado deles. Daí o fato de terem me contratado, para dar assistência aos interesses da São Conrado, levando-se em conta, não obstante, as opiniões do advogado em questão.

Não sei de quantas reuniões tive que participar com minha assistência jurídica, quanto ao que o texto proposto sugeria. Contudo, os japoneses compreendiam todos os riscos que as questões comportavam. Nem sempre, entretanto, eles concordavam com tudo aquilo. Aquele advogado sempre paciente buscava sempre fórmulas para acertar aquele contrato.

O próprio diretor presidente da empresa participava daquelas reuniões, visando preservar os direitos da vendedora, pois toda a sua atividade se concentrava naquelas negociações. Não se tratava de realizar uma ou duas reuniões para acertar tudo, mas de dezenas delas, discutindo cláusula por cláusula. Penso, honestamente, que levei mais de dois meses discutindo, dia e noite, todas aquelas questões, para acertar aquela permuta tão importante para os dois lados envolvidos.

Não se tratava apenas de uma simples troca de documentos, mas do registro de várias questões imobiliárias em jogo, eis que os dois lados necessitavam de garantias, pois muitas das obrigações que ali se acertavam estariam ainda pendentes de cumprimentos futuros. Além disso, pelo lado da São Conrado, existiam os seus apartamentos, que seriam vendidos pela Sérgio Dourado, de forma que todos os demais detalhes tiveram de ser também negociados.

Estavam envolvidos também trocas e cumprimentos futuros, de obrigações que seriam cumpridas pelos adquirentes dos imóveis. De qualquer forma, estava feliz, pois estava atendendo, de forma absoluta, a todas as exigências dos japoneses. Concluo agora, depois que tudo terminou, que nunca faltei, quanto à assistência jurídica nas questões discutidas.

Construiriam mais de 900 apartamentos, todos grandes, como dito antes, de muito luxo, em São Conrado. Fiquei imaginando quem compraria aqueles apartamentos, tão luxuosos, para neles morar.

39.

 

Um belo dia, no final de 1974, resolvemos viajar até o sul do país. Iríamos para São Paulo e de lá seguiríamos até Curitiba. Posteriormente, alcançaríamos Santa Catarina, depois o Rio Grande do Sul, sempre contornando o mar na ida e voltando, depois, sempre de carro, por outro caminho.

– Será que daria? Alguém teria feito essa aventura?

Na época, não tínhamos muito dinheiro, mas possuíamos carro e condições para ficar em barracas, acampando. De conversa em conversa, a coisa foi se assentando, até que tudo ficou pronto.

De fato, foram conosco, além de mim e da Minako, a Thais, a Denise, a Káthia, a minha mãe, que estava em São Paulo, além dos pais da Minako, a Rosa, o Kyozo, sua esposa Yaeko e seus três filhos, inclusive a menor, a Dinah, que ainda era um bebê, sem contar ainda que foi conosco o meu irmão Ferrúcio.

Iríamos, então, não só no meu carro, mas no da Rosa e do Kyozo, pelo menos três carros. Sairíamos daqui antes do Natal, de forma que veríamos todo o sul do Brasil.

Foi, talvez, uma viagem histórica, pois sem ela não teríamos conhecido o sul do Brasil. Pretendíamos percorrer cerca de 5.000 km de carro, computando uda e volta. Percorremos algo a mais.

– Como, no entanto, qualificar a viagem? – perguntei – De férias?

– Foi boa tal viagem, sem dúvida, pois aprendemos muito. De qualquer forma, gostamos da viagem – foi a nossa resposta, mais tarde.

Os carros, no entanto, saíram carregados com o material de acampamento. Na primeira parte, fomos a São Paulo, onde sofremos uma chuva violenta. Apanhamos todos que iriam para a viagem e de lá saímos.

A viagem para Curitiba foi, como se diz, um desafio, a estrada era boa, embora perigosa. Era uma paisagem bonita, com vegetação por todos os lados. Talvez o tempo, fim do ano, estivesse nos ajudando. Foi assim que chegamos a Curitiba.

Ao chegarmos ao camping de Curitiba, tudo foi momento de alegria, pois era muita gente, estimulada pelo que poderia acontecer. Fomos à cantina lá existente, jantamos, felizes com o acontecimento. Gostamos de tudo. Depois, fomos conhecer a cidade de Curitiba.

Em Curitiba, fomos descobrir como seguir a viagem. Tínhamos de ir até Paranaguá, inicialmente. Paranaguá era um lugar bonito, em que havia coisas lindas para se conhecer, inclusive uma ponte histórica em seu percurso.

Chegando a Paranaguá, fomos conhecer o porto, um lugar algo diferente, com suas belezas e seus lugares ruins, mas agradáveis. Ficamos uma noite em Paranaguá, depois seguimos para o sul. A nossa viagem ao Sul foi algo de belíssimo, pois havia muitas árvores, que quase não existiam aqui no Rio de Janeiro ou mesmo em São Paulo, como por exemplo, os pinheiros do Paraná, além de lindos campos verdejantes em Santa Catarina. De alguma forma, aquela viagem foi algo de sensacional por tudo que encontramos nela.

– Estávamos bem, durante a viagem? – indaguei-me.

– Sim, embora estivéssemos preocupados com a margem de tempo para fazermos todo o percurso e estarmos de volta ao Rio de Janeiro em tempo hábil.

Minha mãe estava bem, assim como a mãe da Minako. No entanto, era uma história engraçada presenciar as discussões de minha sogra com seu marido. De certa forma, foi assim, até chegar a Porto Alegre.

Antes de chegarmos a Florianópolis, fomos a Blumenau, onde ficamos por dois dias e acampamos próximo a um lago bonito, lá existente. De lá, prosseguimos e fomos até a outra cidade, Camburiu, um belíssimo lugar à beira-mar, em Santa Catarina. Ficamos por lá, num hotel, por uma noite, para conhecer todos os encantos daquele maravilhoso lugar.

Naquela região, antes de Florianópolis, lembro-me que o vidro do meu carro, um belíssimo Dodge, ano 1970, havia quebrado. O susto que levei foi enorme. No entanto, não houve maiores problemas. Tiramos todo pó de vidro e seguimos até a cidade seguinte, onde conseguimos trocar o vidro, e, então, tudo correu bem.

Conhecer Florianópolis foi outra emoção. Nunca esperávamos chegar àquela cidade naquela hora. Uma bela e enorme cidade cheia de aspectos curiosos. Várias partes dela se separavam, reunindo-se depois. Tivemos de atravessar toda Florianópolis, porque iríamos a um camping que ficava no outro lado da cidade. Mas acabamos gostando de lá. Depois, voltamos para o continente, para vê-la em todos os seus aspectos, inclusive para apreciar a ponte famosa “Hercílio Luz” e outros lugares daquela cidade, bem como as lindas praias que por lá existiam.

Tiramos muitas fotos, inclusive de manobras de barcos, fazendo evoluções dentro de um lago. Tudo aquilo agradou-nos muito.

– Será que um lugar como aquele não daria certo para uma obra como a Logosófica? – foram pensamentos assim que nos assaltaram quando por lá passamos.

Lembro-me até que fomos, um dia, almoçar num restaurante onde tudo era feito de camarão. Quero dizer, comia-se camarão sob todas as formas. Era algo de bom que existia. Depois, finalmente, comemos até uma sobremesa feita também de camarão.

Prosseguimos para o Sul, depois disso. Havia lugares lindos em Santa Catarina. No caminho, entramos na cidade de Garibaldi, lembrando-nos da famosa heroína de nossa história. Antes de chegarmos a Porto Alegre, fomos a um lugar que, para mim, parecia um sonho. A cidade de Torres. Nunca tinha visto um lugar tão bonito. Lindíssimo, era como passamos a nos referir a ele. Havia uma praia belíssima e armações de pedras enormes, formando uma muralha, onde as águas batiam. Um espetáculo emocionante.

Após isso, chegamos a Porto Alegre, onde esperava encontrar uma cidade bonita. Era, mas nem tanto, segundo impressões do momento. No dia seguinte, visitamos toda a cidade de Porto Alegre, agora mais florida, e fomos a Gramado que ficava a algumas horas dali. Tínhamos descido por toda a beira-mar. Agora, iniciávamos a subida. Chegamos a Gramado em meio a tantas coisas bonitas, como hortênsias e tantas outras flores e exuberante vegetação. A cidade de Gramado está situada na serra gaúcha, o clima é frio, no alto das montanhas. Segundo nos contaram, por lá se nevava de vez em quando. À medida que fomos chegando, mais e mais lugares bonitos iam aparecendo. De certa forma, lá em Gramado, tínhamos a impressão que havíamos chegado à Europa no inverno. Tudo era belíssimo, em todos os sentidos.

Perto de Gramado, existia outra cidade, provavelmente mais bonita ainda, denominada Canela, com uma belíssima cachoeira e muitas montanhas por toda a parte. Pela primeira vez, pude me acalmar e ver que as coisas iriam dar certo. Em Canela, acabamos ficando por cerca de quatro dias. Aquilo era, de certa forma, um paraíso. Todo o acampamento ficava no meio de um gramado lindo. Os campestres não eram muitos e tudo parecia ter sido feito para nós. Além disso, aquela grande cachoeira que ficava lá e da qual tínhamos uma visão de cima era belíssima. Provavelmente, uma imagem das mais belas que já tinha visto.

Os restaurantes da região serviam o que chamavam de “café colonial”, onde se tinha de tudo, vários tipos de café, chás, bolos diversos, salgados, doces finos, geleias e frios. Era a forma de agradar aos turistas, com aquele prato europeu. As casas e os hotéis do local tinham, todos, uma decoração muito bonita, cheios de piscinas e locais para fins recreativos.

Numa noite, penso que foi na véspera do ano de 1975, fomos todos a um restaurante de luxo e lá todos nós pedimos o denominado “café colonial”, de certa forma, para comemorarmos aquela viagem. Foi um acontecimento majestoso, pois era uma noite linda, enluarada, e nós, ali, recebendo tanta comida, da melhor qualidade. Agradou-nos muito, sabendo que todos estavam, cada qual, à sua maneira, comemorando aquela noite importante do ano.

Os nossos vizinhos de camping fizeram um churrasco, dos quais participamos, sempre com prazer. Visitamos também aqueles belíssimos hotéis, para ver como eram por dentro, para que pudéssemos voltar para nos alojar neles.

Os dias que por lá passamos foram maravilhosos. Agora, sabíamos que tudo seria possível. Teríamos de voltar, mas não havia pressa. Iríamos depois para outras cidades, dentro do estado do Rio Grande do Sul, entraríamos depois em Santa Catarina e de lá seguiríamos até Curitiba, voltando para São Paulo, sempre seguindo, contudo, por outros caminhos.

Foi assim que fizemos. Visitarmos também um lugar fantástico chamado “Vila Velha”, em que havia pedras que pareciam estar mergulhadas dentro d’água, por milênios. De minha parte, depois de examinar aquele local por vários ângulos, concluí que no passado deveria ter existido um grande lago, tendo posteriormente secado.

Voltamos, depois, pela Rodovia Castelo Branco, dentro do estado de São Paulo. Apesar de todas as dificuldades, levamos uns 15 dias naquela importante viagem.

Eu sabia que aquela seria uma viagem histórica. Principalmente para a minha mãe que ainda não conhecia o sul do Brasil. Resolvemos, em Curitiba, alojar-nos no Hotel Mabu, que ficava no meio de uma praça. Era um hotel muito luxuoso, e que nos deu toda a graça de ficar só por duas noites naquela importante cidade de Curitiba. Depois, todos voltamos para a nossas atividades. Eu voltei diferente. Queria ter um relacionamento maior com minhas filhas. Fiquei, como disse antes, surpreso, com tudo aquilo de bom que tinha acontecido. Ajudou-me muito, em todos os sentidos.

Desde então, muitas coisas aconteceram. Queria vencer na vida profissional e venci, de alguma maneira. Queria vencer na vida pessoal e, de certa forma, consegui, não obstante tantas dificuldades que sempre surgiram. Na minha vida familiar, aquela viagem foi tão importante, pois pudemos formalizar uma família no bom sentido, isto é, tendo uma maior integração com as nossas filhas, que então me apoiaram. Queríamos conhecer um lugar novo e de certa forma o conseguimos, em conjunto.

Os relacionamentos com minha mãe, com meus sogros, com a Rosa, com o Kyozo, com a sua esposa, a Yaeko, com meus sobrinhos, com o Ferrúcio, com a Minako e com as minhas filhas foram importantes, por variadas razões.

Todas as viagens são históricas, desde que saibamos dar a cada uma delas o devido valor. Para mim, aquela viagem foi assim – importante, histórica, desafiante. Antes de vencer, tudo é um desafio, depois disso, tudo se torna normal.

Para Kyozo, também foi importante aquela viagem, pois o ajudou a vencer os seus desafios, a sua luta por algo que ele achava que seria possível. Depois que subimos uma montanha e a vencemos, tudo parece fácil. Antes de fazê-lo, no entanto, representa um problema. Para o Ferrúcio, e também para a Rosa, tudo aquilo foi importante. Para as minhas filhas, aquela viagem foi fundamental, pois se não fosse por isso, elas não seriam tão obstinadas na defesa do que é superior e elevado.

***

Um dia ainda iríamos a Bariloche, no sul da Argentina. Era uma ideia que nos norteou, durante muitos anos, até que, em certa ocasião, para lá nos dirigimos. Iríamos, é claro, a Minako e eu, pois não sabíamos como seria tudo. Era um tipo de férias que iríamos gozar. Afinal, estava trabalhando há alguns anos no escritório sem direito a férias merecidas.

– Foi bom o passeio? – perguntou a Thaís.

– É claro que todo passeio de férias sempre é bom – disse-lhe eu, então.

– Como é a neve? – indagou a Denise, demonstrando curiosidade.

– Nem sei como descrevê-la. Vimos caindo num dia, lá em Bariloche. É, como se pode dizer, algo como um monte de gelo. Mas havia muita neve em determinados lugares, cerca de metros de neve.

– Que fantástico – disseram as nossas três filhas, então, apreciando aquela viagem a Bariloche, vendo depois as fotografias que havíamos trazido.

– De certa forma, escolhemos ir a Bariloche naquele mês de julho, exatamente para ver a neve que lá existia. Principalmente para nós, que nunca tínhamos visto qualquer imagem do que seria a neve, seria interessante. Tínhamos ideias, pois nunca tínhamos visto neve – foi como respondi naquela reunião ocorrida depois.

Afinal, conseguimos um avião que nos levou até Buenos Aires, capital da Argentina. Ficamos por lá alguns dias e tudo se passou de forma maravilhosa. Buenos Aires era famosa pelas suas lojas, sobretudo a Rua Florida, onde o comércio de roupas prontas era muito grande. Na época, no Rio de Janeiro, se você fosse a Buenos Aires, as pessoas lhe diziam: “Olhe, passe na Rua Florida e traga-me esta blusa, aquela calça, e também este capote, que é o que mais se vende naquelas casas”.

Estarem Buenos Aires, para mim, pelo menos, era algo de sagrado, pois lá nascera o González Pecotche, o criador da ciência logosófica. De certa forma, queria ver a sua casa, que tentara ver em 1971, quando da realização do II Congresso Internacional de Logosofia. Muitas coisas, desde então, tinham me chamado a atenção, Agora, as queria mostrar à Minako, que ia pela primeira vez a Buenos Aires.

Fomos às compras e tudo parecia ótimo. Vimos as lojas, as casas, os edifícios, as praças, algumas eram ajardinadas, imensas, outras, menores, os grandes monumentos que por lá existiam, etc. Ficamos num hotel muito bom da rede Sheraton, onde fomos bem tratados.

De noite, fomos igualmente assistir a alguns espetáculos, para ver a vida noturna de Buenos Aires. Inclusive no Bairro da Boca, onde pudemos jantar e ver também um espetáculo original. Eram artistas que lá estavam, e que faziam mil espetáculos para nos animar. Não eram, no entanto, espetáculos rápidos, mas em que os próprios clientes tinham de participar.

Para mim, rever Buenos Aires era algo inolvidável. Levei a Minako até o metrô, que, na época, ainda não existia no Brasil, e andamos um trecho, para que ela pudesse conhecer. Fomos também a um restaurante para comer a batata inglesa, preparada, estranhamente, sob a forma de bolas. Não entendíamos como eram feitas aquelas batatas.

– Como teria ele vivido naquela cidade? Será que fora um homem feliz? Como teria desenvolvido uma obra como a logosófica, para depois espalhar pelo mundo? – eram, enfim, perguntas que fazia a mim mesmo.

Depois, no dia marcado, seguimos para o Aeroporto doméstico de Buenos Aires e nos encaminhamos para Bariloche. Tomamos um avião bonito, porém menor. No entanto, fomos bem atendidos. Para nosso espanto, no almoço, serviram carne, assada em fogo real, dentro do avião, perigosamente.

Finalmente, chegamos ao aeroporto de Bariloche, passamos pela Alfândega e entramos num ônibus que nos levaria para a cidade, que ficava distante. Chegamos, na verdade, à noite, não dando para ver quase nada. No meio do frio, queríamos um bom quarto para dormir. Ganhamos um quarto um pouco pequeno, mas pareceu-me completo. Fomos tomar banho, num banheiro tão pequeno, que mal cabíamos. De qualquer forma, tomamos nosso banho, comemos alguma coisa e dormimos.

No dia seguinte, no meio daquele frio, acordei muito cedo, em torno de 5h50 horas da manhã, e fui abrir a cortina do quarto. Quase caí no chão, em face de tanta beleza que surgiu à nossa frente. O nosso quarto era de frente para a Lagoa de Nahuel Huapi e de lá víamos toda a água existente, além, das grandes montanhas, cobertas de neve. Ficamos nós dois embevecidos com tanto esplendor. Ficamos lá muito tempo, parados, apreciando tamanha beleza. Depois, descemos, fomos tomar café e saímos para conhecer aquela belíssima cidade que tinha muito do mundo europeu. Bariloche era, sem dúvida, uma cidade diferente de todas as que conhecíamos, pois, além de ser um lugar aberto, suas ruas eram largas, estando à vista de todos. O Lago Huapi, ali perto, trazia-nos a sensação de que ali havia um grande mistério. As suas eram como se fossem do próprio mar. Segundo aqueles que por lá vivem, a profundidade daquele lago é enorme, nem sabendo ninguém dizer quantos metros. Inclusive, segundo os boatos que existiam por lá, haveria até um monstro, que apareceria em determinados momentos.

– De vez em quando aparece e mete medo nas pessoas – diziam.

– Para mim, no entanto, deveriam existir outras explicações, pois monstros não existem. Podiam ser animais com outras formas diferentes. Não deveriam, portanto, meter medo nos seres humanos – insistia eu.

Naquela cidade, havia uma diversidade de hotéis, bares e restaurantes, além de cassinos, que me influenciaram de forma duvidosa. Mas, de qualquer forma, fomos passear para conhecê-los. Fazia, então, muito frio, pois estávamos no inverno, ou melhor, na pior época dessa estação.

Visitamos todos aqueles monumentos, depois, uma ilha, no meio daquele lago, onde descobrimos, com encanto, a existência de uma floresta original tão bela, que deveria aparecer nos filmes sobre belezas naturais. Depois, informaram-nos que o Walt Disney teria ido lá para filmar naquela floresta, onde as árvores cresciam sem deixar resíduos, como se fossem pinheiros do Paraná, num lugar frio como aquele, no meio de tanta beleza. Não conseguia entender como tudo aquilo acontecia.

Regressamos da floresta e fomos até uma cabana, onde nos serviram doces diversos, elaborados com muito carinho pelos moradores. Após isso, tomamos um barco que nos levou para outro local, atravessamos o lago, com muitos ventos e perseguidos por aves, que vinham comer os alimentos que dávamos, no meio daquela penumbra. Foi maravilhoso o que vivemos naquela oportunidade.

No dia seguinte, fomos ao Cerro Cetedral, onde se praticava o esqui, em larga escala. Um lugar lindo, cheio de neve, por todos os lados. Fiquei abismado de ver como tanta gente esquiava em lugares como aquele, no meio das montanhas, aparentemente perigosos. Sem dúvida, um lugar esplendoroso para esquiar, como depois fiquei sabendo. Os perigos, no entanto, lá estavam, por todos os lados.

Subimos aquela montanha, via teleférico, os turistas e os esquiadores. Ficamos por lá por cerca de duas horas, com toda a visão do lugar, vendo muitas montanhas, por todos os lados, cheias de neve. Parecia até que víamos uma parte do Chile, ali perto, segundo alguns comentários.

Havia outras construções naquele lugar, embora, lá em cima, no meio da queda de neve, tudo parecesse o paraíso. Ficamos vendo como as pessoas se lançavam de esqui na neve, uns perto, outros longe, a quilômetros dali, no meio de tantas encruzilhadas.

– Andar na neve?  Talvez, um dia, mas não agora – pensávamos.

– Um dia, provavelmente, voltaríamos, para andar sobre a neve, esquiando, se fosse possível – imaginava a Minako.

Depois, descemos pelo mesmo sistema que nos levou até lá em cima. Tanta neve por todos os lados. – Sem dúvida, era um lugar belíssimo aquele – pensava eu.

As pessoas que viviam naquela região podiam ser argentinas, mas davam a impressão, na sua maioria, de serem da Europa ou de outro lugar do Velho Mundo. Inclusive, vendo a casa deles, sentia-se que eles eram seres diferentes, em sua essência; suas casas eram de estilo europeu do melhor nível.

Com relação às casas de jogos de risco que lá existiam, nos cassinos, ficamos uma noite para ver tais jogos. Fiquei, encantado com aquele tipo de jogo. Tanto assim que, depois que deixei a Minako no hotel, voltei, para tentar ganhar algo mais naquela noite. Perdi e ganhei no final: tanto que foi suficiente para comprar um capote de couro em Buenos Aires, depois, na volta. Pensando nas minhas impressões de então, concluí que todo jogo é altamente perigoso para todos, pois nos atrai sem que possamos fazer nada para impedir. É algo indescritível, a sensação que sentimos quando ganhamos uma partida. Lembrei-me do livro “O Jogador”, de Dostoiésvki, lido anteriormente.

Fomos depois conhecer melhor a cidade de Bariloche, comprar chocolate e outros bolos diversos que lá existiam. Encontramos, em nossa volta, em Buenos Aires, o Telmo Koyo e sua esposa. Alicia, no Hotel Sheraton. Levaram-nos para um churrasco, especial, onde nos contaram sobre suas vidas. A Minako não os conhecia, de forma que ficou feliz com aquele encontro.

40

 

Conheci a Rosa em 1958, em São Paulo. Tinha então uns 12 anos de idade. Estava sempre na cozinha de sua casa, uma espécie de pensão para estudantes, cabendo a ela ajudar no preparo da refeição.

Gostei dela, por alguma razão. Não falava muito e guardava dentro de si suas mágoas. Pensava então em estudar nutrição. Havia uma escola que dava o curso científico e, ao mesmo tempo, era destinado a nutricionistas, afinal, fazer comida era o seu lado forte.

Quando dizia alguma coisa de que não gostava, fechava-se. Nunca me irritei com isso, sinceramente. Para mim, era uma graça de pessoa, mas era a vida dela de qualquer forma. Mais tarde, depois da formatura, foi trabalhar numa Central Hidroelétrica, na divisa do estado de São Paulo com Mato Grosso, onde ficou por pouco tempo. Trabalhou depois na Codima, outra grande empresa, onde ficou por pouco tempo também.

Recordo-me dela, quando veio ajudar-me no Rio de Janeiro, por ocasião da minha formatura, em fins de 1966. Perdera o emprego na ocasião, procurando outro serviço. Era uma garota difícil, ou, pelo menos, complicada.

Um dia, lemos num jornal do Rio de Janeiro um anúncio em que se procurava nutricionista. Era das Lojas Americanas S.A., onde ela acabou ingressando. Lá conheceu o Franklin, que desde então se tornou nosso amigo. Ficou naquela empresa por muitos anos. A Rosa tornou-se a nutricionista mais importante daquela organização.

Naquele início de 1967 ela apareceu em casa. Veio, como era de se esperar, meio tímida, meio sem jeito. Sempre manteve, desde então, seu jeito de falar com muita educação. Tínhamos certa diferença de idade, de quase 10 anos, mas sempre entendi que ela, por alguma razão, gostava muito de mim.

– Queria saber se poderia ficar aqui, pois não tenho para onde ir? – perguntou-me, contorcendo-se, muito seriamente, e olhando-me de forma atravessada.

– É lógico que poderá ficar – respondi-lhe de forma honesta, muito contente com a presença dela.

– Quanto à contribuição financeira… – ia ela dizendo, quando a interrompi.

– Não, quanto a isso, você acerta com a Minako, pois esta casa é dela. Não estou esperando que você contribua. Mas, se quiser, gostaria que acertasse tudo com ela – foi o que lhe disse, sem que ela concluísse seu pensamento.

Não sei como ela acertou tudo aquilo. Na verdade, nunca me interessei em saber, honestamente. Pois, de alguma forma, ela passou a ser gente de minha casa, desde então. Ela ficou conosco até se casar com o Takuo, em 1979. Foram épocas boas, pois saíamos muito para passear, ela sempre junto com as nossas filhas, alegre muitas vezes, outras triste. Muito brigamos e realizamos tantas coisas juntos.

No seu trabalho, nunca sabíamos se estava realizando bem a sua tarefa. Foi subindo dentro das Lojas Americanas S.A., trabalhando na abertura de novas filiais em todo o Brasil, viajando muito por todos os lados, sempre exercendo sua função dentro dos restaurantes.

Em 1971, como disse anteriormente, ela foi ao Japão realizar um estágio na Yakult. Lá estive, nesse mesmo período, com ela, de forma que nossa convivência foi muito intensa desde então. Ela voltou no início de 1972, muito feliz com as suas realizações. Depois, voltou a trabalhar normalmente, sempre interessada, nas Lojas Americanas S.A. Conheceu no Japão um rapaz formidável, um oftalmologista que morava em Araçatuba, no estado de São Paulo, com quem tentou depois acertar os passos. O mesmo chegou a visitar-nos certa vez, quando morávamos em Botafogo.

Uma vez, ela chegou a ir até lá, para encontrar-se com ele. Fizeram-lhe muitas festas. No entanto, por razões que nunca entendemos, nada daquilo deu certo. Ficou algo chocada com tudo aquilo, naqueles anos que se seguiram. Até que, por suas razões, concluiu que aquele rapaz não seria o seu marido.

Tempos depois, em 1977, ela adquiriu um bom apartamentoem São Conrado, de três quartos, com uma bela vista, no quarto andar. E, mais tarde, já em 1979, ela se casou com o Takuo Yamanaka, outro rapaz que ela havia conhecido no Japão, quando de sua ida, em 1971.

Independentemente de sua ida ao Japão, ela resolveu que sua mãe e seu pai deveriam visitar seus entes queridos, nas suas terras de origem, no Japão. Inicialmente, ela enviou sua mãe, que foi num daqueles anos, e, mais tarde, seu pai, com muita alegria para ambos, que não esperavam mais esses gestos de bondade. A Rosa foi, por isso, uma filha exemplar para aqueles pais, pois era a caçula, de quem menos eles esperavam algum tipo de generosidade. No entanto, agora, ela os enviava ao Japão, com bastante dinheiro e muitas instruções, para rever aquele importante país, inclusive a seus parentes e amigos. Eu, pessoalmente, fiquei impressionado com ela.

Não gostamos do Takuo na primeira vez em que o vimos, provavelmente em 1974. Talvez fosse em razão da timidez que ele apresentava, talvez por outros motivos. Aliás, tal dificuldade contra o Takuo existiu não apenas de nossa parte, naquele primeiro contato, mas também dos outros amigos da Rosa. Ninguém parecia gostar dele, inicialmente. Todos diziam que ele poderia até ser uma pessoa diferente, mas, aparentemente, não sabia agradar ninguém.

Fomos com ele e a Rosa ao Restaurante Myako, especialista em comida japonesa no Rio de Janeiro. Ele pediu um prato simples, comeu-o enquanto via uma revista, esquecendo-se que lá estávamos. Surpreendeu-nos. Porém, logo depois, mudamos nosso conceito com relação a ele, de quem passamos a gostar imensamente.

Na época, ele morava em Curitiba. Fomos lá conhecer sua mãe, uma senhora culta e digna, além de seus irmãos e seus cunhados. Gostamos de todos eles, pois se tornaram nossos amigos. Eles eram sensatos e muito bem colocados. Tempos depois, ele veio ao Rio de Janeiro, para estar perto da Rosa. Era economista formado, profundo conhecedor da língua e da história do Japão, trabalhou na Nippontur, uma agência de turismo. Parecia um pouco rebelde, mas era uma pessoal normal, talvez melhor do que pudéssemos imaginar. Posteriormente, ele ingressou na Ishibrás, após realizar exames nesse sentido. Adoeceu de hepatite, então, tendo ficado alguns meses em Curitiba, por recomendação médica, exatamente na época prevista para o seu casamento, em fins de 1978. Após isso, ingressou ele na Nippon Steel, a quem eu atendia como advogado.

O casamento da Rosa e do Takuo foi todo organizado para ser realizadoem São Paulo, no início de 1979. Pois embora trabalhasse no Rio de Janeiro, os pais da Rosa moravam naquela cidade paulista. Foram a São Paulo, alugaram um salão na Av. Campinas, contrataram serviços especiais de bufê, para festejar aquela noite importante.

Evidentemente, nós fomos também àquele casamento. Tudo correu melhor do que poderíamos esperar. No final, eles viajaram, nem me lembro para onde.

Depois que eles se casaram, nossa convivência tornou-se importante. Todos os dias apareciam em casa. Nós ficamos temerosos em não atrapalhar a vida deles no novo apartamento. No entanto, foi ali que descobrimos todo o outro lado bom que o Takuo possuía.

Takuo acordava cedo e agia quase como se fosse o próprio dono da casa, pois comprava os materiais necessários e cuidava de tudo, inclusive da comida, de forma que a Rosa ficou vivendo como uma rainha, tal o atendimento extremamente bom que ele lha dava. Não entendíamos nada daquilo, mas os nossos elogios encantavam os dois. Com o tempo, tornamo-nos grandes amigos.

Viajamos muito juntos, depois disso, quer indo a Curitiba, a Foz de Iguaçu ou a tantos outros lugares. O Takuo, além disso, mostrou ser uma pessoa alegre, sempre com coisas engraçadas para nos relatar. Aqueles anos, que se seguiram ao casamento, durante um determinado tempo, viviam em grande estilo. Ele era sem dúvida, um ser humano de grande classe. Vivia nesse mundo superior; sem que pudéssemos fazer alguma coisa, para o tirarmos dele.

Foi em abril de 1983 que a Rosa, depois de um longo peregrinar, perdeu o seu emprego como nutricionista das Lojas Americanas. Ficara por lá por muitos anos e realizara um bom trabalho, segundo informações que nos chegavam. Dizendo melhor, as pessoas traziam sempre notícias boas a seu respeito, no trabalho que realizava. A Rosa sempre foi uma moça calma, porém tímida, em que como dito anteriormente não alardeava aos outros pelo trabalho que executava.

É verdade que conhecíamos o Franklin, seu chefe, abaixo da diretoria nas Lojas Americanas. Pessoa brilhante, vigorosa, sempre pronta para nos ajudar. Gostávamos muito dele, desde que a Rosa começou a trabalhar naquela empresa. De vez em quando, ele aparecia.

As chamadas Lojas Americanas era uma grande empresa no Brasil. Tinha lojas em todo o país. E o Franklin tinha sido um dos seus funcionários mais importantes durante décadas. Sair daquelas lojas, parecia-lhe algo inconcebível. Hoje, sua função era de inspetor da parte de lanchonetes e sorveteria, uma posição elevada dentro da empresa.

No entanto, as ações das Lojas Americanas haviam sido vendidas a um banco, que quis introduzir uma série de modificações em sua gestão, com vistas a ganhar mais dinheiro. Pessoas que eram algo como a “prata da casa” foram despedidas. Muita gente nova foi admitida na empresa. Tudo mudou dentro da mesma, gerando um clima de medo incrível naqueles funcionários. Foi assim que o Franklin, bem como a Rosa, tiveram de sair daquela importante loja.

– A Rosa vai sair das Lojas Americanas? – perguntavam muitos.

– Não, não, ela ficará – era uma resposta. Depois, perguntávamos, novamente: – A Rosa vai sair das Lojas Americanas? – Bem, tudo indica que sim. – era outra a resposta.

Outra vez, perguntávamos se a Rosa ficaria naquelas lojas, e então outra resposta vinha. No final, como disse antes, em abril de 1983, a Rosa saiu das Lojas Americanas. Foi um grande susto que ela teve, mas que foi, de alguma forma, esperado.

Ela havia recebido algum dinheiro, de forma que não precisava trabalhar urgentemente para sobreviver. Seu marido, o Takuo, trabalhava arduamente, de forma que não haveria maiores problemas.

No entanto, a Rosa tinha um grande sonho, o de abrir uma lanchonete, onde ela poderia produzir o alimento que quisesse, dentro daquelas condições que sempre foram suas grandes aspirações. Particularmente, eu não estava muito interessado nos negócios dela. No entanto, havia concordado em apoiar o seu trabalho. Começou ela a procurar um local para sua lanchonete. Fui ver dois ou três pontos, mas não gostei. Posteriormente, disse-lhe para arranjar um lugar mais em conta, pois não tínhamos certeza se as coisas dariam certo.

Uma loja de material fotográfico, ao lado da Igreja de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, queria ceder um daqueles compartimentos, pois precisava de dinheiro. Não era exatamente no Centro da cidade, mas perto dele. O local era antigo, pois parecia que a construção era do século passado. O aluguel, entretanto, era bem barato, pois havia um contrato quinquenal. Poderíamos instalar ali a nossa lanchonete, foi o que a Rosa nos explicou. A indenização solicitada para nos ceder tal sala era grande, mas dentro das nossas possibilidades. Levando em consideração o aluguel, que era baixo, e a possibilidade de errar em nossos negócios, resolvemos ficar com aquele local, pagando o dinheiro pedido.

A proprietária era a própria Igreja, que ficava ali, à nossa frente, e que não criou problemas para ficarmos no local. Há que se esclarecer que, segundo intenções da Rosa, não era para criarmos uma lanchonete naquele local, mas sim para fornecer sanduíches e sorvetes, para os eventuais clientes. Alertei a Rosa de que tentar vender sanduíches de luxo naquele local nos levaria à falência, pois o pessoal que por lá passava era pobre, e ia tomar ônibus no outro lado da rua. Não tinham condições de comprar tais sanduíches.

A questão virou um problema, pois, na parte da noite, tudo se tornava deserto, pois ninguém passava por lá. Como conclusão, chegamos à ideia de que deveríamos preparar almoços especiais, para o público, que não passava por lá, mas que trabalhava próximo à localidade. Os clientes viriam, era a ideia que então prosperou. O almoço seria especial, diferente de tudo que existia. Havia, dentro da Rosa, um grande desafio, o de realizar aquilo que ela gostava como nutricionista. Quanto aos sócios naquele empreendimento, além da Rosa, como nutricionista principal, tínhamos eu, advogado, o Franklin, estudioso do assunto e homem de recursos, na época, além da Naomi, outra nutricionista, que ainda trabalhava nas Lojas Americanas, e, finalmente, o Jean Maurin, o arquiteto, a quem convidamos para participar, pois sua contribuição foi muito elevada, na ocasião.

O entendimento entre os sócios, naquela época, era excelente, pois todos estavam entusiasmados com aquele negócio. Por sugestão do Franklin, resolvi que a Rosa e eu teríamos 51% do capital necessário para aquela loja, que estaríamos abrindo. Depois viria o Franklin, com um percentual maior, e, posteriormente, os demais membros, no caso a Naomi e o Jean. Tudo acertado, então, no particular, por mim, advogado.

Iniciamos, depois, a etapa de obras. Minha intenção era não realizar muitas. Nem tudo, no entanto, lá funcionava. Não era tão simples abrir um restaurante naquele lugar, constatamos. A primeira medida tomada foi providenciar a construção de um tanque de água, pois não existia nada naquele lugar. Não deveria ser pequeno, eis que faltaria água na região. Teria de ser no chão da loja, por falta de lugar melhor. No final, um enorme tanque, com cerca de 2,00 metros de profundidade, por 3,00 metros de largura e 6,00 metros de comprimento, teve de ser feito, para atender às nossas necessidades. Evidentemente que o dinheiro começou a depender.

Precisávamos de energia elétrica, não só para iluminação, mas também para fazer funcionar todos os mecanismos, como geladeira, descascadores, mexedores e misturadores variados, que teríamos naquele local. Fomos à Light, empresa de energia elétrica da cidade do Rio de Janeiro, onde nos pediram para apresentar um projeto, com tudo aquilo que seria necessário, de caixas, para entrada e saída de fios, fusíveis, etc. Custaria muito, inclusive quanto ao tempo. No entanto, depois de vários pedidos, tudo seria realizado em curtíssimo tempo.

Precisando de gás, fomos à empresa fornecedora, apresentamos outro projeto e o conseguimos. Tudo conseguíamos, de forma admirável, pois era nossa a vontade de que tudo saísse melhor do que esperávamos. Toda a loja foi reconstruída, com novas paredes, novo piso, novos andares, para atender às exigências das autoridades. De igual forma, tivemos de construir dois banheiros, para atender tais exigências. Por fim, instalamos a nossa cozinha, na parte superior, com local para guardar outros materiais, além de um pequeno escritório. Na parte inferior, conseguimos instalar 24 cadeiras, junto a mesas especiais, tudo de acordo com um formidável projeto elaborado pelo Jean Maurin, com balcão, onde servíamos comida quente, com local para prepararmos toda a comida a ser servida, na parte de trás. Com sorvetes e outros locais para refrigerantes, tudo ficou perfeito, naquela loja, que denominamos de Ekko’s.

Inauguramos a Ekko’s em março de 1984, isto é, cerca de 10 meses depois de iniciarmos as obras locais. Estávamos estimulados com tudo aquilo. A conversa entre os sócios era incrível, no particular, todos esperando mais do que seria lícito. No dia marcado, promovemos a inauguração, chamando todos nossos conhecidos. A nova lanchonete era cheia de pratos bonitos, criamos muitos sanduíches especiais para o evento, tudo era exposto em grandes fotografias.

Finalmente, depois de tantos sofrimentos, conseguimos fazer a loja funcionar. Nem sabíamos como o fazer, mas era a nossa função. Começamos servindo refeições, do tipo “sugestões”, em dois pratos, todos os dias, além de pratos isolados. A loja estava muito bonita, parecia ser até uma nova construção, tantas as benfeitorias e coisas novas que ali estávamos exibindo.

Muitos outros problemas surgiram naqueles tempos. Um deles era o de preparar a comida necessária, como se pretendia. Tanto a Rosa, como a Naomi, se misturavam com os demais funcionários, para fazer funcionar. Quantas vezes não faltaram esse ou aquele material para o preparo da comida, ou faltou esse ou aquele prato, depois de servirmos vários. Tudo, naquela ocasião, nos pareceu extremamente difícil, embora fosse, por outro lado, interessante, como algo de feliz que estávamos realizando.

Obter todas as licenças necessárias, acertar as questões das pessoas que ali trabalhavam e fazer tudo funcionar como queríamos não era tarefa fácil. No início, conseguimos um determinado rendimento. No dia seguinte, contávamos e esperávamos, a cada dia, que aquela meta fosse superada. De certa forma, isso foi conseguido.

Naquela época, todos nós trabalhávamos na Ekko’s, para fazê-la prosperar e gerar lucro. Recordo que a Minako lá trabalhou, por algum tempo, juntamente com a Denise e a Káthia, minhas filhas. A Denise foi caixa por algum tempo, para atender, de forma especial, os clientes daquela lanchonete. No entanto, gostaria de lembrar que uma vez a Ekko’s foi objeto de roubo, com armas e tudo, impetrado por dois moços, algo macilentos, que penetraram nela, por volta das 20 horas, naqueles primeiros dias, depois que começamos a funcionar.

A rua, onde a loja estava situada, era escura à noite. É claro que havia a nossa luz, na porta da garagem. Dentro da loja, havia ainda várias pessoas trabalhando, arrumando tudo para irem embora. Foi numa noite assim que o Takuo saiu da loja, para ir buscar alguma coisa dentro do carro, lá fora. Ele já ia voltar, quando foi abalroado por dois ladrões, com armas na mão. Quando entrou na lanchonete, eles vieram atrás, com as armas apontando para todos nós. Ao vê-los, senti um calafrio na minha espinha. Não podia reagir, pois seria altamente perigoso. Olhei para eles e disse-lhes para baixar as armas, pois nada pretendíamos. No entanto, ele apontava aquela arma com as mãos tremendo. Dizendo, de forma agressiva, que queriam dinheiro e depressa, para evitar outros problemas. Um apontava a arma e o outro ia catando tudo aquilo que podia. Eles, ao que pude constatar depois, não esperavam que houvesse ainda tanta gente lá dentro, de forma que se surpreenderam. No entanto, pegaram o que queriam, dizendo bobagens, e nem quiseram subir, pois temiam algum tipo de risco gerado por alguém que pudesse estar naquela parte.

Foi um risco a mais, pensei, depois que foram embora, levando algumas roupas e alguns trocados, pois, efetivamente não havia dinheiro para lhes dar, porque havia sido depositado no banco na parte da tarde. No entanto, como disse, tudo aquilo foi algo de inovador em nossas relações. Senti, pela primeira vez, o quanto é desanimador saber que poderíamos realizar muitas coisas e nada podermos fazer diante de situações como aquela.

Não sei se pretendiam fazer alguma coisa. No entanto, saber que aquela arma tremia na mão daquele moço magro e de perfil ruim, criou, em todos nós, uma sensação de que as coisas, afinal de contas, no Brasil, estavam mesmo dramáticas. Foi essa a sensação que tivemos naquela hora, naquele local, face àquele roubo.

Isso foi em abril de 1984, se não me engano. Com isso, no dia seguinte, arranjamos um homem com “cara de mau”, para ficar na frente da loja, e afastar os eventuais bandidos. Aprendemos muito, com tudo aquilo.

Muitas outras coisas aconteceram depois, durante o funcionamento da loja. Tivemos dificuldades em levar aquela atividade, houve uma tentativa de vendê-la para realizar outros programas, problemas entre os sócios, melhoria da aparência e ouras questões, que depois surgiram. Um ano depois de inaugurada, o proprietário da casa de fotos, ao lado, veio nos procurar, oferecendo a outra metade, para expandirmos a nossa lanchonete. Analisamos a questão, de forma que acabamos comprando aquela metade, que foi toda modernamente decorada. Posteriormente, a loja veio a ter 48 cadeiras, agora pregadas às mesas para quatro pessoas, além de lugar para lavar as mãos e outros detalhes importantes.

Em outubro de 1984, o Takuo ficou doente. Nós, evidentemente, nem ligávamos para isso, pois ele era muito amigo nosso, por todas as nossas razões. Dávamos, assim, pouca importância a uma doença dele, naqueles dias, julgando-a insignificante. Talvez, por isso, um dia, brincamos com ele, dizendo que teria de se curar, pois, do contrário, poderia até vir a morrer de câncer, como tinha acontecido com meu pai. Logicamente, nunca imaginaríamos que ele poderia estar com uma doença difícil.

No entanto, em razão da doença, necessitou ir a vários médicos. Todos o mandavam realizar este ou aquele exame, para examinar esta ou aquela manifestação. Todo dia, em casa, à noite, lá ele estava, para os nossos bate-papos. Em novembro de 1984, o levamos a um restaurante de comida japonesa, que estava iniciando suas atividades em São Conrado. Não o fizemos por mal, pois não sabíamos o quão doente ele estava. Ele, entrementes, não se serviu. Depois de comermos alguma coisa, a Rosa desculpou-se, saiu de lá para levá-lo para sua casa. Reparamos, então, que o estado de saúde do Takuo era muito sério.

Em torno do dia 20 de dezembro, resolvemos ir até Ribeirão Preto, com todas as nossas filhas, exceto a Thais, que estava realizando seu estágio num hospital no Rio de Janeiro. Fomos até a casa do meu irmão Zeniiti e do Kyozo. Ficamos por dois dias e resolvemos deixar as nossas crianças por lá, seguindo dali pelo interior de Minas Gerais, pois havia uma cachoeira bonita, em determinado lugar, que gostaríamos de apreciar. Posteriormente, iríamos até Belo Horizonte. De lá, seguiríamos pela Região dos Lagos até seguir para São Paulo. Seriam as nossas férias daquele fim de ano. Foi uma viagem e tanto, segundo a qual, depois de chegarmos a um belíssimo lago artificial, aumentando pela Companhia Furnas, com um excelente clube interno, seguimos até aquela cachoeira, no meio do mato, muito distante, levando muitas horas para isso.

Eram lugares bonitos, um pouco selvagens, muitos pastos e áreas plantadas, com casas isoladas. No meio daquele passeio, conseguimos chegar às cachoeiras, belíssimas, o que nos encantou bastante. Ficamos, contudo, com receio, porque tudo indicava que viria uma chuva tremenda, o que nos poderia atolar completamente, além do que o lugar nos parecia abandonado, onde poucos visitantes apareciam. Apressamos-nos e saímos de lá correndo, para evitar tais problemas que certamente surgiriam.

Estávamos, alguns dias depois, numa cidade do interior do estado de Minas Gerais, quando resolvemos telefonar, para saber como Takuo estaria. Falamos, inicialmente, com a Thais, que disse que a situação dele era gravíssima. Pelos resultados que os médicos observaram, o Takuo estava com câncer no fígado e sua possibilidade de cura era remotíssima.

– Não há alguma forma de curá-lo? – perguntei ansiosamente.

– Não – respondeu-me a Thais, lentamente. – Trata-se de câncer de fígado, um órgão extremamente delicado.

– Não se poderia operá-lo? – Ninguém operaria, pois representará uma cirurgia extremamente complexa. Teoricamente seria o desejável. No entanto, precisaria de doador e de outras circunstâncias que favorecessem a hipótese. – Viverá, porém, ainda algum tempo, com esse câncer? – Lamentavelmente, não – respondeu-me, sentidamente, a Thais.

Quase morremos naquela hora. Minha filha havia dito, terrivelmente desolada, que seria extremamente difícil realizar alguma coisa para salvá-lo. Havia falado com vários médicos e todos confirmaram a gravidade daquela situação. Ficou calada, em face de tanto sofrimento.

Com relação à Rosa, para quem telefonamos depois, ela parecia uma estranha, tanto sofrimento a deprimia, eis que ele estava junto dela. Queríamos dizer tanta coisa, sem, no entanto, dizer-lhe nada naquela situação tão difícil.

Subimos para o nosso quarto, naquele hotel, sem sabermos o que esperar. Inicialmente pensamos em voltar ao Rio de Janeiro no dia seguinte. Mais tarde, pensando melhor, chegamos à conclusão de que isso seria complexo, pois perguntariam o que teria acontecido e o nosso programa seria de ficar pelo menos mais uma semana de férias, razão porque resolvemos ficar, para passar aqueles dias como havíamos programado. Iríamos antes para São Paulo para passarmos o final de ano na casa da minha mãe e dos meus cunhados, antes de voltarmos ao Rio de Janeiro.

Tão mal passamos naqueles dias, que comecei a sentir-me doente fisicamente. Foi um período de sofrimento terrível, pois o Takuo havia se transformado num grande amigo por aqueles anos todos. Agora, quando menos esperávamos, ele fora acometido de grave doença que poderia provocar a sua morte. Sabíamos e nada podíamos fazer.

Depois que voltamos, estivemos com o Takuo, por vários dias, recebendo tratamento médico, quando se aventou que sua mãe viria de Curitiba para atendê-lo. Ela já sabia da gravidade do seu estado de saúde. Veio para ajudá-lo. Logo depois, disse que em Curitiba havia um grande médico descendente de japoneses, professor universitário, o qual tinha cuidado dos seus entes até então. Por isso, queria levá-lo até ele.

Nem discutimos a conveniência de se fazer isso, pois o estado de saúde dele se agravava a cada dia. No dia seguinte, junto com a Rosa, o Takuo seguiu para Curitiba, para se submeter àquele médico famoso. Ao examiná-lo, o médico disse que poderia tentar realizar uma cirurgia, mas que não via razões para isso, pois não vislumbrava qualquer possibilidade de salvação. Foi o que o médico disse a Thais, que acompanhou todo aquele drama de então.

O Takuo faleceu no dia seguinte à consulta. Avisaram-nos para que lá fôssemos todos nós, de avião, para acompanhar o enterro do Takuo na terra dele, no Paraná. Era terrivelmente lastimável tudo aquilo ter acontecido. Não tínhamos outra solução para isso, no entanto. Muitas vezes, me pergunto por que o Takuo, que tinha menos de 40 anos de idade, teria de morrer naquela idade, tão alegre e tão superior havia sido. Foi uma pena, pensávamos tristemente.

Para a Rosa, foi algo terrível tudo aquilo ter acontecido. Ela tinha vivido até certa idade solteira, casado com ele, em 1979, em meio a festas. E agora, no início de 1985, via o seu marido, tão formidável, morrer daquela maneira, deixando-a viúva.

– Por que tudo aquilo tinha de acontecer? – me perguntava, sem encontrar qualquer resposta.

Tenho pensado muito sobre a questão da morte de nossos familiares. Quando era criança, a morte representava algo tétrico, algo terrível que deveríamos evitar. De certa forma, significava o fim de tudo. A morte seria uma fase fundamental para a nossa vida. O nosso corpo se acabava, mas o nosso espírito continuaria a sua trajetória, pelo caminho da nossa existência. Foi a conclusão que extraíra do ensinamento logosófico, baseado numa premissa fantástica: de que de nada adiantaria lutarmos tanto em nossa vida, se com a morte tudo acabasse.

Efetivamente, ao nascermos, já viemos com uma grande herança, mas não dos outros, como a maioria pensa, mas de nós mesmos. É uma grande luta conseguirmos aproveitar a herança que produzimos em nosso passado. Agora, com a nossa vida atual, outra experiência passa a ocorrer. Temos, de alguma forma, de criar uma nova herança, para sermos substancialmente melhores, inclusive ajudando os outros seres, para que possamos continuar a nossa trajetória, no caminho do futuro, ao encontro, talvez, do nosso criador. Sem essa compreensão, tudo no mundo será horrível, depressivo, sem futuro.

– Descansar para quê, se tanto temos a realizar?

41. 

 

Vendo-a hoje, bela, magra, elegante, com seus cabelos lindos, com sua pele clara, ainda sem rugas, reparo, não obstante, que já se passaram muitos anos desde que conheci a Minako.

Sua mãe viera juntamente com minha mãe, no mesmo navio, ao sair do Japão, em 1928, tornando-se muito amigas. Poucas pessoas, no entanto, sabem realmente sobre o terrível sofrimento por que passaram muitos dos imigrantes que vieram de vários países até o Brasil.

Em grande parte, esses estrangeiros vieram ao Brasil com uma noção diferente do que imaginavam em seus países de origem. A propaganda que existia então era de que tudo no Brasil seria maravilhoso. Depois, ao aqui chegarem, descobriam que tinham de trabalhar muito, mesmo para sobreviver. Tinham, em tese, deixado países desenvolvidos, para viverem em uma imensa área, ainda selvagem, profundamente diferente das terras natais, com muito sol, muitas florestas, falando línguas diferentes, sem nada conhecer das suas leis e seus costumes.

Quanto à mãe da Minako, Saki, ela tinha vindo ao Brasil para se casar. Existia, na época, uma lenda no Japão que dizia que ela havia nascido num ano terrivelmente dramático, e que, por isso, as jovens daquele país dificilmente se casariam com quem quer que fosse. Hoje, a maioria de nós acharia graça ao ouvir tal afirmação. Isso seria uma lenda, um conto, algo que nada tem a ver com a verdade dos fatos, insistiríamos. Estranhamente, porém, os jovens do Japão de então, um país em desenvolvimento, realmente não casavam, em sua absoluta maioria, com as moças que nasciam com aquela maldição. Mesmo hoje, a maioria dos jovens do Japão ainda guarda respeito a tais preconceitos.

Por isso, aquela mocinha, desde criança, considerou-se marcada, embora fosse bonita, porque sabia que, devido ao ano de seu nascimento, ninguém se aproximaria dela. Efetivamente, constatou que o poder daquele preconceito era fortíssimo naquele país, uma vez que a maioria dos rapazes que se aproximava dela, depois, misteriosamente, se afastava, sem quaisquer outras razões.

Firmou, portanto, a convicção de que teria de arranjar outra fórmula para o seu futuro. Sabendo, destarte, que havia jovens imigrantes no Brasil, que encontravam mulheres para se casar naquele novo país, escreveu oferecendo-se para casar com qualquer japonês de bom nível moral, que aceitasse uma mulher que tivesse nascido naquele ano dramático no Japão. Encontrou, assim, o seu marido, Kumio Ando, que era um jovem também de Miyasaki e que havia imigrado para o interior do Brasil e queria se casar com uma japonesa.

Embora pobre, a Saki viveu de forma exemplar, tendo sido uma mãe excelente para todos os seus filhos, em todos os sentidos. No meio de todas aquelas dificuldades, nasceu e cresceu a Minako, com quem me casei. Desde então, tantas coisas aconteceram com ela e comigo. Namoramos e casamos e ela veio viver no Rio de Janeiro, onde fez de tudo para me impulsionar, a vivermos de forma mais evoluída.

Ela, que já trabalhava antes, continuou depois do casamento. Nasceram as nossas filhas, Thais, Denise e Káthia, dedicando-se ao encanto dessa grande missão de ser mãe, com um grande senso de responsabilidade.

Raumsol ensinara que uma das grandes funções da mulher seria exatamente o de ser a rainha do lar. Significa isso fazer a todos compreenderem a função da família e de seus objetivos superiores. Tornou-se a Minako, uma mãe admirável.

A nossa filha mais velha, a Thais, é uma fantástica médica pediatra e especialista em tratamento intensivo, casada com outro brilhante médico cardiologista, o Marcelo, tendo dois filhos maravilhosos, o Lucas e a Larissa, nossos netos, muito queridos.

A segunda, a Denise, é advogada, brilhante em todas as áreas, procuradora da Assembleia Legislativa. É casada com o Flávio, igualmente brilhante advogado, além de ser, também, sociólogo. O casal tem três filhos maravilhosos, a Juliana, o Bernardo e o João, nossos netos, bastante queridos igualmente.

Finalmente, a Káthia, que chegou a trabalhar com a Rosa na empresa de restaurante, e que atua luminosamente na área de marketing e propaganda, realizando projetos da melhor qualidade, fazendo de tudo para organizar e vender mais e melhor.

A Káthia realizou, inclusive, uma viagem em nossa companhia até o Japão, conhecendo-o de norte a sul, em longa temporada; esteve nos Estados Unidos por várias vezes, fomos a Orlando, a Miami, a Nova York, a Los Angeles, a São Francisco, a toda a costa leste e oeste dos Estados Unidos, conheceu ainda várias cidades no Canadá. Conheceu toda a Europa, visitando-a por duas vezes, além de conhecer também o Uruguai e Argentina, onde esteve por diversas ocasiões.

Ao longo de nosso casamento, adquirimos veleiros, o primeiro, de 27 pés, e, posteriormente, um de 33 pés; eles ficavam ancorados por diversos portos e marinas: em Bracuí, em Porto Aquarius, em Angra dos Reis, ou na Marina da Glória, na capital fluminense, e tantos outros lugares, nestes anos todos. As embarcações nos permitiram realizar vários de nossos anseios: navegar como queríamos, ir a qualquer praia, pescar, procurar lugares distantes… chegamos, inclusive, a ficar perdidos, enfim, tudo pudemos fazer com os mesmos, dormir no meio do mar, navegar como almirantes ou sofrer com suas bruscas jogadas.

E, à medida que a Minako estudava Logosofia e experimentava seus ensinamentos, encontrava mais razões para continuar, mais do que atender à sua curiosidade inicial, ela começou a sentir que aquilo vinha atender às suas necessidades internas de confirmar a sua existência, inclusive a existência de Deus. Estudou muito, realizou muita coisa. Minako vive, enfim, uma longa vida, calcada em suas experiências, de forma que se tornou, depois, uma excelente diretora de núcleos, integrou o Pentágono, participou ativamente da superintendência feminina, se desenvolvendo na obra logosófica, vindo até a integrar os cargos mais importantes que existiam, nunca decaindo em sua busca por algo melhor do que possuía. Foi uma excelente professora de matemática, trabalhando por muitos anos no Educandário Logosófico, ajudando-o a erguer-se. Auxiliou muito para que a obra logosófica crescesse no mundo inteiro.

Sua colaboração na CRD – Comissão Regional de Difusão ‑ foi fantástica, pois foi uma das principais responsáveis pela criação do CDIL ‑ Centro de Difusão e Intercâmbio Logosófico de Três Rios e de Resende, além de ter colaborado em outras CDILs. O trabalho que a mesma realizou foi, sob todos os pontos de vista, admirável.

Hoje, ela sabe que toda mulher, em grande parte, é o resultado dos pensamentos que habitam sua mente. “Quem for consciente – ela diz – viverá melhor. Aqueles que não forem conscientes viverão menos felizes” ‑ insiste ela. Tudo isto a faz compreender o seu papel no seio da humanidade de hoje em dia.

Em uma ocasião, o Nagen, de Belo Horizonte, apareceu aqui, no Rio de Janeiro, juntamente com sua esposa, e queria conversar comigo, sobre uma provável mudança deles para esta cidade. Os dois eram amigos meus de longa data e eram importantes docentes da Fundação Logosófica. Não havia tempo para tal conversa, de forma que, como estava para ir ao meu barco, lá em Bracuí, convidei-os a irem conosco, pois poderíamos trocar ideias a respeito. Eles aceitaram, de forma que fomos, todos contentes, no nosso carro, para apanhar o veleiro “Mabruk” que lá estaria.

O Nagem estava incomodado com aquela viagem. Não sabia a razão. De qualquer forma, fomos conversando de forma animada. Depois, descobri o motivo da indisposição: ele tinha medo de barcos. Nunca pude imaginar aquela situação, de forma que rimos muito depois.

No entanto, seu maior medo era do tamanho do barco, que imaginava que era pequeno e que o velejador, no caso eu, seria péssimo.

Posteriormente, depois de ver o barco, enorme, com 33 pés e constatar que, no meu caso, eu seria um excelente velejador, ele, ao invés de passar mal, ficou alegre e feliz em ter estado ali, em Bracuí, ao sairmos para passear nas ilhas das redondezas, com água límpida, e enxergar o fundo do mar, a oito metros de profundidade.

Conversando com ele, depois que as coisas haviam se acalmado, disse-lhe, então, que a Minako estava deixando o Educandário, onde trabalhara por muitos anos, e que aquilo tinha sido algo de importante para mim, pois passaria a ajudar-me. Relatei isso, com a maior sinceridade.

O Nagem me ouviu, na maior calma do mundo, conjeturando a respeito. Depois, perguntou-me:

– Será que você teria feito a coisa certa?

– Não o entendi – repliquei.

– Você não deveria perguntar se teria feito algo correto, ao tirá-la do Educandário Logosófico, se sabia que aquilo era tão importante para ela evoluir no lado espiritual? – perguntou-me, olhando-me fixamente.

Assustei-me, então. Nunca tinha pensado nisso, dessa forma. Olhei-o, e pensei seriamente em tudo aquilo.

– É. Talvez você tenha sua razão. Eu posso ter tirado a liberdade dela de evoluir.

Mais tarde, disse a Minako, sinceramente:

– Olha, você não precisará deixar a escola para atender ao meu pedido, pois isso poderia representar a perda da sua liberdade interna. Que realizasse isso, sim, mas ao seu gosto, sem pressões.

Posteriormente, em razão do acidente sofrido por mim, em fins de 1987, e de outros problemas que surgiram consequentemente, ela mesma, por razões próprias, resolveu deixar aquele educandário.

Recordo-me bastante da Minako, quando me acidentei violentamente. Com o acidente, fiquei tão machucado que passei vários dias em coma. A Minako aparecia depois, sempre sorridente, pronta para me atender naquilo que fosse necessário. Vinha com os médicos ou com as enfermeiras, para ver se eu estava bem.

Passei várias semanas naquele estado dramático, como se diz, bastante abalado. Poderia ter morrido. Ou pelo menos ficar gravemente aleijado. E por mais que sofresse com os meus ferimentos, sempre tive a ampla cobertura da Minako, em todas as circunstâncias.

Perguntava-me, então, como poderia a Minako atender-me com tanta presteza em todos aqueles dias seguidos, sem decair em qualquer momento. Sentia que aquilo não era propriamente o trabalho de uma esposa, mas sim de um ser humano com condições especiais.

Sua compreensão a respeito dos problemas da vida era inteligente e bem colocada, de forma que ouvi-la tornou-se uma obrigação de minha parte, para conduzir-me melhor na vida.

Desde antes de nos casarmos tinha a convicção de que era uma moça extremamente bela, em todos os sentidos. Na realidade ela emocionava a todos com aquele sorriso encantador, que demonstrava que possuía condições de conviver em qualquer ambiente.

Passados os anos, venho sempre pensando nessa espécie de dívida que ficou na minha história relativa ao extremo amor com que ela enfrentou tudo, quando me feri de forma mortal, naquela ocasião. Em parte, eu sabia que ela apareceu na minha vida, quase por acaso, e subitamente, sem que eu desconfiasse, tinha penetrado em meu ser de forma imponderável.

Foram anos frondosos aqueles, em que tantas coisas importantes aconteceram na nossa vida em comum. Sem dúvida, o estudo de Logosofia ingressara em sua vida, assumindo tantas atividades que advieram, inclusive no Educandário Logosófico, levando-a a formular novos objetivos superiores para sua vida e também para os seus entes queridos.

Minha experiência nesta vida, nestes longos anos de mútua convivência, em que viajamos pelo mundo todo, tantas vezes, e superamos tantas dificuldades, e nos auxiliamos na criação das nossas filhas, e igualmente, nos afazeres da nossa existência foi, sem dúvida, uma emoção muito grande, em todos os sentidos.

Foi a Minako uma esposa maravilhosa, sob todos os ângulos. E, sobretudo, foi uma mãe fantástica, de forma que todas as suas filhas e todos os seus netos a procuram com uma insistência cada vez maior.

***

A Thais, depois de concluir todo o curso fundamental no Educandário Logosófico, ingressou no Colégio Santo Agostinho, onde realizou o curso científico, o ensino médio daquela época. Já na década de oitenta, depois de realizar o vestibular, ingressou na Faculdade de Medicina de Vassouras, formando-se alguns anos depois.

No entanto, a vida dela nunca foi um prazer para todos nós, em face da sua visão sobre o seu futuro. Passou na faculdade sem maiores problemas, porém, com todo o seu tempo cheio de atividades, ela entendia, talvez erradamente, que todos os estudantes de medicina deveriam dedicar parte do seu tempo livre para ajudar nos hospitais.

Em 1977, quando ela completou seus 15 anos de idade, realizamos uma grande festa para o recebimento da nova adolescente, em nosso novo apartamento de Ipanema, isto é, na Rua Almirante Sadock de Sá, para onde nos mudamos em meados de 1976. Tínhamos iniciado a decoração do mesmo, como era o caso da nossa cozinha, onde todos os móveis fabricados sob medida lá estavam, brilhando, com fogão novo, forno de parede, além de vários armários e lugares para guardar as coisas que queríamos. Como era um amplo espaço, tudo ficou conforme havíamos planejado.

Penso que, em maio de 1978, a Thais começou a repetir que sentia dores na parte do ventre, que ocorriam de vez em quando. Certo dia, ela teria caído, sentindo que alguma coisa não ia bem com a saúde dela, de forma que fomos ao médico para verificar o que seria.

Recordo-me que sempre entendi, que quando nossas filhas sentissem-se mal, deveriam ir imediatamente ao médico. Era uma norma dentro da nossa casa. No entanto, por circunstâncias, isso fora retardado, por esta ou por outra razão.

De acordo com o resultado verificado, a médica Lília disse que ela estava com um corpúsculo interno grande e que por isso teria de operar imediatamente. Não entendi o que aquilo significava. No entanto, depois de conversar com bastante calma, fiquei sabendo que tal tumor não era maligno, pois a Thais era uma adolescente. Uma operação urgente era a medida recomendada. Fiquei, então, apavorado, pois deveria ser benigno, por nossa conveniência. Porém, ninguém poderia garantir nada. Poderia, grosso modo, ser maligno. Não bastava ficar apavorado, pois queria mesmo saber o que significava tudo aquilo. Fomos a vários médicos e todos diziam, mais ou menos, a mesma coisa. Era algo dramático, pelo menos para mim.

Minha filha Thais tinha então 16 anos de idade, uma garota formidável sob todos os sentidos, com uma longa vida pela frente. Contudo, surgia agora um tumor que esperávamos ser benigno. Sabíamos que, se fosse maligno, ela não sobreviveria muito tempo.

Tudo aquilo me fez pensar muito, para entender melhor todas as coisas que estavam acontecendo. Eu pensava, até então, sinceramente, que todos os jovens deveriam sofrer muito, antes de se tornarem adultos, exatamente para valorizar as coisas que tivessem. No entanto, se morresse aos 16 anos, nem poderia valorizar a sua juventude. E, como disse, tudo era trágico. Quero dizer, entendi, então, que aquela maneira minha de pensar sobre os homens, sobre os jovens, estava redondamente errada. Eu deveria pensar melhor na condução das coisas da minha vida.

Fizemos ainda vários exames médicos. Conseguimos naquela ocasião, numa das maternidades, ultrassonografias locais para ver o tamanho do tumor referido. Logo a seguir, realizamos aquele difícil procedimento, para salvaguardar a vida da Thais. Foi uma cirurgia complicada. Tão logo terminou, peguei aquele tumor, uma bola vermelha que parecia uma pequena maçã, levando-o correndo para uma clínica de análise, para examinar se não poderia ter resquícios de malignidade. Foram, depois disso, momentos mortais até sabermos seu resultado. Tal resultado, alguns dias depois, foi negativo, isto é, era benigno, de forma que pudemos então respirar.

Quer dizer, pudemos respirar, mas não tão profundamente, pois ela não estava bem ainda. Além disso, a doença poderia voltar dentro de algum tempo, por cerca de dois anos. Tivemos de aguardar tudo aquilo, ansiosamente, para que nada acontecesse.

Enfrentar um câncer, que era benigno, foi uma grande aventura. Foi, de certa forma, o que aconteceu com a Thais. Muitas outras coisas poderiam acontecer com ela, no futuro. Envelheci cerca de 10 anos com aquela doença da Thais em meados de 1978, por todo o drama que representou para nós.

Senti que melhorei a minha vida. Se eu era exigente até então, passei a ser conciliador, em todos os sentidos. Nos anos que se passaram depois disso, verifiquei como as coisas tiveram de mudar, em grande parte por essa razão. Uma visão errada, que pude corrigir quando aquela enfermidade ocorreu com minha filha, elaborada nos tempos da Segunda Guerra Mundial, criada pelos japoneses de então, de que todos teriam de ser duros e leais. No entanto, o fato de ser duro e leal não significa que pais e filhos sejam felizes. Nunca entendi muito sobre tão complexo assunto, para apreciar melhor a natureza humana.

Aprendi que querer que minhas filhas fossem aquilo que eu gostaria estava errado. Talvez, depois de muitos desatinos, compreendi que, afinal, todas elas representavam uma individualidade independente.

O importante era estimulá-las para que estudassem, para que encontrassem um caminho ideal, para encaminharem suas vidas, para evoluírem. Poderia até mesmo orientá-las, mas nunca sugerir que fizessem esta ou aquela carreira.

De certa forma, foi assim que a Thais seguiu a carreira de médica. Foi, sem dúvida, a carreira escolhida por ela, tranquilamente, no seu longo peregrinar pelo mundo, desde criança. Ao fazer o primeiro exame para estudar medicina, ela não passou. Como sempre, sofreu com aquilo. Nós, de outro lado, estávamos conscientes de tudo aquilo, de forma que, para nós, não aconteceu nada demais. Por isso, convidei-a a realizar um curso de preparo para o vestibular no Centro da cidade, ajudando-me no escritório. Possivelmente poderia, conversando com ela, encontrar outros caminhos. Era o que eu pensava.

Ela veio e ficou trabalhando comigo. Foi uma época muito boa, pelo menos para mim, pois ela chegava do curso por volta do meio-dia. Então, íamos almoçar ali perto do escritório, num restaurante bom que existia, onde conversávamos. Ela, como sempre, silenciosa, tranquila, belíssima, mas, sobretudo, triste com o seu destino.

Foi, sem dúvida, um bom período na minha vida. Talvez, nunca tivesse feito nada por ela antes. Naquela ocasião, conversamos muito. Ela, como sempre, ouvindo-me.

A Thais é uma garota excepcionalmente bela. É difícil encontrar outra moça, descendente de japoneses, como no nosso caso, tão bela quanto ela. Talvez, em razão da operação cirúrgica difícil realizada então, tivesse uma admiração muito grande por ela. Se antes, por meus defeitos, discutia com ela, agora, muito pelo contrário, estava sempre desejando ajudá-la.

Penso que foi nessa época que ela fez muitas amizades naquele curso de vestibular, como com a Eliane e outras pessoas, que continuam amigos até agora, muitos anos depois.

Enquanto a Thais estava no meu escritório, ajudando-me, constatamos que ela poderia realizar exames para estudar medicina em Vassouras. Seria um bom curso, segundo alguns. De forma que, na data certa, ela lá se foi e realizou aquelas difíceis provas.

Dias depois, surpreendentemente, descobrimos que ela havia passado. – Será que teria mesmo passado? Não seria um engano? – duvidávamos.

Posteriormente fomos até a cidade de Vassouras, em meu carro, juntamente com a Eliane, para ver ansiosamente os resultados oficiais. Chegamos lá, ainda muito cedo, passando no meio das florestas no seu caminho, conversando muito com aquelas jovens formidáveis.

– Uma cidade bonita, por sinal – pensei, então, alegrando-me em conhecer a cidade de Vassouras.

Fomos à faculdade e lá pedimos para verificar se ela havia passado mesmo. A atendente entregou a ela uma lista, com a relação de todos os aprovados. Ela olhou, com aqueles olhos tristes, meio amedrontados diante da possibilidade de não ter passado. De repente, disse:

– Passei, pai – palavras simples, mas tão significativas então.

– É inacreditável – eu lhe disse, contente com tudo, junto à Eliane.

Foi lá, no meio de tanta confusão, que confirmamos que ela tinha realmente passado naqueles exames para ingressar naquela escola de medicina. A Thais seria agora uma estudante universitária na Faculdade de Medicina de Vassouras, passamos então a compreender.

Fomos almoçar, num bom restaurante de luxo, para comemorar. Depois, começamos a arrumar as coisas imprescindíveis, pois as aulas começariam dentro de poucos dias. Tínhamos de providenciar lugar para ela ficar, pois os hotéis eram caríssimos. Fomos procurar pensões, pois era a opção possível. Providenciamos depois os livros necessários, cadernos, documentos, etc.

Para todos nós, era uma alegria imensa aquela possibilidade de a Thais ir estudar medicina. Representava algo muito importante tudo aquilo. Nem esperávamos. A Thais tinha então 18 anos. Para nós, representava um suplício ter que deixá-la numa cidade como Vassouras. No entanto, não existia outra solução naquela circunstância. Ela, uma garota calma, tranquila como sempre, pensativa, sem reflexos negativos, teria de vir morar, dentro de poucos dias, naquela cidade, para cursar a faculdade.

Por isso, aquele curso de medicina da Thais foi algo de inolvidável para todos nós. Assim, ela começou os estudos para se tornar médica. Tudo era difícil no início. Aconteceram aquelas brincadeiras, em razão de estar entrando na faculdade, como caloura, provocadas pelos estudantes mais antigos, veteranos, mas tudo dentro das linhas superiores.

Começou assim, com seriedade. Fui ver aquela faculdade. No início, o meu pensamento era que ela depois se transferisse para outra faculdade dentro da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, tudo era difícil. Posteriormente, tudo se complicou, de tal forma que resolvemos desistir.

No primeiro ano de aulas, as práticas de anatomia foram sensacionais para ela. Estava animada, porém amedrontada. Ela mudou-se de lugar, inicialmente para morar com outra colega, adiantada por um semestre. Posteriormente, mudou-se para um apartamento com mais três colegas, onde permaneceu até se formar.

Não sabíamos como deveria ser a vida dela na cidade de Vassouras. Nos finais de semana, ela vinha para o Rio de Janeiro. Conseguimos lugares em que ela pudesse praticar seus conhecimentos, mesmo naqueles primeiros anos, pois entendíamos que seria indispensável aquela prática. Foi assim que trabalhando muito nos hospitais aqui do Rio de Janeiro e em outros locais, formou-se em fins de 1985.

Não sei, honestamente falando, como o tempo passou então. Ela sempre correndo, com aquele uniforme branco, sempre cansada, mas estudando muito, sempre comprando mais e mais livros, muitos deles caríssimos. Eu sempre indo buscá-la nas rodoviárias, ou levando-a para tomar outros ônibus, então, de volta.

No meio daquele curso, ela arranjou um namorado e o trouxe para casa. Era um rapaz amadurecido, provavelmente morador do interior do estado de São Paulo. Pareceu-nos um bom rapaz, por todas as suas características. Veio e foi ficando. Não era um rapaz ruim.

Saímos muitas e muitas vezes para passeios pela cidade e pelo interior do estado do Rio de Janeiro. A Thais, como sempre, sem muito jeito para lidar com rapazes, tratava-o bem. Uma vez, ele veio quando estávamos prestes a sair, para realizar uma longa viagem. A Thais não lhe dizia nada, porque nem sabia como dizer. Os dias foram passando até que, chegada a hora, chamei-o e disse-lhe que, lamentavelmente, ele não poderia permanecer, pois iríamos viajar para um lugar muito distante. Continuei amigo do mesmo, pois nunca tive nada contra ele. No entanto, a Thais acabou aquele namoro com aquele estudante de medicina, logo depois.

Posteriormente, já mais tarde, ela iniciou um namoro com outro colega, o Marcelo. Este era alto, muito bonito e parecia pertencer a uma boa família. Foi com ele que a Thais acabou se casando, depois de alguns anos de namoro.

Nós não conhecíamos o Marcelo, naquela fase inicial. Porém o namoro ia, ao que tudo parecia, muito bem. Mais tarde descobrimos que era um rapaz alegre, descontraído, falante, bastante inteligente. Sem dúvida, era um rapaz com ótima formação.

Ele, o Marcelo, formou-se em medicina cerca de seis meses antes da Thais. Eu esperava que ele, ao se formar, fosse morar em Sorocaba onde residiam seus pais. No entanto, ele, por conta e risco próprios, resolveu vir morar no Rio de Janeiro, arranjou um apartamento pequeno, na Tijuca, comprou alguns móveis velhos, começando a trabalhar. Sua intenção maior era ficar perto da Thais, uma garota formidável sob todos os ângulos.

Posteriormente, a Thais se formou. Fomos até Vassouras, para participar da cerimônia. Fizeram uma formatura belíssima. Ao final, além da diplomação, o baile festivo seria realizado no salão Le Buffet, no Rio de Janeiro, local nobre,  reconhecido por abrigar eventos importantes da cidade. De tudo pudemos participar, honrados, pois era a formatura da nossa querida filha, Thais.

Os dois, posteriormente, foram até estudar Logosofia. No caso dela, tudo se resolveu sem maiores problemas, pois havia ingressado antes. No caso do Marcelo, no entanto, pediram muito para que ele não faltasse. Contudo, depois de ingressarem, não conseguiram manter o ritmo esperado.

De certa forma, aquele estudo sobre a Logosofia ajudou-os a formar melhores conceitos para a vida. Até então, eles já eram pessoas formidáveis. Depois da formatura, a Thais, por estranho que parecesse, não estava muito interessada em se casar com o Marcelo. Parecer bom, ele parecia. No entanto, tudo se complicaria para ela, se aceitasse casar com ele, pois teria de se mudar para a Sorocaba. Foi assim uma luta de alguns anos, até que decidiu que se casaria com ele em meados de 1987. Antes disso, a mãe dele e o irmão, Wanderlei, vieram até o Rio para nos visitar. Depois disso, tudo tinha de entrar nos eixos.

Efetivamente, a ideia deles era a de se casarem no mês de novembro de 1987, se eu não tivesse sofrido um acidente. Quando isso ocorreu, eles suspenderam o casamento, pois eu, inclusive, poderia morrer. Deixaram para decidir sobre isso mais tarde. Por fim, no dia 2 de abril de 1988, eles se casaram em clima de grande festa.

Após o grave acidente que sofri, fui gradativamente melhorando e entendi que aquele casamento tinha de sair. Por isso, apressei-o. Tudo saiu melhor do que esperávamos. A cerimônia foi organizada com muito carinho. A Denise trabalhou muito para que tudo corresse bem; a Minako igualmente, todos, enfim. Eu, apesar de doente, ajudei na medida do possível.

O casamento realizou-se no Colégio Brasileiro de Cirurgiões, no bairro de Botafogo. Foi difícil acertar todas as providências que incidiram naquela festividade. Porém, tudo, como disse, saiu melhor do que podíamos esperar.

O pessoal da Fundação Logosófica compareceu de forma ampla, além dos amigos dos noivos, bem como o pessoal de Sorocaba e de São Roque, sem contar com os nossos outros amigos e parentes. Todo o ambiente da festa foi de muita alegria. No final, eles viajaram para a lua de mel, muito felizes.

Ficaram mais dois anos aqui no Rio de Janeiro, morando num apartamento que eles haviam comprado na Estrada de Jacarepaguá, num lugar agradabilíssimo. Posteriormente, apesar de trabalharem muito, ele como médico cardiologista, e ela, como médica pediatra com longa carreira em CTI, resolveram ir tentar a sorte em São Roque, terra onde o Wanderlei, irmão mais velho do Marcelo, tinha uma clínica médica.

A Thais um dia me procurou e me disse que tinha hesitado muito em ir para aquela cidade de São Roque, no estado de São Paulo. No entanto, resolveu que tentaria se dar bem naquele interior.

– Contudo, – disse – resolvi realizar essa tentativa para ver se dará, ou não, certo. Por isso, vamos deixar o nosso apartamento aqui do Rio de Janeiro, sem nos desfazermos de nada, pois a possibilidade de voltar é grande.

Quanto ao Marcelo, era um bom médico, cardiologista por especialidade, filho caçula de uma grande família, cujo pai era sócio-gerente de uma casa comercial muito em voga em Sorocaba, as Lojas Renner, sendo sua mãe uma distinta senhora, muito culta. De origem italiana, era um rapaz fantástico por todos os títulos. Rapaz alto, elegante, belíssimo, magro, seria, sem dúvida, uma grande par para o casamento da Thais. Descobrimos tratar-se de um rapaz excelente para casar-se com nossa filha.

Marcelo ajudava em todas as questões domésticas dentro de casa, como algo de fundamental importância para a Thais. Comia alimentação japonesa como se fosse japonês, possuindo muitos pensamentos da melhor índole. Pensava como trabalhista, tendo uma irmã que era vereadora naquela cidade de Sorocaba pelo Partido dos Trabalhadores. Ficamos, realmente, felizes com o casamento deles.

Foram viver em São Roque em abril de 1990. Alugaram uma boa casa naquela cidade, no mesmo quarteirão onde morava o médico Wanderlei, seu irmão. Eles tiveram o primeiro filho no Rio de Janeiro. Lucas Renzo, um garotão formidável, muito inteligente e sensível, que certamente virá a ser um bom homem no futuro. Mais tarde, tiveram a sua segunda filha, a Larissa Mayumi, que também apresenta todas as condições para ser uma grande mulher.

Após o casamento, a Thais continuou, como sempre, uma pessoa boa, grande amiga, belíssima, calma, muito preocupada comigo, desde o meu acidente em 1987. Está sempre cuidando de mim, de mil formas diferentes. Como médica pediatra, vem realizando um belíssimo trabalho, primeiro em São Roque e em Sorocaba, onde também atua. Tudo parece bem com ela. Uma coisa que sempre admirei na Thais é que, em qualquer lugar onde trabalhe, seu papel como pediatra de verdadeiro valor logo se mostra de forma natural.

***

Vamos agora falar sobre a Denise, minha segunda filha. Ela é um ser humano complexo para todos nós. Porém, ela é, também, uma pessoa admirável sob todos os outros pontos de vista. É uma constatação, na verdade, que todos os seus amigos fazem.

Na prática, ela sempre foi uma garota ousada, valente até para realizar aquelas ideias que eram convicções suas. Sempre foi bonita, alta, vistosa, elegante, como uma moça de alto nível. Gostava muito dos seus amigos, com os quais fazia as suas saídas nas férias pelo Brasil inteiro.

Lembro-me de suas viagens ao Nordeste do Brasil ou pelo interior do estado de Minas Gerais ou de São Paulo. Para todos os lugares onde queria ir, havia um grupo, pronto para acompanhá-la. Não costumava, de qualquer forma, abusar dos seus amigos, de forma que todos gostavam demais dela.

Tinha ideias de como todos os seres humanos, imbuídos da questão de evoluir, deveriam ser. Queria, portanto, evoluir, porém, à maneira dela. Seus amigos eram muitos, de todas as formas. No entanto, de minha parte, não poderia perscrutar sobre a qualidade deles, embora, depois de conhecê-los, constatasse que eram de bom nível.

De fato, uma vez, quando voltávamos de Vassouras, onde fomos deixar a Thais, que lá permaneceria estudando medicina, dentro da escuridão noturna, no carro que nos conduzia, conversamos seriamente. Era para decidir o que ela estudaria, após terminar o seu curso científico. No início, ela queria estudar biologia, posteriormente, passou para oceanografia. No entanto, as dúvidas continuaram. Já havíamos conversado sobre isso por várias vezes, nunca definindo ela o que iria estudar.

– Pensei muito sobre o que estudar – disse-me ela, sem olhar para mim.

– Repito-lhe, mais uma vez, como sempre, que os pais não devem interferir na escolha da carreira dos filhos, disse-lhe.

– No entanto, muitos pais acham que essa é a maneira correta de ajudá-los – comentou, concordando de certa forma com minha colocação.

– Como? – arguiu ela.

– Porque não deverá ser o pai que deverá dizer ao filho, que esta será a melhor carreira para o mesmo. Não podemos querer, como no exemplo dos grandes homens, que o filho de Einsten seja outro Einsten, ou que o pai de Emerson Fittipaldi tivesse sido outro campeão de Fórmula 1. Sem dúvida, tudo isso representa um grande erro dentro da nossa tradição.

– Não sei, no entanto, como os pais podem ajudar os filhos nessa escolha da carreira universitária? – perguntou a Denise, aguardando resposta.

– Os pais devem ajudar os filhos, para que estes pensem com sua capacidade normal sobre o que realmente querem fazer – falei, convictamente. – Nem quero – disse-lhe ainda, de forma veemente – que os filhos escolham por influência dos pais. Isso deve ser o resultado de uma longa análise, sem interferência em sua liberdade de escolha.

A Denise ficou calada por algum tempo. Eu descia as montanhas naquele caminho de volta, em direção ao Rio. Penso que andei alguns quilômetros, quando ela disse, com a maior paz do mundo, sem qualquer pressão psicológica da minha parte.

– Decidi, depois de pensar muito, em estudar Direito.

– Como? – perguntei, sem entender aquelas palavras.

– Pois é, vou ser advogada – disse-me calmamente a Denise.

– Não entendi! – disse-lhe. – Ou melhor, quero dizer – fiquei atrapalhado – acho isso uma coisa fantástica, pois dessa forma, como lhe disse antes, você poderá realizar tudo aquilo que quiser, no seu sentido superior.

Ela esperou um pouco, para me dizer:

– De fato, havia determinado que estudaria tudo, menos Direito, pois este é o seu campo de trabalho. E isso seria altamente ruim para o meu futuro. No entanto, depois de pensar em tudo, cheguei à conclusão que seria a melhor coisa que ocorreria comigo, pois sou uma lutadora, quero um mundo melhor, sei escrever bem e tudo dentro dessa área agrada-me.

Depois, continuou:

– No entanto, gostaria de dizer, de outro lado, que você nunca deverá interferir no meu futuro, dentro dessa área, pois quero crescer dentro do meu modo de ver e agir. Em outras palavras, vou estudar Direito, mas sem estar sob a sua influência direta.

Concordei integralmente. Vi que ela havia escolhido uma carreira belíssima, apesar de tantas dificuldades que normalmente existem. Fiquei profundamente feliz com tudo isso. Ela chorou copiosamente, sem dizer uma só palavra, provavelmente, de emoção.

Durante muitos anos, tudo isso aconteceu. Ao fim do primeiro ano, se não me engano, ela resolveu sair do nosso escritório, porque eu estaria influindo no seu trabalho. Ela iria arranjar outro emprego, num escritório, ali perto, para aprender as regras daquele trabalho. Não gostei, mas nada havia a falar, de forma que ela foi para fora do nosso escritório naquela ocasião.

Um ano depois, ela voltou. Já tinha visto como os outros trabalhavam e queria voltar, inclusive para aproveitar um pouco da enorme mordomia que existia no nosso escritório. Trabalhou, assim, por vários anos, sempre dentro de suas características de limpeza e rapidez.

Ela havia namorado o Sérgio, advogado em nosso escritório, desde o início de sua Faculdade de Direito, em 1984. Gostávamos de tudo aquilo, pois ele seria uma espécie de filho que não tivemos, tais eram as suas qualidades, quer como ser humano, amplo, sincero, bondoso e, igualmente, como brilhante advogado, na área profissional. Afinal, se o Sérgio viesse a ser nosso genro, seria uma coisa maravilhosa para todos nós.

Em fins de 1986, o Sérgio veio a sofrer um acidente terrível. Vinha naquela madrugada, provavelmente da Barra da Tijuca, em direção a sua casa no Catete, quando, por uma circunstância estranha, teria dormido ao volante do carro e batido de forma violenta numa árvore existente em frente a um posto no Jardim Botânico. Ele quase morreu, naquele momento, segundo soubemos. Fui informado do ocorrido e lá fui. Vi o carro e aterrei-me.

– Nossa. Será que se salvou? – foi a pergunta que fiz então.

– Não é possível que seja coisa leve, pois quase toda a árvore ingressou para dentro do carro. Não sobrou quase nada do carro – foi o que concluímos então.

Tivemos, depois, muito trabalho para ajudá-lo, estando num pronto-socorro, pois seus pais não se encontravam no Rio de Janeiro. O levamos ao Hospital Silvestre, onde nos disseram que o médico oftalmologista era admirável, para tratá-lo, mas a situação do Sérgio era deveras terrível.

Lá, teve de se operar e verificou-se que ficaria sem o olho esquerdo. Quanto ao olho direito, não enxergava quase nada no momento. Ninguém sabia o que iria acontecer com ele no futuro. Estava muito machucado em outras áreas, além do seu rosto, que foi a parte mais ferida. No entanto, no estado geral de saúde, ele estava bem.

Ficou naquele hospital por muitos dias. Sei pai chegou depois, para ajudá-lo no que fosse necessário. Mais tarde, a mãe do Sérgio, que era separada do pai dele, morando em São Paulo, casada novamente, veio vê-lo. Tudo correu mais ou menos como prevíamos.

Passaram-se vários meses até ele se sentir novamente bem, para continuar trabalhando. Vi-o depois. No início, achava que não conseguiria ler, por sua disfunção ótica. Posteriormente, à medida que o tratamento avançava, passou a ver cada vez mais.

Em fevereiro de 1987, chamei-o e pedi que voltasse a trabalhar, pois era o que desejava. Ele, naquela ocasião, não sabia se devia ou não voltar. No entanto, em razão do meu pedido, depois de pensar muito, voltou. E tornou-se, desde então, um brilhante advogado.

Paralelamente, gostar de uma relação é algo importante, porém, nem sempre ocorre como esperamos. A Denise sempre foi brilhante e rápida em suas ações; já Sérgio era mais calmo, tranquilo, sem aquela rapidez, tão esperada em outras pessoas. Sempre se tentou, de todas as formas, fazer aquele casal ser amigável. Contudo, por qualquer razão, nunca se deram bem, embora fossem muito amigos.

Anteriormente, eles já haviam se separado. No entanto, por razões deles, ou pelas circunstâncias, haviam reatado. Contudo, pelas razões acima, tudo voltou à estaca zero, como se diz, no início de 1989.

Quando resolvi mudar o sistema de trabalho do nosso escritório, deixando de tê-los como empregados, mas, sim, como sócios, em março de 1989, tudo isso estava algo indefinido, pelo menos para mim. No entanto, não pretendia desfazer-me deles, pois existia até certo compromisso, de minha parte, para conservar o Sérgio, mesmo que houvesse dificuldades de relacionamento com a Denise, por acordo firmado, logo no início, a pedido dela, para que ele viesse a trabalhar conosco.

Efetivamente, quando ela estava no segundo ano da sua Faculdade de Direito, constatou que o Sérgio não conseguia trabalhar em nenhum escritório de advocacia, e isso estaria arruinando a sua vida. Tentou conseguir que o admitisse. No entanto, por minhas razões, na época, sólidas, eu recusei. No entanto, apesar disso, nos meses seguintes, ela insistiu, conseguindo o seu objetivo.

Além disso, passei a conhecê-lo, pois aparecia em nossa casa, eis que estavam namorando. Até que, em determinada época, chamei-a e lhe disse que poderia aceitá-lo, no nosso escritório, se ele viesse para trabalhar de graça, pois iria lhe fazer um grande favor. Mas que, se desse certo, eu não o tiraria, pois problemas sempre existem entre os seres humanos. Ela concordou com tudo aquilo, naquela ocasião. Um mês depois de ter começado, fiquei com muita pena daquele estudante, de forma que comecei a pagar-lhe um ordenado, embora pequeno.

De uma maneira ou de outra, o Sérgio sempre foi figura de proa, dentro do nosso escritório, desde então. De forma que não me competia mandá-lo embora, mesmo quando, depois dessa separação, em meados de 1989, ele veio e insistiu para sair, porque achava que tudo aquilo estava errado. Tive de realizar um trabalho enorme para conservá-lo dentro do nosso escritório, desde então.

Após isso, ela começou a trazer um amigo para casa. Depois, saía sem ter horário certo para retornar. E eu, evidentemente, não estava gostando nada de tudo aquilo. Eu lhe disse, então, que ela não tinha de obedecer às minhas instruções, mas que enquanto vivesse em casa teria de retornar dentro de determinadas condições. Ou, então, que ela se estabelecesse com apartamento próprio, separadamente, para viver a sua vida.

Sugeri, então, que ela viajasse ao Japão, para conhecer o país. No início, ela teve dúvidas, mas, de repente, aceitou tal ideia, pois realmente queria saber como era aquela importante terra dos nossos ancestrais.

Ela viajou, em meados de outubro de 1989, ao Japão, com o objetivo de permanecer por lá por pelo menos 90 dias, talvez por mais tempo. Após chegar ao Japão, tendo realizado os seus contatos, sobretudo com o Shogo Kawamura, meu primo, que morava em Tóquio, ela se deu conta de que estava com seu visto irregular, pois, por alguma razão que desconhecia, já que havia pedido prazo superior a 90 dias, concederam, no entanto, prazo máximo de 30 dias. Tivemos de correr para alterar essa situação.

Nesse meio tempo, em razão a tantos contatos, até telefônicos, com o pessoal do Japão, surgiu a ideia, que acabou dando certo, de irmos novamente àquele país asiático, isto é, eu, junto com a Minako e a Káthia. Fomos para lá e ficamos por cerca de dois meses, partindo no dia 21 de novembro de 1989.

Viajamos muito pelo Japão inteiro, a Denise sempre tomando conta de todas as nossas providências, para realizar as coisas lá no Japão, fazendo reservas em hotéis e viajando de trem, com passagens pagas em 21 dias, pelo que percorremos todo aquele país, na ocasião.

Tivemos várias conversas juntos, sobre muitos aspectos, antes e durante aquela viagem ao Japão. Uma das conversas mais sérias foi sobre a necessidade que eu via de que ela se casasse oficialmente, mesmo que depois viesse a se desfazer aquele casamento.

Na verdade, ela entendia, honestamente, que a necessidade de casamento oficial era inútil. Ela, como disse, pensava sinceramente nisso. E, provavelmente, assim pensava o seu namorado. Por isso, defendia aquele ponto de vista com tanta convicção.

Do meu lado, tudo aquilo era extremamente complexo. De alguma forma, concordava com a Denise em suas colocações. Teoricamente, também achava que os casamentos oficiais não correspondiam aos anseios verdadeiros do ser humano e que por isso aquilo precisava ser revisto. De outro lado, contudo, talvez pelo fato de ser pai da Denise, não concordava realmente com casamentos não oficiais. Daí a minha luta, para defender um ponto de vista que, para mim, teoricamente, era problemático.

Não tive uma ou duas conversas com ela sobre este assunto. Antes de viajar, já tínhamos tido algumas conversas. Posteriormente no Japão, durante as nossas viagens de trem, fui insistindo sobre a conveniência de um casamento oficial.

– Penso, honestamente que, ao dizer que, embora os casamentos oficiais fossem, sob muitos aspectos problemáticos, deveríamos saber que as mulheres envelheciam mais rapidamente, com o passar dos anos. E que, por isso, se naquela ocasião, o homem entendesse que, afinal, não era casado, ser-lhe-ia fácil desfazer-se dela, para passar a viver com outra mulher – sentenciei.

– Mas esse risco pode ser o contrário. A mulher poderá conservar-se jovem e o homem envelhecer após alguns anos. Então tudo isso poderá ocorrer de forma diferente, ou seja, que a mulher poderá abandonar o homem, para juntar-se a outro mais jovem – resmungou ela, algo preocupada.

Depois de passar alguns dias, ela me procurou, e disse que realmente tinha pensado muito naquele assunto e decidido, agora, que casaria, de forma oficial, como eu pedia.

Sinceramente, ela começou a chorar, como sempre fazia, quando alguma coisa séria acontecia na vida dela. Eu, sem saber o que dizer, fiquei esperando tudo passar, para acertar outros passos na nossa vida.

Algumas semanas depois, ela resolveu que tinha de vir embora antes de nós, de forma que nada pudemos fazer para segurá-la. Assim, nos primeiros dias do mês de janeiro de 1990, aDenise viajou de volta ao Brasil. De certa forma, estabeleceu que ela se casaria logo que pudesse.

Regressamos do Japão no dia 21 de janeiro de 1990, bastante animados com o que vimos naquele importante país. E, depois disso, recomecei a trabalhar, retomando a minha rotina.

Alguns dias depois, no entanto, a Denise me procurou e disse que queria se casar com o seu namorado, se nós concordássemos, assim que as autoridades oficiais regularizassem os documentos necessários. Foi dessa forma que ficou marcado o dia 13 de março de 1990 para o seu casamento, sem maiores festas ou outras coisas, que eles, como eu também, não queríamos realizar, por acharmos que seriam bobagens.

Após aquele casamento, que nos pareceu bom, de alguma forma, nem tudo correu como esperávamos. Seu trabalho, no nosso escritório, recomeçou dentro de novas linhas, e tudo pareceu caminhar bem, pelo menos por alguns meses. No entanto, por razões que nunca entendi, ela não quis continuar trabalhando por muito tempo mais.

Durante alguns meses, a Denise continuou trabalhando, de forma avulsa. Posteriormente, ela ingressou num curso realizado pelo Clube dos Magistrados, onde realizou um curso dificílimo, para que depois pudesse vir a ser juíza. Estava indo bem, no particular.

Contudo, a Denise é uma pessoa excepcional, por todas as razões que conheço. Diz que não está preocupada com as coisas do nosso escritório, mas no fundo sei, convictamente, que está.

Quanto ao seu marido, é um rapaz brilhante. Filho de descendente de turco e de uma descendente de italiana, ele quis fazer a faculdade de Direito, mas ficou frustrado ao fim do primeiro semestre. Quando falo que ele é brilhante, todos pensarão que se trata de visão boníssima do sogro, o que não é verdade. Ele é brilhante, porque pensa como ser humano de alta condição intelectual. Não comunga da minha ideologia, porém, sabe que muitas das coisas que digo são da maior importância.

Ele sempre foi defensor ardente de ideias, por mim não acatadas, do trabalhismo do Leonel Brizola. Porque, na sua visão, essas foram as ideias de seu pai, um grande defensor, e que até comandou um programa de rádio, para defendê-las.

Hoje, depois de se casar com a Denise e conversar muito comigo, ele deixou de ser radical, embora ainda defenda suas ideias com muito vigor. Tornou-se diretor de uma Fundação voltada para o desenvolvimento da parte cultural da cidade do Rio de Janeiro. Escreveu também um livro, com uma coletânea de artigos sobre crítica de cinema, área em que ele se destaca.

A Denise e o seu marido comparecem, com alguma frequência, à nossa casa, para nos visitar. E nós também os visitamos, amigavelmente. De forma que estamos bem com eles, em todas as áreas, que pessoais, quer do lado profissional.

Numa ocasião, a Denise prestou um concurso para escolher quatro procuradores para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Eram mais de 600 candidatos. No entanto, com seu brilho invulgar, ela se colocou em 5º lugar, figurando entre os 14 selecionados para o exercício dessa importante tarefa.

A Denise teve sua primeira filha, a Juliana, que é uma belíssima garota, dona de uma inteligência exemplar. Posteriormente, nasceu o Bernardo, bastante esperto, dono de um sorriso encantador, e, depois, o João, tranquilo até para dormir. Pensando sobre a vida da Denise, penso que ela tem uma vida linda pela frente. É excepcionalmente inteligente, de forma que irá vencer na parte profissional. Está indo bem na parte familiar, de forma que espero um grande futuro para ela.

***

Quanto à Káthia, diferentemente das outras, era uma garota organizada. Organizada, porém, ligeiramente temperamental. Se a Denise não era organizada, tudo na vida de Káthia era organização pura. Dentro das suas gavetas, tudo em ordem, parecia até uma garota especializada em administração. A Káthia era diferente das demais, em muitos sentidos, mas era uma garota formidável, também, por todas as razões que conhecemos.

A Káthia procurou-me dizendo que a Vânia, que comandava uma confecção de bolsas, lhe havia falado novamente se não lhe interessaria abrir um escritório denominado “Pronta-Entrega”, uma vez que estava, há alguns meses, vendendo os produtos que fabricava através de “sacoleiras”. Na verdade, era a terceira vez que a mesma lhe falara a respeito. No início, não me preocupei, porém, depois, comecei a achar interessante, pois, embora jovem, ainda com 21 anos, a Káthia tinha condições para assumir esse papel, isto é, de ser sócia-gerente de uma nova empresa.

Tinha ela se formado em Marketing e Propaganda na Faculdade de Comunicação Hélio Alonso, deixando-me feliz com isso. Ela já havia trabalhado em algumas empresas de marketing e propaganda, na maior parte como estagiária, porém, tudo de forma provisória. Futuro na profissão ela tinha, pois o campo era extenso. No entanto, honestamente falando, estava algo deprimida pela dificuldade de encontrar algum trabalho que lhe desse condições de se desenvolver em tal carreira.

Ela se formara na parte fundamental no Colégio Logosófico, posteriormente concluiu o curso científico no Colégio Santo Agostinho e, finalmente, sem minha ajuda maior, determinou que estudaria marketing e propaganda, ingressando na Faculdade de Comunicação. Tudo correu melhor do que esperávamos, sem maiores problemas.

Preocupou-me muito depois que ingressou naquela faculdade, para estudar uma determinada matéria, que, a nós, parecia estranha. No entanto, foi sem dúvida uma escolha dela, para que tudo andasse naquele ritmo. Ao mesmo tempo, talvez porque ela tivesse essa facilidade de determinar o que queria, estávamos calmos e tranquilos no particular.

Bonita, magra, elegante, a Káthia era, sem dúvida, um ser humano com condições excepcionais, para todas as suas funções. Numa ocasião, ela havia adquirido um automóvel da marca Chevette, que havia pertencido a sua mãe, comprando-o com parte de um dinheiro que havia ganhado, além de ter uma grande ajuda de nossa parte. Posteriormente, ela resolveu comprar um Chevette novo. Nem entendi muito bem o raciocínio que ela realizou, mas logo estava com um carro novo, da cor preta, belíssimo em todos os sentidos.

Inicialmente, ela namorou um rapaz elegante, embora algo calmo, mas que não possuía condições para acompanhar sua vida. Estava bem com aquele namorado. No entanto, por nossas razões, achávamos que ele tinha de evoluir mais para vir a casar-se com ela no futuro. Nesse meio tempo, porém, ela se desligou daquele rapaz, sempre amigavelmente, começando a namorar o Ricardo, um eficiente professor de vela, formado anteriormente em economia, o qual me pareceu bem, apesar das aparências.

Independentemente de tais relações, a Káthia era uma excelente velejadora. Aprendeu a velejar comigo. Tornou-se melhor na arte de velejar do que suas irmãs, pois parece que nascera com boas tendências para isso. Velejou sempre, e com muito mais coragem do que eu, no particular.

De forma que, no início do ano, depois de pensar sobre a proposta recebida para abrir uma nova empresa, para vender todas as bolsas fabricadas pela Vânia, fui com a Káthia visitar aquela moça lá em Benfica. É lógico que estava animado, pois achava que a Káthia tinha todas as condições para desenvolver aquele trabalho.

Fui falar com a Vânia, seu irmão Vinícius e o Carlos Alberto, seus sócios, naquela fábrica. Chegamos ali, mas a Vânia não estava. O Vinícius, no entanto, lá estava e recebeu-nos da melhor maneira. Ficamos conversando com ele, naquele local, até que a Vânia chegou.

Vi que a fábrica era muito pequena. Eles trabalhavam com dificuldades financeiras. Sua produção em grande parte era encomendada a terceiros, que posteriormente realizavam suas entregas. As bolsas que fabricavam, eram modelos novos, interessantes, relativamente modernos, embora de materiais médios. Os preços eram razoáveis para se vender.

Expus, então, o meu ponto de vista, em parte aproveitando minha experiência anterior como advogado de empresas. Disse-lhes que a Káthia teria de ser a sócia-gerente da nova empresa, e que seria indispensável existir exclusividade da distribuição dos produtos. Sugeri, portanto, que a Káthia tivesse cerca de 40% do total do capital social, a fábrica tivesse cerca de 40% e a outra pessoa tivesse cerca de 20%.

Eles se interessaram muito com o novo escritório de “Pronta-Entrega”. Em razão disso tudo, resolvi preparar a minuta do contrato social, bem como que a Káthia ficou de arranjar um local adequado, cuidando dos demais detalhes indispensáveis.

Posteriormente, informaram que queriam que o Vinícius ficasse como sócio, representando a parte da fábrica, informando que a outra moça, que tinham arranjado para trabalhar na loja, havia desistido. E que, portanto, a sociedade seria de 50% do capital social, para cada uma das partes, passando à sócia-gerente, Káthia, a depender da prévia aprovação do Vinícius.

Como tudo isso ficou acertado, contratei um escritório de contabilidade, e demos início ao trabalho de constituição da referida empresa, que se denominou “Mabruk”. As atividades, desde então, foram intensas. Eu achava que a Káthia teria dificuldades em conseguir vender tais bolsas. Por isso, teve de arranjar mais vendedores avulsos, para trabalharem isoladamente. No entanto, pelo trabalho realizado, de forma impressionante pela Káthia, ingressou ela na área das empresas que atuam na venda de tais bolsas, demonstrando um raro sucesso. Talvez, falando honestamente, não tenha ganhado muito dinheiro, com o trabalho realizado até então. Contudo, aprendeu mais do que seria lícito esperar em atividades semelhantes. Hoje, por isso, ela sabe o que significa notas fiscais, faturas, duplicata, sabe o que é ter a tentativa de protestar títulos, sabe manejar as contas bancárias, sabe como calcular os tributos, quer o ICM, quer o ISS, os encargos previdenciários, sabe o que é uma microempresa, e muito mais coisas do que seria de esperar em atividades semelhantes.

A vida de Káthia sempre foi algo de inolvidável para todos nós. Por alguma razão que desconhecemos, nasceu com um temperamento complexo. Tinha um jeito alegre de ser, mas também a facilidade em achar que os outros estavam sempre complicando sua vida. Não obstante, era uma garota bastante bonita, agradável e sabia agradar os outros.

Formada em Marketing e com vários cursos de pós-graduação, além de trabalhar bastante, com muito tato, era uma moça bastante inteligente. De forma que, quando eu tinha dúvidas a respeito de qualquer coisa, consultava-a, recebendo importantes conselhos.

Além disso, a Káthia também viajou bastante. Primeiro foi ao Japão conosco, tendo ficado por cerca de dois meses naquele importante país, inclusive uma parte dos Estados Unidos, como Los Angeles e São Francisco. Trabalhou, depois na Chris-Colombo, uma empresa de publicidade, na qual chegou a exercer cargos importantes. Namorou, ao mesmo tempo, um rapaz problemático, deixando-o quando realizou uma longa visita à Europa no seu estilo, isto é, viajar de trem, hospedando-se em albergues, com mochilas nas costas, na companhia de uma colega de ocasião, que estudava medicina.

Posteriormente, começou a trabalhar para o Grupo Ekko’s, onde realizou um bom trabalho na área de marketing, e arranjou outro namorado, mais problemático ainda. Melhor dizendo, o rapaz em questão não era mal, mas não conseguia ganhar dinheiro.

De certa forma, pensamos em aceitá-lo, adaptando as coisas pensando no futuro. Chamei-o e lhe disse:

– Olhe – eu lhe disse – você me parece ser um rapaz com bons princípios. E que está, ao que me parece, bastante interessado na Káthia, o que me alegra, sob determinados ângulos. Sei que teve uma vida cheia de problemas, razão porque deixou sua primeira esposa, bem como seus três filhos, na cidade de São Paulo. Sei que, em razão disso, tem de pagar o custeio da vida dos filhos, pelo menos, com o que nada temos a opor. E está, entretanto, com dificuldades em acertar quanto ao trabalho normal, apesar de ser capaz de realizar muitas coisas importantes.

– De fato, deixei a cidade de São Paulo para vir trabalhar no Rio de Janeiro, e, quanto ao trabalho, estou tentando acertar.

– Contudo, como conheço esses problemas, eu daria um determinado tempo, talvez cerca de dois anos, para acertar a sua vida aqui na cidade do Rio de Janeiro, para acertar a situação financeira. Se isso der certo, no que ajudarei, pensaremos em acertar a situação com a Káthia. Porém, se o tempo passar e nada disso se resolver, eu gostaria que você e a Káthia se desligassem, porque significa que não terão sucesso.

Foi o que ficou acertado naquela época, com base nesse entendimento meu. Nada se acertou na vida do rapaz, apesar de toda a ajuda que lhe prestamos, de forma que depois de decorrer dois anos, eu lhe disse que queria que a continuidade daquela situação fosse revista.

Na verdade, eu entendia que eles iriam se sentar, analisar a situação total e concluir o que fazer doravante. Contudo, por brigas internas, de cuja origem não fiquei sabendo, eles resolveram separar-se em caráter urgente logo depois. E, é claro, que fiquei calado, apenas observando a situação.

A Káthia ficou alguns meses se remoendo, concluindo que acabara de fazer a coisa acertada, resolvendo depois visitar a cidade de Nova York, para ver se poderia fazer alguma coisa lá, ficando por alguns meses.

Voltou, com novas amizades, e retornou seus contatos, utilizando o sistema da Internet, ou por telefone. Com isso, um rapaz que conhecera naquela cidade americana começou a manifestar interesse em conhecer a cidade do Rio de Janeiro. Repetiu a visita por três vezes, recebendo, de nosso lado, todo o nosso carinho. O mesmo admirou-se de que a cidade do Rio de Janeiro fosse tão bonita e oferecesse tantos aspectos positivos. Finalmente, com base nessa amizade, a Káthia resolveu fazer um curso de pós-graduação de dois anos, na cidade de Nova York.

42. 

 

Participar, com alguma frequência, de reuniões gerais, não só dentro da filial da Fundação Logosófica do Rio de Janeiro, como também em outras filias – Belo Horizonte, São Paulo, Goiânia, Brasília ou Uberaba, tornou-se um costume, entre nós, naquelas décadas de setenta e oitenta. Eram sempre reuniões agradáveis e que nos ajudavam a evoluir.

De certa forma, no segundo semestre de 1979, foi criado um grupo de estudantes de Logosofia que iria até Montevidéu, no Uruguai, convidar os estudantes de lá para o Congresso que realizaríamos no Rio de Janeiro em meados de 1980. Poderia tal Congresso correr bem, como planejávamos, mas a presença dos estudantes do Uruguai e da Argentina era fundamental nesse sentido.

– Será que virão? – perguntávamos. E não sabíamos qual a resposta dar.

– Virão após estudar os temas marcados? – era outra pergunta, igualmente sem resposta.

Não sabíamos,em verdade. Taisdúvidas existiam por que, no Uruguai e na Argentina, a vida estava tremendamente cara. Razão, portanto, a mais para que fôssemos divulgar o Congresso de Logosofia e criar neles a necessidade indeclinável de virem ao Brasil, com os temas estudados.

O grupo em questão foi formado então. Inicialmente, nos reunimos para trocar ideias do que realizaríamos. Posteriormente, avisamos aos estudantes de Montevidéu que iríamos, de modo que a nossa visita foi aguardada com ansiedade, segundo nos relataram.

Num belo dia, em fins de 1979, fomos ao aeroporto e lá tomamos, nós cinco, um avião que nos conduziu até o Uruguai. A nossa ansiedade também era enorme pela importância da missão que nos competia exercer.

Efetivamente, lá estavam os principais estudantes, como a Alcira Lopes Ibarburu, Oscar Olave, Enriqueta Olave, Dardo V. Cabiró e várias outras pessoas, formando um grupo de mais de cinquenta pessoas daquela importante Fundação Logosófica de Uruguai.

Fui convidado para falar sobre as atividades do Congresso de Logosofia num programa de televisão, repentinamente, onde me saí maravilhosamente melhor do que seria de se esperar. Perguntaram-me, por exemplo, qual a grandiosidade do referido Congresso, ao que respondi com muita convicção:

– Bem, o Congresso de Logosofia será grandioso, pois estamos esperando a participação de congressistas de vários países do mundo inteiro, tendo, ao que nos consta, a confirmação de várias delegações da Argentina, do próprio Uruguai, além do México e dos Estados Unidos, etc.

Perguntas sobre os objetivos do Congresso, eu pude responder com muita firmeza:

– O objetivo maior desse Congresso é prestar uma justa homenagem ao criador da ciência logosófica, Carlos Bernardo González Pecotche, além de divulgar os resultados positivos da aplicação dos seus ensinamentos na vida de todo ser humano.

No meio daquela animação, cumprimentaram-nos e nos levaram para o centro da cidade, conduzindo-nos a um bom hotel, onde ficamos hospedados. Aprontamo-nos naquele hotel e seguimos para a Fundação Logosófica – onde fomos encontrar com aquelas figuras importantes da obra, na cidade de Montevidéu. Conheci aquela importante sede da Fundação Logosófica, um prédio de construção clássica, belíssimo, onde a Logosofia crescera sob a paternidade de Raumsol. Pude ver, então, as salas lindas do lugar, os diversos compartimentos daquela magnífica mansão. Depois, fomos ver os jardins, prosseguindo até o auditório, um prédio ao fundo, e pudemos penetrar nele, com bastante afeto.

Disseram-nos, então, que Raumsol, antes de falar aos seus discípulos, ficava por algum tempo numa sala, no interior do auditório, para concentrar-se. Tudo aquilo representou, ao que posso dizer agora, momentos de grande estímulo para todos nós. Ali, de certa forma, foi possível entender tudo aquilo que acontecia com Raumsol, quando falava ao público, nos seus tempos em vida.

Posteriormente, fui conhecer o prédio da Escola Primária e do Colégio Logosófico e todos aqueles lugares que foram tão caros a Raumsol, enquanto vivia. Fiquei emocionado com tudo aquilo, ouvindo tantas explicações.

Na tertúlia especial que dirigimos, pudemos falar um pouco sobre os muitos aspectos que nos levaram para aquela importante cidade, para convidá-los a ir ao Congresso de Logosofia, que teria lugar em meados de 1980, no Rio de Janeiro. Pude realizar várias reuniões para tratar das questões encarregadas, inclusive para convidar a Alcira Lopes Ibarburu para dirigir uma importante reunião do Congresso de Logosofia do Brasil, mediante a autorização do presidente do Conselho de Administração local, Dardo V. Cabiró.

Um grande número de estudantes, muito acima de cem, veio ao Brasil posteriormente, com a melhor disposição, todos estudando os temas do Congresso, fruto do estímulo dos trabalhos que nós realizamos então.

Foram momentos do melhor estilo logosófico, que vivemos naquela época admirável. Efetivamente, o Congresso Internacional do Cinquentenário da Obra Logosófica, realizado no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1980, foi uma obra das mais importantes em minha vida, por sua grandiosidade e por força de sua expressão no mundo de hoje.

Anos antes, em 1969, o Rio de Janeiro realizara a II Reunião Internacional de Docência Logosófica, pequena ainda, porém importante. Foi um grande desafio naquela época, contudo, realizado com todo o êxito, com convidados de Logosofia da Argentina e do Uruguai. A realização, em 1980, de um Congresso Internacional, com 800 participantes, maior em todos os sentidos, representava um desafio ainda maior.

O objetivo deste Congresso seria o de mostrar a transcendência do trabalho realizado por Raumsol como criador daquela importante ciência logosófica, além de alertar para as experiências práticas que seus estudantes teriam já realizado, capazes de alterar tudo no mundo inteiro. De fato, a maioria dos seres humanos pouco sabia da atuação dos pensamentos ou dos sentimentos e do funcionamento da mente e da sensibilidade humana.

Cabia ao Rio de Janeiro, antes de qualquer coisa, elaborar os objetivos e o temário necessários, cuidando para que tudo corresse dentro os padrões previstos. O trabalho, evidentemente, seria sério, pois, antes do Congresso, teríamos de realizar reuniões preparatórias, para verificar como estariam os estudantes em cada filial, centro de estudos ou em outros órgãos da Fundação Logosófica no exterior.

Lembro-me que estudamos muito toda a matéria daquele Congresso no Rio de Janeiro, indo depois a duas reuniões preparatórias. Todos os estudantes demonstraram que estavam bem nos seus estudos e no relato de experiências vividas.

Criamos várias comissões, destinadas ao estudo de cada tema, para realizar os trabalhos funcionais daquele importante encontro, pois não receberíamos estudantes apenas de Belo Horizonte, de São Paulo, Brasília, Goiânia, Uberaba, Curitiba, Florianópolis ou de outros locais, mas também do Uruguai, México, Estados Unidos, Israel e, igualmente, da Argentina.

A realização de um Congresso dessa índole, de caráter internacional, demandava muito trabalho, quer para reservar hotéis para tanta gente, quer para cuidar do pessoal que chegava, ou das vindas e voltas entre os hotéis e a Fundação Logosófica e, ainda, com relação ao regresso dos congressistas depois daquele importante evento. Tínhamos de cuidar dos folhetos e das folhas de instruções, para que fossem entregues a cada congressista, providenciar serviços médicos, preparar bazares, arranjar pessoal para cuidar de tudo, inclusive de alto-falantes, arrumação de sala, marcação de horário e, sobretudo, cumprir com os objetivos marcados.

Tivemos de divulgar todo o trabalho do Congresso na cidade do Rio de Janeiro, para o que realizamos vários encontros com diversas autoridades locais. Distribuímos cartazes gigantes em ônibus e nos locais adequados, clubes, associações, embaixadas, escolas, faculdades. A divulgação de todo o Congresso com base em seus temas principais, em rádio, televisão, jornais e revistas, foi ampla e bem-sucedida.

Concomitantemente, realizamos outros eventos para valorizar aquele Congresso, como exposição de livros, históricos da obra logosófica e convites às autoridades locais para diversos eventos, como ato de abertura, palestras sobre temais variados, etc.

Cuidar da comida para tantos participantes foi outro trabalho importante realizado com a ajuda da Rosa, que inovou na matéria, trazendo alimentos leves, de alto teor nutritivo, deliciosos. Não só para os almoços, mas também para outros eventos, como cafés e lanches de noite, além de realizar um trabalho dos mais relevantes, para atender a tantas pessoas, em tempo curtíssimo. Todos ficaram satisfeitos com aquela inovação então introduzida.

De igual forma, arrumar as salas para casa grupo, inclusive com mesas especiais, não foi tarefa fácil, pois não tínhamos materiais para isso. Lembro-me que foram compradas tábuas de madeira compensada, que, depois, foram cobertas de tecido para mobiliar todas as salas. A decoração de cada sala, com muitos itens ilustrativos do evento, também foi atendida com sucesso.

No nosso auditório, não tínhamos cadeiras suficientes, de forma que tivemos de comprá-las. Fui ver várias cadeiras, e escolhi as de plástico, agradáveis para se sentar. Posteriormente, tivemos de realizar um trabalho dos mais difíceis, de juntá-los e pregá-los, para que não saíssem do lugar, para atender a tão grande número de pessoas. No final, embora tivéssemos dúvida, verificamos que comportou a todos, com conforto.

O Congresso Internacional de Logosofia no Rio de Janeiro foi realizado de forma brilhante. Depois que todos foram embora, felizes com aquele evento, pudemos respirar um pouco, sobretudo para pensar melhor sobre tudo aquilo que havia acontecido. Com a sua realização, pudemos, talvez pela primeira vez, ter uma ideia da grandiosidade da obra de Raumsol. Devíamos divulgá-lo como um dos grandes mestres da humanidade.

Descobrimos, como se fosse algo de grandioso que, enquanto não resolvêssemos conscientemente os nossos problemas, todos os males da humanidade continuariam atuando. Constatamos que cada um de nós era o responsável por todos os males do mundo.

As experiências que, aos milhares, todos os estudantes relataram, demonstravam, com efetividade, que a Logosofia não era uma ciência dos livros e das teorias bonitas, mas que, sem dúvida, era altamente prática e fundamental para todos nós.

Foi, sem dúvida, um evento dos mais importantes para nós, dentro da obra logosófica, no Rio de Janeiro, pois deu-nos a convicção de que estávamos prontos para realizar qualquer tipo de evento, que em grandiosidade, quer em alta qualidade.

43.

 

Hoje, sou um bom advogado. Talvez não seja brilhante como gostaria. Meu escritório fica no Centro Cândido Mendes, bem elaborado, com uma belíssima visão daquela imponente ex-capital do Brasil e, sobretudo, com um esplendoroso panorama da Baía de Guanabara. As janelas são grandes, permitindo que se veja todo o lado de fora, com quase 70% de toda a parede externa.

Adquiri-o em 1978, cerca de um ano depois do lançamento do edifício. Na verdade, fui a esse evento, mas não havia, naquela ocasião, um grupo de salas que me agradasse, isto é, no alto e pelo lado da Rua da Assembleia. Não me animei em comprá-lo, então.

Relembrando o episódio daqueles dois grupos de salas, com cerca de 90 metros quadrados, havia proposto ao Zeniiti que comprássemos uma sala, apenas uma sala, em condomínio. Ele, no entanto, não quis, pois morava longe, em Ribeirão Preto. Razão pela qual me recomendou que tentasse comprá-la sozinho.

No entanto, estudando o assunto, vi que o dinheiro que tinha era insuficiente para tanto.

– Não dará! – foi a conclusão a que cheguei.

Além disso, comprar um grupo de salas naquele lugar representaria algo de positivo e que encontraria boa ressonância em meu espírito. No entanto, já tinha um grupo de salas, mas alugadas; passaria a ter outro, embora como proprietário. Porém, pensando no futuro, conclui que um grupo de salas pequeno, não daria para apaziguar os mais acalentados sonhos de ter um escritório maior.

Na época, relembrei-me de uma lição de Raumsol, que nos ensinava que todos nós tínhamos normalmente uma mente pequena. Não conseguíamos realizar coisas de maior vulto por essa razão. Tínhamos de agigantá-la. Fui ler algumas conferências que ele havia proferido anos antes, elucidando a questão.

Constatei que, para a compra da nova sede da Fundação Logosófica de Buenos Aires, quando Raumsol perguntou a seus discípulos qual era o fundo reunido, lhe informaram um valor pequeno, sob a justificativa de que a situação financeira daquele país estava extremamente difícil. Mas, apesar de verificar que aquilo era fruto do trabalho realizado com sinceridade por aqueles seus acalentados estudantes pediu-lhes que se empenhassem mais e encontrassem um lugar adequado para comprar.

Algumas semanas mais tarde, Raumsol voltou, porém agora com uma notícia alvissareira: tinha encontrado uma casa ideal, no local certo, como sempre sonhara. Tinha um jardim belíssimo, salas grandes para realizar as atividades da instituição e até lugares para praticar esportes. À medida que foi falando, Raumsol desenvolveu em todos os discípulos daquela sede cultural uma vontade enorme de adquirir aquele novo local.

Disse, ao final, que estava encantado com aquele lugar. Sentir-se-ia feliz, se pudessem adquiri-lo. Explicou, como se fosse a coisa mais banal, que aquele lugar custaria mais de três dezenas de vezes tudo aquilo que seus discípulos haviam arrecadado até então. Constatou-se, então, que todos ficaram profundamente estimulados e compreenderam imediatamente que seria perfeitamente possível a aquisição daquela casa.

Na oportunidade, Raumsol disse que tudo era possível, desde que mudássemos a nossa mente. Antes, parecia efetivamente impossível comprar tal casa; no entanto, adquirir uma casa daquele valor tornou-se realmente possível. Concluíram, assim, que a mente que era pequena havia se agigantado.

Pensei nisso, de fato. Não iria comprar uma sala, mais dois grupos de salas, efetivamente. Posteriormente, iria reunir tais salas, para torná-las um local adequado para escritório de advocacia para empresas.

Na época da compra dos dois grupos de salas, no segundo semestre de 1978, havia concluído um caso complicado entre a Toyo Menka e recebido honorários de cerca de US$ 20.000,00. Tais honorários foram fundamentais na compra das duas salas.

Não sofri para pagar todo o saldo restante dos preços. As obras enguiçaram, havendo um atraso superior a um ano, no final. Entretanto, pude acompanhá-las passo a passo, até que cresceu, pude conhecer os dois grupos de salas, imaginando como os decoraria.

No início, segundo a previsão original, as obras terminaram em fins de 1980. Penso que terminaram, de fato, em meados de 1982. Os nossos grupos de salas ficavam no 35º andar e tornaram-se ótimos, depois de unificados. Paredes revestidas de lonas de plástico branco, teto ótimo, com lugares para a saída de jato d’água em caso de incêndio, instalações de ar-condicionado central, dois banheiros ótimos, tapetes de cor escura. Muita luz, tanto interna quanto externamente, pois os corredores eram amplos. E tudo ficou, como se diz, maravilhoso. A construção foi excelente, com o melhor material. Mudamo-nos para aquelas salas em agosto de 1982. Fomos, sem dúvida, dos primeiros a utilizar tais salas naquele edifício.

Após vender o terreno de São Pedro da Aldeia, fui a São Paulo para comprar alguns dos móveis para o escritório. A ideia era adquirir móveis bons, porém nem tanto quanto ao aspecto de luxo. No entanto, vendo as salas, projetadas nos desenhos, o vendedor, um dos donos da indústria localizada em Guarulhos, recomendou-me sinceramente que adquirisse os de melhor qualidade, pois os de qualidade inferior rebaixariam o nível daquele escritório.

Comprei, na ocasião, além da mesa principal de alto luxo, toda de jacarandá com couro na parte superior, minha poltrona, de couro, do tipo Chipendalle, duas poltronas de luxo para os clientes, também de couro e de igual estilo e ainda, uma mesa de canto, alta, porém pequena, de jacarandá. Gastei, então, cerca de US$ 20.000,00 nessa compra, que nos foi entregue alguns meses depois.

Foi nessa época que contratamos o arquiteto Jean Maurin, arquiteto das Lojas Americanas, para elaborar um projeto de decoração para o nosso escritório. Ele era algo tímido ou parecia sê-lo. Conhecia-o, porém não profissionalmente. No entanto, era colega de Rosa, que trabalhara também nas Lojas Americanas, de forma que tal contato se realizou sem maiores problemas. Além disso, o Jean era uma espécie de decorador da Fundação Logosófica, onde havia ingressado alguns anos antes.

Ele foi comigo ver o meu escritório. Logicamente, gostou do local. Ficou com algumas dúvidas sobre que tipo de decoração deveria realizar. Depois de entregar-lhe as plantas e explicar quais eram as minhas preferências, ele elaborou um projeto.

– Está ruim? – perguntou-me, algo pensativo.

– Não, muito pelo contrário – respondi-lhe, mais pensativo ainda. – Deixe-me pensar um pouco – pedi-lhe então.

Disse-lhe depois, que até aceitaria aquele projeto, pois estava de acordo com tudo aquilo que naquela ocasião pensava sobre decoração: moderna, simples e, sobretudo, bonita. Seria, mais ou menos, aquilo que precisava. No entanto, tinha lá as minhas dúvidas no particular.

Algum tempo depois, ele me mostrou outro projeto. Era bonito, agradável, mas não era ainda aquela decoração que realmente queria. Foi o que lhe disse, então, meio hesitante. Até que, num dia, mostrei-lhe uma decoração ideal para o nosso escritório. Ele olhou, analisou, e compreendeu qual era o tipo de decoração que me agradava. Disse-me, depois, quase resmungando:

– Olhe, estou gostando da sua decoração. É uma decoração cara, muito trabalhada, com móveis do estilo francês do mais alto nível, com sofás sofisticados, do tipo Chipendalle. Exigirá muito trabalho, de decoração nas paredes divisórias, nas portas, nos tetos, nas paredes normais, além de quatro armários para guardar os materiais de arquivo, bem como terá cinco armários com estantes de madeira maciça. Colocaremos, também, tapetes luxuosos na sua sala. Utilizaremos, ainda, muitos espelhos de boa qualidade. Não será uma decoração muito moderna, rápida, eficaz. Contudo, é uma decoração do mais alto nível.

– Gostou do estilo? – perguntei-lhe.

– Sim, sem dúvida. Contudo, ficou-me uma ideia, Será que estaria bem um tipo de decoração como esta para os estudantes de Logosofia? Será que você não estaria saindo dos quadros normais do que seria desejável? Para que gastaríamos tanto dinheiro com decoração, embora fosse isso importante? É o que gostaria de saber – disse, quase pensando para si mesmo.

Olhando-o, disse-lhe, depois de ponderar bastante:

– Não sei o que poderia lhe dizer – respondi-lhe – No entanto, isto foi o resultado de um longo sonho, de forma que queria isso, se você estiver de acordo. Talvez, como você disse, não fosse uma decoração normal para seres evoluídos. Entretanto, se ao trabalhar tenho de ficar o dia inteiro no meu escritório, gostaria que fosse agradável para mim.

Sinto, hoje, que um trabalho daquela envergadura não poderia ter sido realizado por qualquer decorador, mas sim por um decorador com traços de genialidade, como foi o Jean Maurin. Não quis cobrar pelo seu brilhantíssimo trabalho, eis que ainda trabalhava nas Lojas Americanas S.A. Fiquei profundamente grato a ele por aquela brilhante decoração do nosso escritório. De certa forma, era um sonho, de nós dois, que ele havia concretizado.

A compra daquele escritório e sua decoração posterior foram importantíssimas para mim. De repente, pude constatar que poderia ter um escritório igual aos melhores do mundo. Via nas películas dos cinemas os escritórios dos grandes advogados dos Estados Unidos. Agora, teria outro igual, no Brasil.

Independentemente dessas questões, ir àquele escritório trabalhar bastante e, nos momentos de folga, sentar-me nos seus confortáveis sofás, ver a vista, através daquelas janelas, naquele ar-condicionado forte, era algo fenomenal que acontecia em minha vida. Eu via tudo aquilo e me sentia feliz.

***

No início da década de oitenta, trabalhava para uma empresa que queria realizar trabalhos com dragagens em Recife. Por isso, como os dois navios de dragagem haviam sido trazidos do Japão ao Brasil naquela época, fui a Recife para resolver os problemas.

Realizava-se então a construção de um grande porto, denominado Suape, e que iria exigir muito trabalho de dragagem do solo marinho.

Não sei quantas vezes viajei até Recife, capital do estado de Pernambuco. Foi útil para conhecer melhor aquelas localidades, bem como os problemas que existiam na área de serviços públicos.

Fiz vários contatos e procurei agir da forma mais honesta possível na minha condição de advogado de empresa japonesa. Tudo foi difícil ou quase impossível de se resolver naquela ocasião.

Por isso, em toda a década de oitenta, pude trabalhar muito em diversas empresas no Rio de Janeiro. Trabalhei para a Mitsubishi Corporation, para a Nippon Steel, para a NEC, para a Ishikawajima, para a Hitachi, para o Banco Mitsubishi, para o Banco América do Sul, e uma série de outras empresas ou instituições, como a Câmara de Comércio e Indústria Japonesa do Rio de Janeiro, para a Anritsu, para a JRC, para a Okura, para a Dom Saci, para a YKK, para a NTT, para a Rolamentos Boavista, etc.

Realizamos, por isso, muitos serviços, de todas as formas possíveis, hipotecas, compra e venda de imóveis, constituição de empresas, mudança das mesmas, atas de assembleias de sociedade anônimas e de reuniões de diretoria, contratos sociais, diversas petições, recursos, quer judiciais, quer extra-judiciais, etc.

Questões judiciais, realizamos milhares, de todas as formas, para todos os fins, por diversos meios; quanto às questões fiscais ou de outra índole, tivemos, igualmente, um número elevadíssimo, nesse temo todo. Ganhamos a maioria dessas questões em todas as áreas, aqui no Rio de Janeiro ou em outras cidades como em São Paulo, ou mesmo em Brasília, Belo Horizonte ou em Recife.

Tivemos no meu escritório ainda a assistência de várias pessoas: da Sheila Maria Primo de Mendonça, do Fábio Fernandes Peixoto, do Raphael M. Domingues, da Maria Lourdes da Cunha, e ultimamente, do Sérgio Eduardo dos Santos Pyrrho, e ainda outros, sem contar a inestimável ajuda da Denise Setsuko Okada, minha filha.

Minha relação com o Orlando Barbosa tinha muitos anos, desde a época em que ingressei na Ishibrás, em setembro de 1959. Quantas vezes, não fui tratar de tantas questões com aquele admirável executivo…

Meu trabalho no setor de serviços gerais na Ishibrás facilitou esse contato com o Orlando Barbosa, naquele início. Posteriormente, voltei a manter esse relacionamento, desde que voltei a ser advogado, em meados da década de sessenta.

Em 1979, quando completei vinte anos dentro da Ishibrás, apareceu mais uma vez o Orlando Barbosa para elogiar o meu trabalho naquela organização, comovendo-me profundamente.

Ele começou como um simples diretor sem maiores condições, em 1959, pois entendia sinceramente que colocar outros aditivos diminuiria a sua capacidade de resolver os problemas existentes, principalmente entre os homens públicos, com os quais realizou muitos trabalhos dignos de monta.

Desde o início, quase sem querer, foi subindo de posição, até que foi nomeado diretor-presidente da Ishikawajima do Brasil – Estaleiros S.A., Ishibrás, por vários anos. Sempre foi ele, no entanto, um homem-chave para resolver todos os graves problemas que aquela empresa enfrentou, naqueles anos todos. Era, além de sério, um homem alegre, com afinidade com tudo aquilo que afetava a todos nós, de alguma forma.

Em meados de 1983, ele me procurou, pedindo que cuidasse de um inventário, pois sua senhora tinha falecido, depois de ficar doente por muitos anos. Ele já tinha quase setenta anos de idade. Reuni todos os seus bens, analisei-os e disse-lhe, depois de alguns dias, como pretendia realizar aquele inventário, pois havia mais de vinte imóveis e milhares de ações das sociedades anônimas, além de outros bens.

Não obstante todas as dificuldades que surgiram, consegui, finalmente, concluir aquele inventário no final de 1984, quando fui pessoalmente levar o “Formal de Partilha” ao seu apartamento, no Leblon, onde ele se encontrava doente há algum tempo. Estava ele casado com sua segunda esposa, na casa de quem se encontrava naquele momento.

Ele segurou aquele “Formal de Partilha” e, olhando-o, disse-me palavras do mais alto teor, para agradecer meu trabalho. Relembrou-me muito o Orlando Barbosa que foi um grande líder quando era mais jovem ainda. Depois disso, voltei com a plena convicção de ter realizado um bom trabalho.

No entanto, no início do novo ano de 1985, soube, subitamente, que o Orlando Barbosa havia falecido. Eu nem podia acreditar em tudo aquilo, tão inesperado tinha sido. Os funerais de Orlando Barbosa foram realizados em grande estilo. Ele fora, até há pouco tempo, ilustre diretor-presidente da Ishibrás, provavelmente o maior estaleiro do Brasil. Fui vê-lo na capela do Cemitério São João Baptista. Ele parecia mais velho. Lá estavam a sua segunda esposa, o seu filho, o engenheiro Jorge Orlando Barbosa, a esposa dele, sua nora, e seus netos.

44

 

À medida que fomos conquistando melhores condições financeiras, pensamos em ter a nossa casa de praia. Quero dizer, havia aqueles que queriam ir às montanhas, mas nós, que morávamos no Rio de Janeiro, estranhamente, queríamos frequentar as praias. Era, de certa forma, a nossa vida, os nossos finais de semana, quer para passeios, para pescar, quer para ir ao mar.

Dessa forma, em 1985, começamos a ir para o lado de Arraial do Cabo, próximo de Cabo Frio, para procurar tal casa. Íamos aos feriados prolongados, porque havíamos gostado do lugar, não obstante tais passeios serem muito problemáticos, quer quanto à ida, quer quanto à volta, em razão do número excessivo de outros carros, pois todos estavam, mais ou menos, como nós pretendíamos, com casas de praias naquelas regiões.

Não gostávamos, mas nada podíamos fazer. Pensávamos muito nesse problema, mas não tínhamos outra saída. Talvez pudéssemos mudar nossos horários, para não pegar as longas filas de carros, por todos os lados, com as demoras, que eram excessivas. Sabíamos que tais casas seriam muito frequentadas no início, quando levaríamos os nossos amigos e nossos parentes, mas, com o tempo, iríamos diminuir, de forma que voltariam a ser problema, quer para seu uso, quer para sua manutenção. Era um costume antigo que nos incomodava. No entanto, dizíamos, para nós mesmos:

– Nós vamos frequentá-la. Criaremos condições para isso, estimulo a nossa ida por qualquer razão. Se existir razão para tal visita, elas aumentarão – eu dizia.

Depois, no entanto, vendo as casas dos nossos amigos, que visitavam pouco depois de algum tempo, advinha aquele desânimo.

– É. Não importa. Nós vamos frequentá-la, independente das razões porque os nossos amigos acabarão por deixar de ir.

De qualquer forma, o problema existia e nos parecia sério. Contudo, íamos procurando aquela casa, que tinha de ser grande e ter lugares para realizar tudo aquilo com que sonhávamos. Não poderia ser pequena, pois isso inibiria a aproximação de nossos amigos ou parentes e o preparo de churrascos e outros eventos importantes, nós pensávamos. Não obstante, o mar tinha de estar perto, para que pudéssemos ingressar na água e também para sairmos para as nossas pescarias.

Cada vez que íamos procurar tal casa, o problema do trânsito se acentuava. Numa daquelas vezes, ficamos cerca de quatro horas no meio da estrada, porque havia surgido algum problema, afora o tempo normal do trajeto, que seria de cerca de suas horas. Aquilo desesperou-nos. Na volta, os problemas eram mais sérios ainda. É certo que, agora, havia a ponte Rio-Niterói, que encurtava as distâncias entre as duas importantes cidades, pela qual seguíamos até Arraial do Cabo. Não obstante, os problemas, como disse, eram e continuavam sérios.

Vimos não uma, mas uma série de casas, para tal fim. Uma era boa, mas ficava em lugar ruim, onde se fazia muito barulho, de forma que afastamo-nos dela. A outra, era razoável, mas ficava em frente a um rio que cheirava mal, de forma que partimos para outras.

Numa oportunidade, surgiu uma casa, mais ou menos como gostaríamos. Era uma sobrada, bonita, quase nova, embora ficasse num lugar algo impróprio. Daria para realizar churrascos e com lugares para guardar carros. Era quase o lugar certo, pensávamos. Era mais cara do que as outras, mas valeria a pena comprá-la.

Levamos duas semanas, pensando nisso. Quando, afinal, resolvemos comprar, havia sido vendida a outro interessado. De forma que ficamos alarmados com as vendas de imóveis naquela região. Continuamos procurando outros lugares. Finalmente, encontramos outra casa regular, com um barco de 16 pés e que nos encantou. A casa parecia boa, mas interessamo-nos pelo barco em questão. Não sabíamos quanto custaria. De repente, deu-nos a seguinte ideia, de que tendo um barco daqueles, nosso projeto de ir até aquele lugar seria uma realidade, pois poderíamos sair a passear nele. Ficamos pensando nisso e iniciamos nossa negociação para comprar a casa.

O dono era um médico, de forma que tratamos desse assunto dentro de uma clínica em Botafogo. Nada, porém, levou-o a decidir pela venda daquela casa, que tanto nos agradara. Sabíamos então que o barco não integraria aquela venda. No entanto. Poderíamos adquirir outro barco naquela casa.

De outro lado, nós estávamos então mais preocupados em verificar quanto custaria um veleiro. Fomos, então, pela primeira vez, à Marina da Glória, para ver os veleiros. Havia veleiros, lanchas, saveiros e todos os tipos de barcos, colocados ali para a nossa visão.

Honestamente falando, nunca pensávamos que poderíamos comprar um veleiro ou uma lancha. Achávamos que seria caro demais para as nossas possibilidades. Pensávamos, agora, se poderíamos sair a cada final de semana, e, posteriormente, ir a vários lugares. Seria uma forma ótima de passar nossos finais de semana. Agora, vi que poderíamos comprar um pequeno, para as nossas condições. Não foram uma ou duas, mas várias as vezes em que lá estivemos.

– Comprar uma lancha ou um veleiro? Qual o tamanho ideal para as nossas possibilidades? Um veleiro pequeno de 16 pés não convinha para nós? ‑ perguntávamos.

– Poderia, mas não poderia ir muito longe – respondiam aqueles marinheiros que lá lavavam os barcos.

– Não poderiam, por quê? – perguntava, cismado com aquela situação tão alarmante, vendo aquele mar ali tão bonito.

– É que os veleiros pequenos não devem ir longe, pois os riscos são grandes. Melhor seria se comprássemos veleiros maiores, de 23 pés, que poderiam nos levar para mais longe.

Depois de muitas conversas com aqueles marinheiros e aqueles corretores de barcos, na Marina da Glória, decidi que, ao invés de comprar lanchas, compraria veleiros, os quais seriam de tamanhos maiores, de pelo menos 23 pés.

Aliás, diga-se de passagem, havia ali, na Marina da Glória, um barco de 23 pés, com um pequeno motor de popa, que custava então cerca de US$4.000,00.

– Compraria ou não compraria tal veleiro? Tinha tendência em comprá-lo, desde que todos concordassem – ponderava, com dúvida conclusiva.

Enquanto não decidisse, resolvi realizar um curso para ser arrais com o prof. Peterson. Posteriormente, fui realizar os exames necessários no Ministério da Marinha, me saindo um bom arrais.

À medida que aquele curso ia sendo dado, muito elementarmente, numa imprópria sala de aula, fui vendo que a compra daquele veleiro de 23 pés não seria a coisa ideal. No entanto, Peterson me dizia, deveria ir ver um veleiro da marca “Sirius”, de 27 pés, o qual tinha uma construção maior, pois era um barco mais alto e mais largo. Não custaria muito mais, segundo o mesmo assegurava.

Depois de ver dois “Sirius”, comprei o que me pareceu um bom veleiro, o qual se chamaria “Jazz Band”. Pensei ter comprado um bom veleiro, pois tinha uma boa aparência. De uma maneira geral, imaginei ter feito uma boa compra.

Mudei o nome do barco para “Ekko’s”, limpei o seu fundo, passando tinta nova, realizando muitos trabalhos, para colocá-lo a navegar. Entretanto, não obstante, talvez por causa da sua idade, nada estava muito bem naquele barco. Tinha um motor “Mold” de 10 H.P.,  que funcionava, mas não tinha força para nada. Além disso, quando o barco inclinava, todo o óleo que se juntava no seu bojo alastrava-se pelo chão. Promovi várias reformas, para fazê-lo navegar. No entanto, nunca funcionou como queríamos. Saímos com ele ao redor da Baía de Guanabara, com o prof. Peterson, diversas vezes. Fomos duas ou três vezes até a Praia de Piratininga, do outro lado de Niterói, para passeios. Afora esse, saímos para outros lugares, sempre por perto, para os novos passeios. Funcionou sempre, porém, com muitos senões.

Após equipá-lo com todos os materiais de salvaguarda humana, fomos, no final do ano, para Angra dos Reis. Ouvíamos falar daquele lugar encantador. Fizemos planos de levá-lo e chamamos o marinheiro André, perguntando se ele sabia o caminho.

– É claro que sei – afirmou, com muita convicção.

O André era o marinheiro que lavava o nosso veleiro. Não obstante, era um marinheiro esperto e estudioso, pois estava fazendo curso para ser mestre.

– Teria passado nos seus exames – dizia-se nas redondezas.

– Tem certeza de que poderá nos levar? – argui-o.

– É claro que sim. Não vejo problema qualquer para isso. Apenas não acho que sua mulher deva ir também, pois essas viagens podem ser perigosas – disse-me.

– Perigosas, como? – perguntei, algo alarmado com aquelas palavras – Se você diz que sabe nos levar, não haverá problema se ela for junto. Aliás, além da minha esposa, irá também a Denise, nossa filha. Se há problemas que impeçam a ida delas, é melhor você deixar isso claro.

– Não, não. Perigo, não existe. No entanto, achei que era melhor dizer-lhe isso. Entretanto, para ir a Angra dos Reis, deveremos sair cedo, cerca das quatro horas da manhã, para chegarmos de tardinha, lá.

Posteriormente, depois de enchermos o barco com nossos mantimentos e carregado o mesmo com óleo diesel e outros materiais necessários, aprontamos o veleiro, para sair alguns dias antes do fim do ano.

Na data marcada, saímos pela manhã. Tudo pareceu-nos melhor do que poderíamos esperar. Fui pilotando aquele veleiro “Ekko’s” naquela manhã, de forma confortável. Saímos, ainda escuro, da Marina da Glória, posteriormente da Baía de Guanabara, depois de Copacabana, mais tarde de Ipanema e do Leblon, e, finalmente, da Barra da Tijuca. O “Ekko’s” seguiu com razoável velocidade, com a ajuda dos ventos favoráveis, até que, após ingressar na Praia de Sernambetiba, fomos mais lentamente.

Pensando bem, o “Ekko’s” era um bom barco, muito forte, dizia eu, olhando-o. As ondas do mar, apesar de fortes, não afetavam sua velocidade, célere, indo para Angra dos Reis. As velas estavam sempre bem esticadas e tudo funcionava melhor do que poderíamos esperar.

De tarde, por volta das 16 horas, perguntei ao André como faríamos para chegar a Angra dos Reis. Tínhamos de chegar logo, pois ainda era dia claro, mas o tempo estava piorando.

– Não se preocupe, que logo mais chegaremos a Portogalo – ele disse, algo pretensioso.

Esperei, confiante de que tudo daria certo. Fiquei do lado superior, olhando as coisas acontecerem. Olhei para frente e vi, certa hora, um local que parecia conhecer. Parecia-me uma parte da Ilha Grande, pois cerca de quinze anos antes tinha ido pescar naquele local. No entanto, não sabia se estaria certo em minhas suposições.

O tempo foi passando e não sabia onde iríamos bater. Sabia que chagaríamos a um porto, que nunca aparecia. Depois, escureceu. E nada de porto algum aparecer. Fui perto do André e conversei com ele para ver se demoraria muito ainda para chegar.

– Logo mais chegaremos lá.

No entanto, não falava com aquela convicção de quem realmente tinha tal certeza. Imaginava, então, que o barco teria contornado, para ingressar dentro daquela baía, da área de Angra dos Reis. Não parecia, mas algo estranho estava acontecendo ali. Não obstante as minhas dúvidas, o veleiro não chegava a porto algum, apesar do tempo que passava.

Quando chegou por volta das 21 horas, encontramos um barco que estava realizando serviços marítimos. Eu queria falar com alguém daquele barco. Fui ao rádio, mas, realmente, por não saber operá-lo, não houve como perguntar-lhes onde estávamos, apesar de termos uma costa terrestre ao nosso lado direito.

Posteriormente, depois de andarmos por mais uma hora, dentro da noite, resolvi parar. Pois iríamos bater em Portogalo, mas nunca chegávamos lá. Nessa hora, compreendi repentinamente que o André não sabia onde se encontrava. O mar batia, balançando o nosso veleiro.

Joguei a nossa âncora ao mar, principalmente para ver sua profundidade. Verifiquei que tinha cerca de 30 metros. Aquilo me acalmou. Apesar de as águas do mar continuarem ainda algo agitadas, jogando o nosso “Ekko’s” de um lado para o outro, já estávamos cansados, algo acabrunhados com o acontecimento.

Prosseguir naquela viagem, sem saber para onde íamos, não adiantaria. Foi o que pude dizer, então, para minha esposa, que estava muito aborrecida com tudo aquilo. A Denise, igualmente, não estava interessada em saber nada mais. Quanto ao André, tão logo paramos, encostou-se a um canto, dentro da cabine e, folgadamente, procurou dormir.

– Nada podemos fazer agora – disse eu a Minako, – Para sairmos disso tudo, temos de pensar. Talvez, amanhã, tudo se esclareça. No momento, só nos resta tentar dormir um pouco, apesar do balanço.

Pensei depois no drama de contratar um marinheiro que garantia que nos levaria a Angra dos Reis e não sabia como chegar lá. Alguma coisa, que não entendemos, devia ter acontecido.

Tivemos de dormir, então, apesar de tudo, pois nada podíamos realizar. No entanto, apesar de tentar dormir, continuei pensando onde estaríamos. Antes, imaginava que o barco teria ingressado na baía, por isso, estávamos com a costa terrestre ao nosso lado direito. No entanto, ao jogar a âncora, vi que tínhamos certa profundidade, mas também não muito profundo.

– Estranho, muito estranho – eu dizia, para mim mesmo.

Mais tarde, já de madrugada, fui alertado por um sonho, que estávamos do lado externo da Ilha Grande, junto ao mar aberto.

– Por isso, tinha visto aquela ilha pequena, ao ingressar naquela área, ontem pela tarde – concluí. – Só isso poderia justificar tudo aquilo que tinha acontecido.

Surpreendentemente, o barco, sem ter ingressado na baía dentro da área de Angra dos Reis, seguiu direto, encontrando-se com a Ilha Grande, mantendo-se agora do lado direito da mesma.

Dormi mais algum tempo, até que, às cinco horas da manhã, acordei e saí, para aclarar minha visão, tida durante a noite. Olhei, vi uma pequena ilha do lado esquerdo, a certa distância. Do lado direito, existia toda aquela costa, que parecia agora a Ilha Grande. Para além do mar, do lado dianteiro, apareciam outras montanhas, mostrando que aquela visão que eu tivera estava errada.

– Estranhamente, não sei por que estaria errada a minha previsão – pensei.

Expliquei tudo isso ao pessoal, de forma que saímos de lá, para frente, para sairmos da Ilha Grande, pelo lado externo. Teríamos de caminhar, para ver se sairíamos. No entanto, como disse, manifestei que era uma forte esperança. Talvez não desse certo. Teríamos de seguir, de qualquer forma, dizia.

Levantamos a âncora e seguimos. À medida que avançávamos, as minhas dúvidas foram aumentando. Parecia estranho. Alguma coisa estava errada ali, dizia a mim mesmo.

Entretanto, à medida que o tempo passava, pude ver que as minhas previsões estavam rigorosamente corretas. Pois os erros estavam naquelas montanhas dentro do mar, do outro lado.

– De onde seriam aquelas montanhas? – eu me perguntava, sem ter a resposta.

Posteriormente, fui entendendo que aquelas montanhas ficavam na própria terra, mas que estavam situadas do outro lado do mar, ou melhor dizendo, em Paraty. Não estava errado em minhas previsões, de forma, que depois de andar por mais umas duas horas, chegamos ao final da Ilha Grande, de onde contornamos para ingressar dentro da baía.

Ficamos, então, extremamente felizes, ao descobrirmos que agora estávamos na rota correta. O André nos levaria para a Marina de Bracuí e lá estaríamos bem. Passamos, depois, por várias ilhas, umas mais bonitas que as outras, muitas delas com muitas casas, outras com diversos barcos. Nós, em cima do nosso “Ekko’s”, fomos vendo tudo aquilo, até nos aproximarmos da Marina de Bracuí, onde aportamos.

A nossa alegria, ao chegarmos lá, foi indescritível. Estávamos muito felizes. De certa forma, tínhamos resolvido esquecer as falhas do André, o pagamos e dissemos que ele tinha as suas razões, mas nós mesmos levaríamos o barco depois para o Rio de Janeiro, de forma que ele estaria livre a partir de então.

Pudemos então refletir sobre como uma simples viagem, do Rio de Janeiro para Bracuí, que seria uma viagem belíssima, representou um problema dos mais sérios.

– Por quê? – era a pergunta que fazíamos. – Talvez porque contratamos um marinheiro, que dizia entender de tudo, embora falsamente.

De qualquer forma, pude compreender que todos os novatos são assim, aventureiros e desafiadores. Na medida em que vamos aprendendo, vamos eliminando esses arroubos.

Ficamos em Bracuí por cerca de duas semanas, indo a diversos lugares, quer na Ilha Grande, do outro lado, quer indo a várias ilhas ou a praias. No entanto, resolvi trazer aquele barco de Bracuí para o Rio de Janeiro, uma aventura apropriada para os novatos.

Eu sabia que seria um desafio a vencer. Com base nos perigos existentes, levei, por força das circunstâncias de então, o Franklin Bonfim, sócio da Rosa na Ekko’s, e o meu irmão Kyozo, que se prontificaram a vir comigo nessa trajetória.

Na manhã escolhida, acordei muito cedo, para colocar óleo diesel nos tanques. No entanto, descobri que somente às seis horas o posto abriria. Fiquei esperando para ser atendido, para sair mais tarde, por volta das oito horas, teoricamente, um horário atrasado para quem realiza esse tipo de viagem.

Naquele dia, o mar estava agitado. No entanto, de outro lado, tudo estava planejado para o nosso retorno, de forma que saímos para enfrentá-lo, sem noção do risco que poderia representar. Na parte inicial da viagem, saímos com o motor ligado, temerosos com o que pudesse acontecer. Fomos seguindo, até que saímos ao alto mar, com muitas ondas, passando aqueles meus dois companheiros muito mal com tudo aquilo. O Kyozo ficou tão mal, que se deitou e não mais levantou, até chegarmos perto do Rio de Janeiro, já noite daquele dia. Quanto ao Franklin, ele resistiu por algum tempo, para me ajudar, mas logo depois começou a também passar mal, de forma que ingressou dentro da cabine, e lá permaneceu deitado a maior parte do tempo.

Para mim, foi uma viagem e tanto, pois era a primeira vez que navegava sob meu próprio comando. As ondas eram tão fortes que não dava para ir à parte da frente para retirar a vela enorme lá instalada, e colocar a pequena para atender as condições daquele tempo ruim. Tive de engatinhar, segurando em tudo, para realizar isso. Acredito que andei quase dois terços daquela viagem, dentro do mal tempo, com o barco bastante inclinado, preocupado com as coisas que poderiam acontecer.

Finalmente, depois de passar por ondas tão ruins, porém obtendo sensações vibrantes, chegamos perto do Rio de Janeiro. Quando estava perto de São Conrado, o tempo começou a escurecer. De forma que, ao passar por Leblon, Ipanema e Copacabana, tivemos de fazê-lo no meio da escuridão, agora sem ventos adequados.

Mais tarde, chegamos à Baía de Guanabara. No entanto, na medida em que fomos chegando, com tudo escuro, nada se enxergava, somente sombras. Vi aquelas montanhas por todos os lados, sem entender nada. Recorri aos mapas náuticos.

– Não consigo entender nada – disse ao Franklin, que tentava nos ajudar.

– O que terá acontecido? – sussurrava ele.

O veleiro, no entanto, foi avançando. Depois, de repente, descobrimos que a nossa visão das montanhas era altamente complexa, pois tudo se misturava, são objetos grandes que, embora distantes, parecem estar perto. À medida que nos aproximamos, pude ver que todas aquelas montanhas eram parte daquele cenário, umas próximas e algumas no outro lado da Baía de Guanabara.

Chegamos à Marina da Glória cerca de meia-noite, após termos velejado por 16 horas, com algumas dificuldades. Foi uma grande viagem que realizamos, sem aqueles mínimos conhecimentos tão indispensáveis para se velejar. De certa forma, foi algo de sensacional que aconteceu para a nossa vida.

***

Apesar dos problemas com o veleiro “Ekko’s”, fiquei, de alguma forma, encantado com os barcos nacionais. Em parte, naquela primeira fase do meu aprendizado, pude entender melhor como tais embarcações funcionavam.

Quantas vezes, por não eu estar atento aos cabos do nosso veleiro, os mesmos se enganchavam nas hélices. Tínhamos de parar o barco e mergulhávamos para retirá-los, tendo de cortá-los muitas vezes. Com isso, o barco parava. Outras vezes, descobrimos que o barco não obedecia à direção que dávamos, por falta de peso adequado nos seus lemes, outro defeito grave que descobrimos.

O motor do “Ekko’s” não puxava como devia. Além disso, o casco sujo o tornava ainda menos veloz, o que nos desesperava. Seu banheiro também tinha problemas, nunca funcionando como gostaríamos. Provavelmente, se tivéssemos todo aquele conhecimento básico esperado de um velejador, ele andaria sem maiores problemas. Obtive, naquela fase, o meu título de mestre, apesar das dificuldades.

No ano seguinte, isto é, no segundo semestre de 1986, estávamos já imbuídos da ideia de comprar outro veleiro, provavelmente maior. Um veleiro de 32 pés estaria bom, pensávamos. Tínhamos visto alguns desses à venda. Uma vez, para ver um Brasília de 32 pés, tivemos de ir até Bracuí. No entanto, não nos agradou, além do que, o preço era muito elevado. Desistimos.

Um belo dia, depois de procurarmos muito por um veleiro que nos agradasse, vimos que se encontrava à venda um Petersen de 33 pés, totalmente novo, isto é, com partes a serem concluídas ainda, e que estava fundeado no outro píer, além do nosso, no fundo da Marina da Glória. Fomos lá e o vimos. Parecia grande, majestoso. Gostamos, de início, daquele veleiro fantástico.

– Como? Está à venda? – perguntei.

– Sim, pertence a um diplomata argentino que levou quase dois anos para construí-lo, mas foi chamado a Buenos Aires, de forma que está vendendo – foi a resposta que me deu o corretor, ali presente.

– Posso vê-lo? Perguntei, enquanto puxava o barco, para subir nele.

– Vou buscar a chave, para que possa vê-lo por dentro – respondeu-me, enquanto eu subia nele.

Eu estava maravilhado com aquele veleiro. Era maior do que o Brasília de 32 pés, mais comprido e mais largo. Parecia que tinha cerca de três pés a mais. Ou melhor, não era apenas maior, era mais confortável.

Reparei que tinha uma roda de leme e que possuía também um enrolador de genoa. Não tinha, no entanto, as armações para colocar velas ou para colocar os cabos necessários. Tudo no particular parecia ainda em fase de conclusão.

O corretor apareceu com a chave, abriu as portas e pude entrar. Fiquei, como se diz, encantado com tudo aquilo. Era realmente largo. Talvez existissem coisas a serem concluídas depois. Possuía um belíssimo banheiro, um motor fantástico, eis que era da Fiat diesel de 36 HP, com marinização do Volvo-Penta, possuindo, além disso, acesso fácil a todas as partes. Também possuía fogão, com pia de água e dormitórios para duas pessoas na parte da frente, mais um lugar no meio, isto é, do lado esquerdo, e duas camas, com a colocação da mesa de centro na parte de baixo, além de possuir outra cama, na parte de trás, com uma mesa, com gavetas, e lugar para exame de cartas náuticas. Pintura nova. Tudo ali funcionava às mil maravilhas, pensei.

A bateria que ali existia parecia que estava sem carga, de forma que não pude colocar em funcionamento aquele motor majestoso. Tudo novo, quase reluzindo ainda, eu pensei comigo mesmo. O nome do veleiro era “Mabruk”, e tinha localização no Iate Clube do Rio de Janeiro, o que me agradou demais.

– Quanto está custando? – perguntei, algo hesitante.

– Custa cerca de Cr$750.000,00. Mas, quanto a isso, poderá ser objeto de negociação, pois ele está na Argentina e não poderá esperar mais tempo.

Pensei comigo:

– Um Brasília de 32 pés, bastante usado, custaria algo em torno de US$20.000,0, isto é, cerca de Cr$500.000,00. Este custaria cerca de US$30.000,00.

Olhando-o, disse, quase como se fosse um comentário infeliz:

– É. O barco já está aqui por alguns meses. Está meio sujo e precisa ser logo vendido, pois do contrário se estragará.

Depois, pensando bem, disse, quase como se fosse um comentário sem maiores consequências:

– Bem, poderei talvez apresentar alguma sugestão quanto à questão dos preços. Vou pensar no assunto e voltarei a dizer-lhe, se for possível.

Ele me olhou e disse que estaria aguardando a minha decisão. Depois, fechou as portas e se retirou, condignamente. Posteriormente, ele se dirigiu ao seu barco, outro belíssimo veleiro, ali perto, onde ingressou.

Fui embora, mas vivamente impressionado com aquele Petersen de 33 pés.

– Será que valeria a pena ser comprado? – ponderei. – Ou será que teria outros problemas na sua venda posteriormente?

Não sei em que mais pensei naqueles dias. Depois voltei para vê-lo, não uma vez, mas várias vezes.

Todos diziam que o barco era formidável, embora não fosse tão bom quanto o Brasília de 32 pés quanto a sua parte comercial. No entanto, todos reconheciam que o Petersen de 33 pés era um barco de linha internacional, pois havia ganhado vários prêmios de ordem mundial.

– Provavelmente, sua construção no Brasil não seria tão boa quanto a americana. Porém, quanto ao projeto, era dos melhores que existiam – diziam os entendidos.

Até que, depois de alguns dias, voltei para falar com o corretor para lhe dizer que estaria disposto a comprá-lo, desde que ele aceitasse a proposta que faria, de oferecer-lhe, na hora, cerca de US$20.000,00, e Cr$150.000,00, dentro de um mês, mais ou menos, pois pretendia vender o “Ekko’s” nesse espaço de tempo. Se não conseguisse vendê-lo, obteria esse valor por empréstimo bancário, como realmente aconteceu.

O corretor disse que precisaria de alguns dias, para obter a resposta do seu proprietário. Soube que eles entregariam duas velas, uma grande, e uma genoa, ambas novas, mas que se encontravam no seu escritório. Quanto ao banheiro, seria do tipo químico, o que não me agradava. Poderia ir buscá-lo junto ao fabricante do veleiro. Alguns outros pontos pendentes, poderíamos obter com aquele fabricante.

Passados alguns dias, veio a resposta, inesperada, aprovando minha proposta, desde que concordasse em pagar aquele valor e as comissões do corretor. Concordei em pagá-las, para ficar com aquele veleiro maravilhoso.

Concomitantemente, coloquei à venda o veleiro “Ekko’s”, e procurei os homens encarregados de levantar o “Mabruk”, para ver como estava na parte de baixo, bem como para complementar a parte pendente. Descobri, por exemplo, que uma das hélices estava quebrada, razão porque solicitei o serviço de uma empresa especialista, coloquei outra hélice, menor, destinada a regatas e que daria uma velocidade maior, dizia-se.

Adquiri todo o material de salvaguarda da vida humana no mar e consegui cuidar de toda a parte legal, depois de levar cerca de dois meses. Colocamos os prendedores de cabos, todos os cabos necessários, instalamos as catracas, que custaram mais de US$1.000,0 cada uma das quatro, e tudo aquilo que era indispensável foi providenciado, para podermos sair no final do ano.

Ligamos o motor. Funcionava com regularidade, com muito silêncio. Era uma graça tal motor. Além disso, puxava. Era um assombro. Não tinha, é certo, as manivelas para girá-lo. No entanto, tudo ali funcionava de modo satisfatório. Instalamos um ecosonda, uma espécie de câmera que localizava os peixes no fundo do mar, além do rádio, que ganhamos da JRC do Japão, e outros equipamentos importantes para fazê-lo navegar.

Um veleiro daquele tamanho ao navegar com suavidade, sem distorções, era uma graça para todos nós. Ficávamos não apenas minutos, mas horas dentro do barco, para sentir toda a emoção de possuí-lo. Por fora, suas letras, com o nome, e outros enfeites, tudo era bonito, de forma que agradavam a todos que o vissem, muitos paravam para ver aquele belíssimo barco, ali na Marina da Glória.

Quando dissemos ao gerente daquela Marina, que levaríamos o veleiro para a vaga número 29, ninguém sabia se caberia. Coube, no entanto, sem maiores problemas. E tudo ali ficou um assombro para todos nós, eis que possuíamos agora um Petersen de 33 pés, novíssimo ainda.

Saímos, muitas vezes, com o “Mabruk”, depois disso, quer na Baía de Guanabara, quer indo a Angra dos Reis. Naquele fim de 1986, fomos a Bracuí, para lá passar o fim do ano. Tudo foi algo de maravilhoso, pois pudemos desfrutar de tudo o que ele tinha de positivo.

Fomos a Ilha Grande, onde estivemos nas praias do Abraão, de Palmas, da Ilha do Macaco, em Gipóia, em Portogalo, em Paquetá, etc. Estivemos no Saco do Céu, no Sítio do Forte, e em outros lugares, por muitos dias. Dias intensos e fortes, para todos nós. Pudemos, de certa forma, conhecer melhor todas as forças daquele veleiro “Mabruk”. Seguimos para Itacuruçá, por onde ficamos alguns dias, até voltarmos, depois, ao Rio de Janeiro.

Muitas e muitas vezes, saímos com aquele veleiro ao mar. No início, como dito, os problemas foram vários, embora pequenos. Tivemos de aprender a manejá-los. Posteriormente, na medida em que fomos aprendendo a manejá-los, tornamo-nos especialistas no assunto. Fui a Angra dos Reis por várias vezes, muitas vezes com convidados, mas sempre com as minhas filhas e a Minako. Dormimos, tantas noites, em tantos lugares, para entender todo o mistério que o mar nos escondia.

Trabalhava-se muito para isso. De certa forma, ajudava-nos na manutenção do nosso estado de saúde. Fomos não uma, mas várias vezes para os lados de Paraty e também para outros lugares, sempre lindíssimos, com águas transparentes, para nos revelar o outro lado, incontido, do mar e toda a sua beleza.

Descobrimos, assim, que os lados da Ilha Grande e aquelas regiões escondiam tantas belezas, de um mundo ainda verdejante, que não encontraríamos em outras regiões do Brasil. Para nós era um grande descanso tudo aquilo.

Por vezes, pensamos até em comprar lanchas para apressar nossos passeios. No entanto, à medida que íamos nos acostumando com a vida de velejador, tudo aquilo se tornava mais complicado, afastando-nos dessa ideia. Líamos livros escritos por outros velejadores no mundo inteiro, contando suas histórias de tantas viagens, e que tanto encantos nos traziam.

Com o passar dos anos, fomos nos especializando na navegação marítima. Adquirimos, de alguma forma, algum medo em navegar pelo mar afora, talvez, porque agora tínhamos maior consciência dos riscos que existiam e que antes desconhecíamos. Viagens ao redor do mundo ou para regiões fantásticas, como ao Caribe, por exemplo, e que foram tão alimentadas por nossos sonhos foram ficando para, quem sabe um dia…

Os veleiros exigiam um cuidado constante, para se manterem flutuando e navegarem como queríamos. Aquela atividade dava, a cada um de nós, a plena consciência do que o mundo representa, tornando-nos calmos, tranquilos e honrados. Possivelmente, a visão que se tem do outro lado do mar, num veleiro, é, indubitavelmente, a melhor que se tem do mundo, para se viver melhor e mais sensatamente. Foi isso o que compreendemos de mais importante na nossa vida no mar. Tudo aquilo representou algo de importante na nossa vida, pelos benefícios que traziam à nossa existência.

45.

 

Em maio de 1986, estivemos, a Minako e eu, nos Estados Unidos. Fomos por diversas razões, sobretudo porque havíamos completado, no ano anterior, os nossos 25 anos de casados. A ideia inicial era visitar a Europa, mas que, infelizmente, não foi possível em razão das explosões ocorridas na usina de Chernobil, na Rússia, quando teria vazado radiação em larga escala.

Para mim, aquela viagem foi boa, pois queria mostrar os Estados Unidos para a Minako. Tomamos o avião no Rio de Janeiro e descemos depois em Miami.

Ficamos num bom hotel naquela cidade, onde entregaram uma ficha, que transmitia um sinal à fechadura da porta para abrir. Uma boa cama, um belíssimo banheiro, mesa com cadeiras para sentar, etc. Não tinha, é verdade, uma geladeira com bebidas ou guloseimas, mas existia um pequeno balde, apropriado para utilizar gelo, que obtínhamos na máquina do corredor.

Conhecer a cidade de Miami foi algo de sensacional. Com aqueles prédios altos, muitos viadutos, pontes, mar por perto, lindíssimo, todas as ruas limpas, o que parece admirável para se viver. Aquela cidade era, de certa forma, votada para o turismo, pois havia muitos lugares voltados à diversão.

Andando em Miami, pudemos ter uma ideia do que seria viver nos Estados Unidos, porque existia um clima de liberdade interessante. Tudo naquela cidade era limpo, principalmente suas ruas. Não havia um pedaço de papel no chão, como acontecia no Brasil. Ninguém jogava nada nas ruas. Achei aquilo admirável, não só em Miami, mas também em outras cidades americanas. Parecia até que eles estavam sujeitos a algum tipo de multa ou a outro tipo de pressão, para manter tão limpas suas ruas. Deixou-nos impressionados tudo aquilo.

Havia regiões que eram inacessíveis, porque seus habitantes poderiam ser violentos. Achamos tudo aquilo estranho, existir pessoas com as quais poderíamos conviver, outras, provavelmente, não, por representarem eventuais bandidos.

Havia nos Estados Unidos áreas onde a maioria das pessoas não trabalhava. As casas eram empobrecidas e o Governo Federal davam-lhes ajuda, sob a forma de benefícios mensais, algo como se fora uma aposentadoria, porque não conseguiam, por alguma razão, trabalhar. A maioria daquelas pessoas efetivamente nunca sequer trabalhara, segundo nos informavam.

Existe, é verdade, aqui no Brasil, o seguro desemprego. Talvez fosse algo semelhante o que estava ocorrendo ali. Só que em dimensões muito maiores.

No dia seguinte, tínhamos o dia livre para realizar o que quiséssemos. Nosso objetivo seria o de conhecer aquela cidade de Miami. Inicialmente queríamos telefonar para o Rio de Janeiro, de forma que fomos procurar um telefone. Parecia fácil, mas, na verdade, foi difícil encontrar um lugar para ligar ao exterior. Encontramos na Avenida Brickell.

Fomos fazer compras em supermercados, comer lanches em casas especializadas, ver aquele mar belíssimo da cidade de Miami. Vimos muitas coisas, inclusive algo que depois chamou-nos muito a atenção: em determinados lugares, não se via quase ninguém transitando, pois eram lugares teoricamente misteriosos. Efetivamente, supunha-se, que poderíamos sofrer algum tipo de ataque por parte dos malfeitores com rostos ocultos em lenços.

Mas tarde, vi que esses lugares existiam em muitas cidades americanas como Nova York, Los Angeles, São Francisco, etc.

Nosso guia alertara-nos:

– Não andem sozinhos por esses lugares, pois poderão se ferir ou serem até mortos e ninguém virá socorrê-los.

Depois de ver tantos lugares bonitos de Miami, saímos de ônibus para ir em direção à cidade de Nova York. Passamos por Cabo Canaveral, um lugar majestoso, onde pudemos ver todas as oficinas e equipamentos voltados para a conquista do mundo cósmico. Assim, foguetes de todos os tamanhos, cápsulas de diversos fins, outros inventos em fase de estudos, tudo aquilo era, sob muitos aspectos, um orgulho dos americanos, tentando demonstrar todo o seu esforço para a conquista do espaço.

Prosseguimos naquela estrada, até que chegamos a Orlando, onde fomos assistir aos shows da Disneyworld. Aquilo encantou-nos sobremaneira, tanto pela quantidade de dinheiro despendido naquele empreendimento, quanto pela organização demonstrada, eis que o número de pessoas interessadas era enorme, e todos eram prontamente atendidos através das filas laterais.

Ficamos por lá o dia inteiro, tendo até almoçado ali mesmo, observando a vida do americano normal. Os rapazes e as moças que lá trabalhavam pareciam ser universitários, extremamente amáveis, atendendo em elevado nível, com educação insuperável a todos nós. E, não sei como, faziam tudo aquilo funcionar de forma maravilhosa.

Vi também muitos americanos, de todos os lugares dos Estados Unidos, vindo para participar daqueles espetáculos. Pareciam pessoas do mais alto grau de honestidade e em boa vontade.

O Epcot Center foi, no dia seguinte, objeto da nossa visita. Está ligado através de lagos ao Disneywolrd. De tudo aquilo que existe no mundo, no campo da tecnologia, nos cosmos, nas invenções, no cinema aberto, enfim, pudemos ter uma ideia mais clara no particular.

Posteriormente, fomos à parte das construções típicas de cada país. Outro mundo, com sua extrema beleza, foi o que pudemos ver então. Estivemos, por exemplo, na área dos Estados Unidos. Algo de fantástico, de inolvidável, algo de indescritível pudemos sentir naquela oportunidade.

Prosseguimos, depois, a nossa viagem rumo a Nova York, por dentro dos Estados Unidos. As estradas, na sua maioria, eram largas e, normalmente, planas. Muitos carros andando, mas nenhum com excesso de velocidade. De vez em quando, víamos caminhões transportando casas de madeira.

Outra coisa que observávamos eram as áreas planas por toda a parte. Como subimos de Miami em direção a Nova York, pensávamos que aquela configuração geográfica seria temporária. No entanto, fomos vendo depois que não, que aquelas áreas planas eram coisas naturais naquela área dos Estados Unidos. Foi assim que subimos toda a costa oeste dos Estados Unidos, observando tudo aquilo. Na maioria dos lugares, o que se tinha de notável para se ver, era feito geralmente pelo homem americano.

De igual forma, também o mar parecia ser eterno naquele lugar. Recordo que numa ocasião ingressamos por uma estrada que nos conduzia para o lado do mar, penetrando num túnel e, posteriormente, longe dali, saímos numa ponte, sobre o mar, aonde vimos muitas pessoas pescando. Era Cheasepeak, um lugar belíssimo como muitos outros. Também lá, contemplamos aquelas águas marítimas e aquelas praias compridas, serenas e calmas.

Conhecemos, assim, vários lugares nessa jornada. Uns, como dizer, eram até estranhos, mas muito bonitos; outros, diferentes. Passamos, dessa forma, por muitas cidades como Savanah, Charleston, Filadélfia, Norfolk, Virgínia Beach, Williansburg, Baltimore, etc. Chegamos até Washington, capital dos Estados Unidos, onde ficamos encantados com a beleza da mesma.

Lá, encontramos com a Elizabeth, irmã da Lucília Meyer Friedmann, que se casara com um americano. Vivia trabalhando naquela cidade. Estava elegantíssima. Foi junto com seu marido, se encontrar conosco em nosso hotel, onde pudemos conversar, de forma agradável.

Fomos à Casa Branca, ao Monumento de Lincoln, ao Museu Espacial, onde ficam expostos todos os foguetes e equipamentos da conquista do espaço, à belíssima Biblioteca Nacional, ao Cemitério de Arlington, onde enterram os militares, e sentimos muito quando visitamos o fantástico monumento dedicado aos mortos no Vietnã.

Finalmente, chegamos a Nova York, para, no meu caso, revê-la, e mostrá-la à Minako. Sem dúvida, aquela era a maior cidade do mundo, por tudo que apresentava. Voltamos ao Brasil, depois disso, após uma viagem que foi de grande utilidade para o nosso conhecimento da vida americana.

Capítulo VII

 

Pelos ribombares dos ventos

46.

 

Foi em meados de 1982 que fui eleito para ingressar no Conselho de Administração da Fundação Logosófica do Brasil. Não esperava figurar em seu seio tão cedo, de forma que me vi surpreso, dentro daquele importante órgão.

A Fundação Logosófica, por sua vez, possuía vários estudantes importantes que faziam parte daquele Conselho de Administração. Três eram membros vitalícios, os quais elegiam os demais membros conselheiros normais daquele órgão pelo prazo de dois anos, e em conjunto dirigiam a obra logosófica no Brasil.

Dizem, e aprendi isso depois, que os novos são os que mais falam. São novos e estão muito estimulados, querendo ajudar o mundo. Os mais antigos ficam calados, esperando a vez para falar. No entanto, talvez por isso ou por outras razões, pude expressar os meus pensamentos, que vinham de muito tempo, desde que ingressei, ou da fase de informação e preparação, na cidade de São Paulo. Para tudo, tinha a minha versão sobre como deveríamos pensar ou sentir. Quero dizer, devo ter brilhado, embora em horas e condições impróprias.

Entender aquele Conselho de Administração não era fácil, pois não queríamos nos intrometer onde não éramos chamados. Precisávamos estabelecer algumas diretrizes básicas. Tínhamos de ter força, de qualquer forma, para encaminhar questões difíceis, como Raumsol o faria. Afinal, quem determinava as diretrizes para as filias da Fundação Logosófica era aquele importante Conselhos de Administração, embora quem ditasse as normas dentro de cada uma delas fosse o seu Conselho Diretivo.

Eu aprendi, naquele Conselho de Administração, a tentar ser um estudante exemplar. Quantas vezes, eu não achei que estava certo em minhas proposições, mas descobria depois que, possivelmente, estivesse errado. Por isso, a intenção não era fazer a minha vontade passar, mas, sim, a vontade de todos. Eu ia, contudo, com boas intenções, no entanto, pela compreensão da maioria, tudo aquilo vinha muitas vezes abaixo. Não foram poucas as vezes em que achava que todo estudante deveria ter mais direitos. Eles diziam, contudo, que nenhum estudante deveria ter mais direitos do que os outros, razão por que aqueles meus propósitos caíam por terra.

Com o tempo, fui descobrindo que não bastava ter boas intenções, mas condição para ajudar uma obra, como a logosófica, a subir cada vez mais. Fui aprendendo isso de forma magistral.

Outra coisa que também entendi, lá no Conselho de Administração, foi que cada filial esperava mais e mais decisões. No entanto, por razões nossas, fixadas subjetivamente, todas as nossas decisões teriam de ser por unanimidade. Era uma decisão não oficial daquele importante órgão. Com isso, as decisões demoravam. Foi o que aprendi então sobre a dita impaciência das filiais em relação ao Conselho de Administração.

Se, no início, falei muito, com o tempo, aprendi a falar menos. Fui me tornando um membro normal, a partir de determinado tempo. Aprendi que a obra logosófica não era apenas no Rio de Janeiro, mas também em Belo Horizonte, em São Paulo, no sul, no norte, em todo o Brasil. Competia a cada um de nós tomar sempre as medidas recomendáveis.

Não podíamos atrasar ou falhar nos nossos encontros. Não seria logosófico falhar naquilo que seria o ideal pra todos nós. Tínhamos encontros no Rio de Janeiro, depois Belo Horizonte, São Paulo, e em outros lugares, como Brasília, Goiânia, Uberaba, etc., para que tornássemos ciência, inclusive, dos problemas locais.

Estudar os problemas que existiam, era outra das nossas obrigações logosóficas. Quantas questões eram colocadas, mas tínhamos sempre de encontrar fórmulas para atender a todos, de forma superior e transcendente. Sempre saíamos, portanto, felizes com as respostas encontradas.

Para indicar os novos reitores e os membros dos Conselhos Diretivos de cada filia, entendeu-se que vários membros do Conselho de Administração, geralmente três, deveriam ir à filial indicada, para ouvir os membros atuais e os estudantes mais avançados, e formarem ideias claras a respeito, levando, posteriormente, sua compreensão à respeito da reunião geral, às decisões de então.

Isto me ajudou muito, quando fui a Belo Horizonte, para ouvir aqueles estudantes sobre aquela filial. As observações que a grande maioria trazia eram excelentes, de forma que não tínhamos dificuldades em indicar os melhores. Pude, então, ver também a preocupação dos Conselheiros de Administração daquela filial, com determinado estudante, bastante influente, e que estaria pretendendo sair da Fundação Logosófica para criar outro instituto para os mesmos fins. Exercia um importante cargo profissional naquela cidade, mas era, sem dúvida, uma pessoa complexa, por outras razões. Eles entendiam que teríamos de dar-lhe uma posição superior, para que desistisse desse intento separatista.

Depois de algum tempo, ele, que havia sido o diretor do Pentágono, mas com muita hierarquia dentro da cidade de belo Horizonte, saiu então daquela filial e abriu uma nova Fundação, levando vários estudantes, muito embora sem muita convicção do acerto daquelas medidas.

Por que, segundo entendíamos, muitos problemas podem existir hoje, por variadas razões. Provavelmente, entretanto, dentro de poucos anos, a realidade seria diferente, pois tais problemas seriam resolvidos. Seria apenas questão de paciência inteligente. Reagir, de forma violenta, sempre representará a manifestação do nosso lado ruim, do lado personalista, instintivo. E está mais que comprovado que sempre que reagirmos, os resultados são ruins para todos nós.

Quantas vezes, depois, entendi que eles deveriam rever aquelas atitudes, que, para eles, pareciam normais, mas que, para nós não agradavam. Teoricamente, tal tipo de complicação não deveria existir, pois seus defensores eram seres humanos, com condições para ajudar, desde que seus objetivos fossem bons, leais e não comprometessem os objetivos morais da obra logosófica. Se algum estudante não concordasse comigo, isso não deveria representar problemas, pois eu deveria aceitar esse fato como algo normal. Por isso, ele poderia ter lugar para trabalhar, mesmo que suas convicções não fossem iguais as minhas.

Muitos outros assuntos foram objeto do Conselho de Administração. As condições em que os seres que se aproximavam da Fundação Logosófica e em que poderiam ingressar, era um desses casos, pois havia, ultimamente, casos de relacionamento amoroso e de outras situações irregulares. Outro assunto importante era como os educandários logosóficos deveriam exercer suas tarefas.

As reuniões do Conselho de Administração começavam aos sábados, às oito e meia da manhã, sempre ouvindo uma gravação de uma conferência pronunciada por González Pecotche em vida, com longos intercâmbios, realizando-se a seguir várias reuniões que terminavam por volta das 22 horas. No dia seguinte, aos domingos, recomeçávamos pela manhã e terminávamos cerca de meio-dia. Após isso, íamos embora, geralmente de avião, cada qual par sua cidade, nos seus respectivos estados.

Tivemos, durante aquele ano, muitas reuniões assim, por todos os lados, principalmente em Belo Horizonte, pois era próxima não somente de Brasília e de Goiânia, mas também do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Florianópolis, etc.

Para mim, especialmente, foi uma experiência sem par ter pertencido àquele Conselho de Administração, pois, de repente, pude sentir, na minha pele, que ninguém mais existia para curar os males do mundo, se não cada um de nós, em toda a nossa integridade. Pelo menos, senti que era homem do mundo, com toda a minha potencialidade. De mim dependia resolver os problemas do mundo, na medida em que fosse capaz.

Saí, a meu pedido, daquele importante órgão, pois concluíra que muitos outros jovens estudantes deveriam participar, para ajudarem a obra logosófica a crescer cada vez mais. Representou, sem dúvida, uma lição de humanidade, de sinceridade, de honestidade, para comigo mesmo, ter pertencido àquele Conselho de Administração da Fundação Logosófica.

***

Nem me lembro mais como foram exatamente as coisas, quando fui reitor na Fundação Logosófica aqui no Rio de Janeiro, em meados de 1983. No entanto, naquela ocasião, embora existissem outros elementos de valor, parecia que eu deveria ser o próximo reitor, pois havia sido antes o diretor tesoureiro e, nos quatro últimos anos, o vice-reitor, de forma que estava consciente de todos os problemas.

Tudo ocorreu, efetivamente, como eu previa. Dentro do Conselho de Administração, eles me elegeram para o cargo de reitor pelo prazo de dois anos, a contar do início de 1984.

Outra parte da Reitoria escolhida para me dar sustentação, era constituída por antigos membros, que já se preparavam para se aposentar.

Pareceu-me estranha a escolha daquela Reitoria, só de grandes figuras, para acompanhar o trabalho de um novo reitor. De outro lado, tudo aquilo me ajudaria no meu trabalho de modificar toda a estrutura daquela Fundação Logosófica.

Foi algo de fundamental, descobrir que não deveria realizar nada para mudar o trabalho que os outros reitores, na medida de suas possibilidades, haviam realizado até então. Sempre, por isso, comecei a dizer que não estava lá para iniciar uma nova fase, mas para continuar o trabalho que vinha sendo feito, mesmo porque, aqueles reitores, que haviam me antecedido, eram grandes estudantes e amigos meus, para todas as ocasiões.

Não obstante isso, nós iniciamos, logo depois, a escolha dos novos diretores de cada setor. Nós chamávamos geralmente os atuais diretores, para ouvir a opinião deles, sobre quais seriam as pessoas mais adequadas para aquela função. Um trabalho difícil, mas importante, pois queríamos ouvir a opinião daqueles que tinham direito de influir, pois vinham realizando um trabalho dos mais importantes. Posteriormente, depois de levar tais nomes à Reitoria, ao Pentágono e para o Conselho Diretivo, para aprovação dos mesmos, comunicávamos àquelas pessoas e, com elas, falávamos dos novos trabalhos. Na maioria das vezes, tudo dava certo, em parte, com as adaptações que eram necessárias.

Um trabalho difícil, de certa forma, é o que foi realizado então, embora, tivéssemos introduzido várias modificações importantes, pois queríamos, como todos os demais membros daquela nova Reitoria, realizar tais alterações, dentro daquela instituição. Criar um Pentágono que funcionasse dentro das nossas ideias, como órgão pensante na área do ensino; o Conselho Diretivo, como órgão para deliberar sobre todos os problemas, que já existiam ou passariam a existir também era imprescindível. Finalmente, a criação do Conselho do Educandário, para cuidar de todos os problemas educacionais, e muitos outros atos importantes para a obra logosófica, tornara-se uma necessidade impostergável.

Naquela época, introduzimos muitas modificações, como a criação do Setor de Neodiscípulos, pois antes era um só setor, quer para os discípulos, quer para os neodiscípulos. Realizamos experiências para iniciar os trabalhos do Educandário na parte da tarde, além de introduzir outras alterações.

Descobri, logo depois, que a função do reitor não é a de fazer só aquilo que pensa ser o melhor, mas de dar possibilidade a todos os que lá estão possam ter iguais oportunidades de realizar suas funções, desde que honestas e limpas sob o aspecto moral. Um estudante achava que o principal item a ser estudado era sobre o espírito. Criamos condições para ele dirigir muitas reuniões sobre esse tema, de forma permanente, pois duravam vários anos. Muitos entenderam que ele estava certo. De igual forma, outro estudante entendia que o estudo deveria ser feito com muito mais pesquisa e penetração, para o que lhe foi criado um núcleo especial, com grande repercussão dentro da Fundação Logosófica. No entanto, todos eles tiveram a chance de realizar aquilo que queriam, sem qualquer reclamação, de nossa parte.

A cada ano que passava, íamos introduzindo alterações para melhorar todo o trabalho da Fundação Logosófica. De qualquer forma, aqueles quatro anos foram, sem dúvida, importantes para nós.

No ano de 1985, por exemplo, nós tivemos um grande Congresso de Logosofiaem Belo Horizonte. Talveztenha sido o maior em sua concepção, e foi importante que tivesse sido realizado. De certa forma, o Congresso revelou que aquele tipo de grande encontro não produzia os resultados esperados.

Como a filial da Fundação Logosóficaem Belo Horizonteera grande, porém pequena para o que se pretendia, alugaram um salão belíssimo para a realização daquele importante evento. E o tema, como era esperado, foi “o papel do espírito dentro de cada ser humano”.

Como todos os outros encontros, este deixou, sem dúvida, muitas recordações em todas as mentes e corações. Deixou, no entanto, a lembrança de que todos nós estávamos aqui para realizar coisas importantes, embora fosse simples.

Depois daquilo, reiniciamos nossas reuniões, porém em níveis menores, por setores, por atividades importantes. E parece que estávamos certos com essa nova medida.

De qualquer forma, independentemente daquele acidente que sofri no final do ano de 1987, havia decidido que deveria sair da Reitoria, onde havia realizado muitas coisas que me pareciam importantes. Fui reitor por quatro anos. Era chegada a hora de sair, para deixar que outros ingressassem na direção das nossas instituições.

47.

 

Não me lembro muito bem como as coisas aconteceram. Recordo-me que o dia 13 de outubro de 1987, segunda-feira, seria um feriado. Tínhamos ido de carro do Rio de Janeiro a São Paulo, com a ideia inicial de realizar um bom trabalho junto a Yaskawa do Brasil, empresa com capital japonês, que tinha escritório central naquela cidade. No entanto, em razão do feriado em questão, tornou-se impossível visitá-la naquela segunda-feira. Assim, resolvemos voltar cedo de São Paulo, naquele dia 13 de outubro, para a cidade do Rio de Janeiro.

– Será que seriam lugares tão bons? – era a dúvida que tínhamos.

Sairíamos de São Paulo, iríamos inicialmente até São José dos Campos, de onde prosseguiríamos na direção do mar, deixando a Via Dutra, foi a ideia. De lá, continuaríamos até a cidade do Rio de Janeiro.

E realizarmos essa proposição. Na verdade, até naquele momento, não havia nada de extraordinário para atrapalhar o nosso percurso. Eu estava contente. Foi assim que em São José dos Campos ingressamos no caminho que nos dirigia para a cidade de Caraguatatuba. A estrada nos parecia boa, embora fosse de pistas duplas, com carros que iam para aquela cidade, bem como outros que vinham em sentido contrário.

Entretanto, o número de carros que vinham de Caraguatatuba em direção a São Paulo era maior, pois muitos estavam voltados adiantadamente, porque temiam a grande concentração de carros que se formaria na parte da tarde. Paramos num bar que existia naquela estrada, com uma pequena entrada. Lá, tomamos alguma coisa para matar a nossa sede, comemos algo, brinquei com o Marcello, filho do Kyozo, e a Káthia. Partimos de lá, logo depois. Caraguatatuba não ficaria longe. Fomos avançando, até que chegamos a um ponto, da onde, lá de cima, vimos, ao longo, a cidade em questão, junto às praias.

Depois, prosseguimos de carro outra vez, quando, numa curva, vi uma perua branca, que estava ultrapassando outro carro, vindo em minha direção. Desviei-me o mais depressa possível, mas não deu certo, a perua bateu violentamente, o que provocou uma forte pancada em minha cabeça, amassando toda a lateral direita do nosso carro. Subitamente desapareci na escuridão; estava em estado de choque. Não me lembro mais do que me aconteceu depois.

Devido à gravidade do meu estado de saúde, o médico disse que não havia condições de realizar uma operação mais séria, recomendando que me levassem, urgentemente, até São José dos Campos, onde poderiam submeter-me a tal tipo de cirurgia. Para tanto, após dar-me as injeções devidas, colocou-me numa ambulância, com tudo que era necessário, e mais do que depressa correu para São José dos Campos.

Alguns dias depois, despertei. Estava numa cama, com a cabeça num lugar mais alto e tudo doía em mim. Lembro-me, então, que fiz esta arguição:

– O que será que aconteceu? – perguntei isso várias vezes silenciosamente.

A resposta, no entanto, não vinha. Sentia que estava meio desperto, e me parecia que tudo ia dar certo. Algo bastante grave devia ter acontecido, contudo, honestamente, não me recordava de nada. Constatei que tudo ficava numa nebulosa penumbra.

Tudo me parecia tão estranho. De qualquer forma, dormia logo, por efeito dos remédios que estava tomando. Depois, à medida que o tempo foi passando, comecei a entender que alguma coisa relativa a um acidente teria acontecido comigo.

Minha filha, Thais, que estava no Rio de Janeiro, levou um choque violento, tendo desmaiado, quando recebeu a dramática notícia. Efetivamente, quase morreu quando soube do acidente, pensando no que teria acontecido comigo. Foi para lá, preocupadíssima, junto com o Marcelo, na época, seu noivo, pensando no que poderia esperar. Primeiro, ela quis ansiosamente que eu sobrevivesse. Depois, que se tivesse algum tipo de defeito, pudesse me reabilitar para que voltasse a levar uma vida normal.

A Thais foi, aliás, a pessoa da maior importância, pois nós efetivamente precisávamos dela, para entender sobre como fazer no futuro. Ela havia se formado há uns dois anos como médica. Estava se preparando para se casar proximamente. Tudo teria de ser reprogramado então.

Recebi muitas visitas naquele período. Em razão de estar muito doente, todos se comoveram, principalmente os meus parentes e amigos. O pessoal da Fundação Logosófica foi lá ver como estava o reitor, que havia sido reeleito para dirigir os seus trabalhos por mais dois anos. Perguntavam:

– Como está ele?

– Sobreviverá?

– Será que terá consciência após a recuperação?

– Será que ficará defeituoso?

– Será que poderá voltar a dirigir a obra logosófica no Rio de Janeiro depois disso?

– Será que continuará sendo membro do Conselho de Administração?

Muitas outras questões surgiram, após aquele acidente. No meu trabalho, por exemplo, a Denise, minha filha, e o Sérgio, labutavam como podiam. Os dois, efetivamente, estavam no último ano da Faculdade de Direito.

Eles não sabiam como as coisas estavam realmente. Depois de pensarem muito, os dois resolveram escrever aos clientes que eu havia me acidentado e que, por isso, não poderia voltar logo ao trabalho. Tão logo retornasse, entrariam em contato com eles. Enquanto isso, tudo funcionaria normalmente naquele escritório.

E, de alguma forma, eles tomaram a frente. Logo depois, verificaram que minha enfermidade era muito mais grave, alongando ainda mais o prazo do meu retorno. No entanto, apesar de todos os problemas que existiam, tudo correu bem. Fiquei, no particular, feliz com tudo aquilo.

Todo o meu rosto ardia, pois além de estar sem uma parte da minha testa, que havia sido arrancada, não podia nem mastigar, pois me doía, como se tivessem arrancado não apenas um dente, mas vários deles. Não conseguia ver, pois minha visão estava distorcida. Sem contar que, todo o meu corpo doía, pois havia sofrido também outros ferimentos. No entanto, apesar dessa dor, estava bem. Eu estava estranhamente bem.

Tinha todo o meu corpo cheio de tubos, uns para colocar remédios, outros para me alimentar. Tudo parecia confuso, e, além disso, em razão dos curativos, dos remédios e das enfermeiras que vinham me cuidar, tudo passava rapidamente.

A Minako ali aparecia, muito carinhosa, dizendo que tudo estava bem, com os médicos e o hospital fazendo tudo para melhorar as coisas. Na verdade, eu não sabia o que ela estava tentando me dizer.

Não me lembro de quase nada do que aconteceu naquele hospital. Tudo indicava, contudo, que a possibilidade de morrer sempre esteve presente, na apenas naqueles primeiros dias, em que as coisas estavam estranhas, mas também nos dias seguintes.

Em princípio, fiquei cerca de duas semanas em São José dos Campos. Tinha feito uma boa cirurgia, embora provisória, naquela cidade, mas, mesmo sendo o médico-cirurgião, um importante auxiliar do especialista Virgílio Novaes, que trabalhava no Hospital São Vicente, na cidade do Rio de Janeiro, os riscos de contaminação eram evidentes, segundo os outros médicos locais.

De Ribeirão Preto, o meu irmão Zeniiti foi até lá, para visitar-me, por duas vezes, dizendo ter falado comigo. Não me lembro de nada, porém. Ele queria que eu fosse levado para um hospital grande de São Paulo, onde ele arcaria com todas as despesas.

Naqueles primeiros dias, além de estar entre a vida e a morte, tinham de decidir se eu iria para São Paulo, ou se iria para o Rio de Janeiro, como a Minako queria. Foi a Thais efetivamente quem decidiu depois que eu deveria ir ao Rio de Janeiro e internar-me no Hospital São Vicente, onde ela trabalhava, e onde estaria o Virgílio Novaes, um famoso neurocirurgião, que poderia cuidar de mim. Era, sem dúvida, um dos melhores hospitais da cidade, onde ela poderia auxiliar-me nas minhas necessidades.

Ninguém poderia dizer, naquela ocasião, quando eu estaria a salvo. Deveria ir para lá de avião, pois não tinha condições de viajar de outra forma. Saber se eu sobreviveria era a questão maior que se apresentava. A Thais pensava, dramaticamente, que se tudo desse certo, eu ficaria bem, mas que se saísse mal… Enfim, foi muito complicado decidir tudo aquilo acertadamente. No entanto, meus irmãos, meus parentes, meus amigos, quase todos lá estiveram, para dar-me apoio. Eu não me lembro deles, em particular. Fiquei, depois, meio sem graça, pois tinha de agradecer e sem sabia a quem, nem como.

Cada passo que dava para melhorar era importante para todos os que lá estavam esperando alguma notícia. Como disse antes, não sabia onde estava, nem o que estava acontecendo. Sabia, no entanto, que estava com pressa para voltar ao trabalho, eis que havia muitas coisas pendentes.

Assim passei aqueles dias, sem nada para pensar ou fazer concretamente. No entanto, depois resolveram me levar de avião para o Rio de Janeiro. Não me lembro do avião, mas lembro-me que a Thais e o Marcelo colocaram-me numa ambulância, deitado, e me levaram ao aeroporto, onde havia muita gente, aglomerando-se para comemorar alguma atividade. Colocaram-me dentro de um pequeno avião, que eles tinham contratado, para me levar de São José dos Campos para o Rio de Janeiro.

Posteriormente, a Thais me contou como foi dramática aquela viagem, pois além do piloto, havia outro, ao que tudo indica, um aprendiz, que estava treinando para pilotar aquele avião e tornar aquela viagem agradável.

Para subir, foi um drama, pois parecia que não conseguiria. Chegar ao Rio de Janeiro, depois, foi outro drama, pois sempre parecia que o avião iria cair. Sempre que o aprendiz botava a mão em alguma coisa, o professor batia nela, dizendo que se fizesse isso o avião cairia, e outras coisas dessa natureza. A Thais, que vinha junto, achou que dificilmente chegaríamos.

***

Cheguei ao Hospital São Vicente. Apesar de ser um bom hospital, era, na verdade, um lugar dramático. Segundo o que ouvíamos, seria um ótimo hospital, com condições hospitalares adequadas.

Lá estava o Virgílio Novaes, o qual era considerado um dos melhores cirurgiões neurológicos da cidade, lecionando, até recentemente, numa faculdade de medicina. Ele foi me ver, sempre otimista, conversando muito depois com a Minako.

Fiquei ali por alguns dias. Depois, o médico, conversando com a Minako, disse-lhe que poderia realizar em casa o tratamento devido para a cirurgia. Melhor dizendo, para ser operado, era indispensável que minhas condições físicas melhorassem. Com tal melhoria, tal operação poderia dar certo, mas, sem isso, poderia ser problemática.

Não sei o que aconteceu. No entanto, fui para casa. Eu, não estava bem. Mandei dizer isso ao médico. Ele disse, do outro lado, que teria de aguardar. Deu instruções ao Marcelo e à Thais, sobre como os dois deveriam agir naquelas circunstâncias. Sob os efeitos dos remédios, sentia alguma coisa horrível acontecendo, sem poder explicar o quê.

A Minako conseguiu autorização para que eu recebesse algumas visitas, que nem me lembro quais eram. Como não estava bem, fiquei por lá cerca de dois ou três dias. Seguindo os testes que a Thais executou em mim, naqueles dias terríveis, tive de voltar ao Hospital São Vicente.

Muitos fatos aconteceram, depois disso. Recordo-me que, numa manhã, depois de tomar determinados remédios, o médico principal levou-me para fazer o exame de raios-X, e extrair sangue, para realizar os testes necessários. Depois do exame radiológico, ao tentar retirar sangue para realizar testes indispensáveis, não conseguiu, eis que as minhas veias estavam escondidas. Por mais que tentasse, não conseguia.

Numa certa hora, a Thais, que me acompanhava, pediu para ajudar. No entanto, por instruções daquele médico principal, o mesmo não concordou. Sei que fizeram várias incisões, tanto no braço direito, como no esquerdo, sem conseguir extrair aquele sangue, tão fundamental naquela circunstância. Até permitiu que o Marcelo tentasse extrair o sangue, para resolver a questão.

Finalmente, depois de tantas tentativas sem sucesso, o Virgílio, vendo o meu rosto tão sofrido, suspendeu aquela extração de sangue e instruiu para que eu fosse levado à maternidade daquele hospital, onde num daqueles quartos, um médico realizou uma pequena cirurgia acima do meu pulmão direito, extraindo sangue para realizar tais exames. Não era o ideal, mas era indispensável.

Outros fatos, alguns trágicos, aconteceram também. Num daqueles dias, surgiu uma moça, que parecia ser uma supervisora e que precisava do quarto que eu estava ocupando, para outra finalidade. Discutiu um pouco com a Minako por tal razão, pois esta não cedeu, alegando necessidades prementes para o meu caso. Posteriormente, ela voltou, quando a Minako não estava no quarto, e solicitou, com muito tato, que saísse daquele quarto, acompanhando-me nessa transferência.

Como não estava querendo brigar pelo quarto, resolvi atendê-la. Colocaram-me numa outra cama, quando quase morri, pelo choque que sofri, passando muito mal. Não sei o que aconteceu, fui ficando tonto. Comecei a sentir uma falta de ar, a tremer horrivelmente.

Eu queria morrer ali, como estava, para isso, bastava abraçar a Minako, que chegara apressadamente. Queria urgentemente que ela chegasse, perto de mim.

– Venha para perto – queria gritar – mas não estava conseguindo comunicar-lhe.

Ela, no entanto, ao chegar, vendo o que tinha acontecido, alarmou-se e pediu urgentemente a vinda do médico para ajudar-me naquela emergência. Depois de alguns segundos, que pareceram minutos, os dois médicos assistentes chegaram correndo, me levantaram e me fizeram vomitar. Passei por momentos inescrutáveis. Então tudo passou. Salvei-me.

Eu nunca tinha sentido algo de tão ruim acontecer em minha vida. Nunca cheguei tão perto da morte como naquela vez. Se o médico atrasasse ou alguma coisa estranha acontecesse, teria morrido naquele momento.

Muitas e muitas vezes, eu tenho pensado em tudo aquilo que lá aconteceu. Talvez tivesse para morrer, pelas circunstâncias então sucedidas. O mal que sofri, foi em razão do remédio, Hidantal, que recebia nas veias do meu braço, ter sido injetado em doses elevadas, dando lugar àquela cena de morte.

Era quem sabe, uma advertência maior que eu deveria sofrer, naquele momento.

Naquela noite, o médico principal compareceu, examinou-me melhor, e disse à Minako que eu não estava bem de saúde, mas que não deveria esperar por mais tempo. Que faria a cirurgia na manhã seguinte, se ela não se opusesse. Perguntou-me se aprovava aquela operação, ao que concordei, pois sabia que sem isso nada melhoraria para mim. No entanto, sabia que poderia estar morto no dia seguinte. Eu estava, de qualquer forma, decidido quanto ao que devia ser feito.

A operação da manhã seguinte correu melhor do que se poderia esperar. Deram-me uma injeção logo cedo. Nada sei sobre aquela operação. Voltei dela, depois de várias horas, e um completo trabalho foi realizado. O Marcelo ajudou-o naquela cirurgia e ficou admirado com o competente trabalho executado pelo Virgílio Novaes.

Fiquei ainda naquele hospital por cerca de duas semanas. Recebi muitas visitas dos meus amigos. Muitos deles enviavam lembranças e votos sinceros, para que me restabelecesse depressa. Uma dessas visitas que muito me agradou foi a do presidente do Conselho de Administração da Fundação Logosófica do Brasil, que tomando um avião em Belo Horizonte veio ao Rio de Janeiro, retornando, logo após a minha visita, àquela cidade mineira. Veio efetivamente para ver se eu, seu amigo particular, estava bem fisicamente, para ajudar no que fosse possível, eis que era um excelente médico e proprietário de uma importante clínica na cidade de Belo Horizonte.

Recebi outras visitas importantes de muitos outros amigos, como, por exemplo, do Wantuil, meu amigo, espiritualista como sempre, e devotado às coisas da espécie, disse que tinha rezado muito para que melhorasse no que fosse possível. Agradeci muitíssimo.

Recebi várias visitas de outros estudantes de Logosofia. Fiquei feliz com tudo aquilo. Meus familiares e parentes, igualmente apareciam, com muita frequência, para visitar-me, esperando uma melhora.

O trabalho foi feito pela Minako, naqueles dias, foi imprescindível. Nunca a tinha visto tão dedicada a ajudar-me, independentemente das circunstâncias que então aconteceram. Eu acordava e lá estava ela, pronta para o que se fizesse necessário; quando ia dormir, igualmente, para o que se fizesse indispensável. Durante o dia e durante a noite, ela lá estava, pronta para tudo. Fiquei imensamente grato a ela, por toda aquela situação, tão difícil para todos, e especialmente penosa, para mim.

Naquela ocasião, senti, de repente, que ela era uma pessoa realmente importante. São descobertas que realizamos de pessoas tão caras.

Recordei-me dela desde que nos conhecemos, havia já algum tempo, em que ela surgiu, quase subitamente, mas que passou a fazer parte da minha história. As ocasiões em que juntos saímos, para nos conhecer, todos os meandros do nosso casamento, das brigas que tivemos para ajeitar as coisas dentro de nossa vida, com nossas filhas nascendo e crescendo, as nossas batalhas travadas sempre para dar-lhes condições mínimas de sobrevivência. Posteriormente, ela se formou na Escola Normal, para dar aulas no Educandário Logosófico, depois de já ser estudante de Logosofia, que tanta ajuda nos trouxe, em todas as áreas de nossa vida.

Nossa vida, tão cheia de detalhes encantadores. Ela surgiu sempre linda, sempre limpa de alma e de moral elevadíssima, sem, de outro lado, deixar se levar pelas questões obtusas dos outros.

Em razão dos problemas dos meus olhos, que não me deixavam ver as coisas claramente, marquei uma consulta com o médico especialista, que me examinou de todas as formas, para concluir que nada poderia fazer por hora. Eu teria de esperar que as coisas voltassem ao normal, como ocorreriam naturalmente. Se depois de algum tempo, nada disso acontecesse, então teria de pensar em cirurgia para corrigir tal situação. Examinou os óculos que eu usava, e achou que suas lentes estavam como ele havia pedido pouco tempo antes. Fui e voltei, olhando distorcido, ou melhor, como se tivesse duas visões.

Na verdade, um olho meu está retardado em sua funcionalidade visual, por alguma razão que me aconteceu quando era pequeno. Por isso, sempre utilizei óculos, caso contrário, não melhoraria. Agora, em razão disso, só poderia ler algo se fechasse o lado ruim. No final do ano, apesar dos pesares, meus olhos voltaram a se fixar de forma uniforme.

Em meados de dezembro de 1987, a Rosa retornou do Japão, trazendo um pacote, com um tipo de plástico usado em medicina, para colocar na minha testa. Ela chegou de lá toda premida, preocupada, pois nunca poderia imaginar que esse tipo de problema poderia ocorrer comigo.

Voltei ao trabalho. No início, de forma irregular. Cheguei ao escritório, fui à minha sala, vi todos aqueles móveis finos, ali dispostos. Sentei-me no sofá, fui à janela, e vi do lado de fora, aquela linda Baía de Guanabara. E orgulhei-me daquele escritório, tão bonito, tão próprio para os grandes trabalhos.

Vi que muitas questões pendentes antes estavam resolvidas. Tratei, naquela ocasião, de um contrato social para uma empresa importante, que estava se estabelecendo, com sua pequena sede, no Rio de Janeiro. Preparei o documento dentro do maior carinho, com muito cuidado, para não errar.

Quando o Conselho de Administração da Fundação Logosófica do Brasil se reuniu no início do segundo semestre de 1987, tinha eu solicitado, encarecidamente, que não queria ser reeleito. Não obstante, por uma série de razões, fui reeleito como reitor para dirigir a obra logosófica na área do estado do Rio de Janeiro por mais dois anos.

Efetivamente, havia ponderado muito, antes de pedir para não ser reeleito. Havia feito muitas coisas para melhorar a obra logosófica no Rio de Janeiro, mas sentia que deveria dar a mesma oportunidade a outros estudantes, pois representava uma experiência interessante.

Em razão daquele acidente, em outubro de 1987, só em primeiro de janeiro de 1988, pude voltar à direção da Fundação Logosófica, ainda cambaleante. Na verdade, achei que poderia continuar exercendo aquela Reitoria, apesar de encontrar-me ainda enfermo. E os membros do Conselho de Administração daquela instituição tinham manifestado muita satisfação quanto a essa decisão.

Contudo, minha aparência naquela época era terrível, pois estava com pouco cabelo, cortado. Além disso, tinha um corte na minha testa, com um pedaço de gaze cobrindo-o. Além disso, meu andar era um pouco cambaleante, pois não conseguia me firmar. Foi dessa forma que voltei à Fundação Logosófica, no início de 1988.

Comecei dirigindo as reuniões da Reitoria, sem muitas condições. A obra logosófica tinha grandes ideias para aquele ano, quando estaríamos completando 50 anos de atuação. Os trabalhos do Educandário Logosófico precisavam ser aumentados e o trabalho de difusão teria de ser ampliado em toda a cidade.

Passei aquele mês de janeiro de 1988, trabalhando da forma possível. Eu não estava bem, mas não havia outra maneira de dirigir aqueles trabalhos. A Denise iria se formar em Direito, em cerimônia no Riocentro, de modo que, em fins de janeiro de 1988, para lá nos dirigimos. Havia um grande auditório, onde ela se diplomou em grande estilo, sempre chamada para os atos mais importantes. Lá estive para prestigiá-la, junto ao Sérgio, nosso advogado do escritório e que também se formava. Tudo ocorreu como esperávamos.

Ponderei muito em tudo aquilo que tinha em conta como perfeito em minha vida. Querer continuar aquele trabalho logosófico era positivo, eu havia concluído. Contudo, concluía também que querer ou não querer era uma coisa, poder seria outra coisa.

De outro lado, soube que no final de fevereiro haveria,em São Paulo, outra reunião do Conselho de Administração, de forma que precisava determinar com urgência a minha saída da Reitoria. Conversei com os demais membros do Conselho de Administração a respeito da minha decisão de deixar aquela reitoria, por questões fortes de enfermidade. A maioria não queria que eu deixasse aquela importante função de reitor, mas aceitaria, se concluísse que eu não teria condições de levá-la avante.

Recomendaram, entretanto, que falasse com o presidente do Conselho de Administração, com uma carta com longa explicação sobre a minha saída daquele cargo importante dentro da Fundação Logosófica do Brasil.

Na data aprazada, tomei um avião e fui, cambaleante ainda, até São Paulo, para participar daquela reunião do Conselho de Administração. No final, ao dizer por que deixava, eles não concordaram com a minha renúncia, mas apenas com um pedido de licença para me tratar. Foram, entretanto, palavras pensadas e não ditas de qualquer forma.

Depois, fui à tertúlia seguinte na Fundação Logosófica, no Rio de Janeiro, onde informei que estava deixando aquela reitoria por razões de saúde e que apresentava como substituto o meu vice-reitor, agradecendo a todos pela imensa ajuda que havia me sido dada. E tudo ficou assim acertado dessa forma.

Posteriormente, depois da minha licença ao cargo de reitor, começou uma fase nova em minha vida. Primeiro, sabia que iria enfrentar uma fase ruim, pois os médicos haviam dito que iria ficar altamente deprimido, não querendo comer nada. Fui a vários médicos que me viram e disseram que devia comer, mesmo que não tivesse fome e que a falta de exercícios era, de certa forma, razão para que me tornasse fraco e sem vontade de realizar nada.

De qualquer forma, estava mais preocupado com outros problemas, como sobre o papel de Raumsol. Levei quase um ano até entender que minha compreensão sobre aquele importante criador da ciência lofosófica não estava completa e que por isso tudo o mais parecia errado. Eu teria de preocupar-me com o sentido daquela obra logosófica de superação humana.

Só no final do ano, compreendi que, na verdade, o Raumsol, a quem queríamos entender, deveria ser mais elevador, dando-lhe até o direito de errar. Pois toda a vez que dizíamos que ele não errava, estávamos cometendo um gravíssimo equívoco, conduzindo-nos a outros ainda maiores, levando-nos ao caminho das grandes crenças. Que todas as lições sobre as grandes crenças, que ele não havia ensinado, estavam corretas na sua essência.

Isto posto, o objetivo que todos nós, seus estudantes, tínhamos de torná-lo um ser perfeito, era, na verdade, um grande equívoco. Isso nos levava ao erro quanto ao entendimento correto de todas as suas importantes lições, que estavam corretas. Somente entendendo Raumsol como ser humano normal, com o direito de cometer todos os seus acertos bem como os seus erros, é que o engrandecíamos de forma sincera e verdadeira.

Com relação à terceira operação cirúrgica na minha testa, resolvi fazê-la, em fins de agosto de 1988, com o mesmo médico, Virgílio Novaes, no mesmo hospital, São Vicente. Tinha ido lá para acertar todos os dados com aquele médico, que me examinou por várias vezes, até que disse que estava pronto para colocar aquela plaqueta de plástico na minha testa.

Efetivamente, não senti a cirurgia. De uma forma geral, tudo se resolveu e, algum tempo depois, já possuía toda uma pele nova cobrindo aquela plaqueta colocada na minha testa. O médico foi observando, várias vezes, até que, em determinado dia, olhou e retirou todos os pontos que existiam.

Não posso dizer que fiquei como antes, mas fiquei quase igual. É claro que existem pequenas diferenças, mas que não se tornaram evidentes. Quem não sabe que sofri um grave acidente, não reparará. Todos aqueles que sabem olham-me com alguma admiração.

48.

A evolução do espírito é algo fundamental para Deus sentir-se feliz, porque os homens terão compreendido suficientemente seu importante e verdadeiro papel. Isto não se consegue numa simples vida, mas sim numa longa existência.

Para realizar isto, o homem terá de evoluir de forma consciente. Torna-se imprescindível realizar o seu processo de evolução consciente, se a busca tiver a pressa como contingência. E, na verdade, representa o grande percurso a ser realizado pelo homem através dos séculos.

Com isto, se prova que o ser humano terá de encontrar a Deus, porém pela consciência, para o que terá de evoluir cada vez mais. E, para tanto, precisará também da herança de si mesmo, para que possa reunir toda a evolução do seu passado à sua vida de hoje, para transmitir para as novas vidas, que virão depois. E isto ocorrerá de forma sucessiva, através do seu espírito.

Deus não seria feliz ao conviver com homens ignorantes ou sem realização, porém positivamente com aqueles que compreendessem gradativamente todo o seu enorme valor. Todo homem evolui, mesmo que pouco, através da sua vida, e possui uma longa história de tudo aquilo que realizou ou deixou de realizar.

O homem possui o poder de optar pelo seu caminho, tendo, desta forma, o direito de escolher entre o bem, que o faz evoluir, e o mal, que o faz involuir. Contudo, este poder é fundamental, imprescindível, para o homem evoluir de forma consciente, para o mesmo chegar, desta forma, por sua própria vontade, ao criador. É, destarte, o próprio homem que se dirige ao Criador, para admirá-lo em toda a sua integridade. Possui o homem, portanto, uma longa história, através dos séculos.

Contudo, a consciência não é sabedoria, pois, na verdade, para tanto, é indispensável conhecer, tornando-se fundamental participar. É, dessa forma, com muita experiência e sabedoria, mas, sobretudo, executando muitas vezes, é que vamos adquirindo conhecimento real, para evoluirmos conscientemente.

Tudo, portanto, na nossa vida, é experiência, boa e ruim, para aprendermos cada dia mais e mais. Daí, torna-se impostergável o processo de evolução consciente.

Já os animais, diferentemente, não evoluíram psicologicamente, através dos séculos, pois são geridos pelo instinto puro, o qual é dirigido por uma inteligência superior, estranha, colocada pelo próprio Deus, tendo, portanto, uma vida sem poder de escolher livremente os seus passos, pelo lado do bem ou do mal. Um animal, por inteligente que possa parecer, nunca consegue ensinar o que descobriu. Poderá não evoluir, mas não poderá regredir igualmente. Por isso, nem história no particular existe.

Evitar as crenças, preconceitos ou extremismos, é indispensável para sermos autênticos. Por isso, ter uma mente gigante, tornar-se um realizador, prático, ser consciente, ser bom são fases importantes para evoluirmos, cada dia um pouco mais.

Os dramas que existem no mundo de hoje, formados por crenças, preconceitos e ideias arraigadas, criando uma civilização terrivelmente atrasada, cheia de ditaduras, de sistemas políticos, ou fórmulas econômicas e pessoais, precisam ser revistos de forma urgente.

As chamadas forças ocultas, que tanto danos trazem ao mundo de hoje, precisam ser localizadas, e, mais que isso, evitadas de forma definitiva para que o mundo possa ser melhor. Evitar que as forças maléficas da economia levem os seres a utilizá-las é terrivelmente lamentável.

Por isso, as democracias de hoje representam, na verdade, grandes esperanças, pois são, de outro lado, como afirmava Raumsol, grandes mitos, grandes objetivos, e não sistemas adequados à liberdade humana, pois os seres não têm, ainda, o poder da livre escolha, pois poucos mandam realmente em si mesmos.

Daí que todo ser humano deve realizar o seu processo de evolução consciente, para descobrir, antes de qualquer coisa, o que realmente é, para vir a chegar a ser o que realmente pretende. Descobrir igualmente como funciona a sua mente, superior e inferior, as suas faculdades mentais, o drama dos pensamentos, a sua vontade verdadeira, o importante papel da sua inteligência, sua sensibilidade, suas faculdades sensíveis e dos sentimentos, sobretudo conhecer as manifestações terríveis dos seus instintos, o famigerado papel da imaginação, e, enfim, saber, de outro lado, de que forma poderá subir os degraus de sua vida ou existência rumo às linhas do Criador.

Com o tempo, irá descobrindo qual deverá ser, nesta terra, o nosso papel, e o que deveremos realmente buscar, tornando-nos, cada dia, um pouco melhor. Como nos ensinava González Pecotche, temos de ser bons, isto é, ajudar a humanidade que nos cerca a subir também, pois essa condição de qualidade é essencial, para que todos nós possamos subir cada vez mais no caminho da nossa rota transcendente. E, de igual forma, a luta de todos nós por uma missão importante, pois de nada adiantará sermos irascíveis ou extremistas, pois não iremos salvar o lado bom que todos nós temos. Efetivamente, de que vale sermos radicais ou fanáticos, embora com bons propósitos, se nos conduzem a atos de cegueira, com muita violência, afastando-nos dos atos de nobreza.

Na verdade, o que realmente importa é que sejamos autênticos, leais, verdadeiros. Dessa forma, nossa vida terá sido uma série ininterrupta de atos e fatos, representando uma história sempre positiva. Pode ser, também, uma aventura, porém, cheia de emoções, de emoções profundas. Quem sabe, representem epopeias de outrora, ao revermos todos os atos e fatos do nosso passado, com vista a um porvir brilhante. Talvez signifiquem, quem sabe, traços incursos pelos caminhos da nossa existência.

FIM

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CONTRACAPA

Reminiscências alegres ou tristes, porém reais, vividas por um jovem filho de imigrantes estrangeiros aqui no Brasil, participando, de alguma forma, da Segunda Grande Guerra, dos “Shindo- Renmeis”, da vida agrícola no interior de Marília ou do interior de Assai ou, provavelmente de vivências dramáticas em Juiz de Fora, São Paulo ou na cidade do Rio de Janeiro, dos progressos na Ishikawajima ou outras tantas empresas, ou quem sabe obtendo os efeitos miraculosos da Logosofia. Quem sabe do Japão, onde visitou tantos lugares, tantas empresas, encontrando-se até com o Príncipe Akihito. Tantas reminiscências, na verdade, tantas experiências vividas pelos caminhos da nossa existência…

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Nossa vida, como nos ensinou González Pecotche, com sua lógica incontrastável, é apenas uma parte da nossa existência. Se assim não fosse, nunca lutaríamos até o fim dela para sermos exemplos mais evoluídos e bons. Todo o relato desse livro é parte da minha existência. Representam reminiscências importantes, pois foi dessa forma que compreendi todos os valores da minha vida.

“Pelos Caminhos da Existência” relata os dramas de um descendente de imigrantes japoneses no  Brasil. Efetivamente as imigrações significam dramas ainda não devidamente descritos com toda a sua autenticidade, quanto às dificuldades de adaptação dos seres humanos, quer por razões linguísticas, e sobretudo em razão da diversidade dos meios de trabalho, eis que os estrangeiros não podem em sua maioria utilizar os diplomas obtidos em seus países.

Isto torna o problema existente, sem contar com tantos outros aspectos quanto à legislação aplicada à variedade de assuntos , principalmente em razão de diferenças existentes quanto às diversas raças, aos costumes, às crenças ou quanto às convicções de cada ser humano.

O comportamento dos seres humanos mudou muito desde antes da Segunda Guerra Mundial. Porém, de outro lado, tanta coisa continua com todos os dramas de então.

Significam as imigrações de seres humanos, outrossim, aspectos altamente positivos para todos evoluírem de forma superior em todos os ângulos de visões.

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